É numa sala ampla, sob um tecto finamente revestido de motivos vegetalistas em estuque, num entretecimento histórico bem adequado, que encontramos, com curadoria da Eunice Mestre, o conjunto de dezoito pinturas apresentado pela Fátima sob a ideia constelada de itinerário ou caminho no espírito, e que é tanto seu e da sua família, como o nosso e o das personagens e simbolizações representadas, todas elas manifestando estações no caminho em si: o iter que liga a terra e o céu, os opostos e dualidades, através das escolhas (o y pitagórico presente), actos, devoções, peregrinações, beleza e bem, sacrifício e compaixão, sabedoria e amor e que ela exemplifica ou transmite através filões, veios, seres, símbolos, monumentos e mitos da tradição espiritual portuguesa, e não só já que esta é universalista, e que com muita criatividade e hermenêutica própria, rasgando as trevas brancas de cada tela virgem, a Fátima convoca, avatariza e povoa segundo associações, ritmos e intencionalidades que no seu processo criativo se tornam manifestações interactivas tanto do seu subconsciente como da grande alma portuguesa e anima mundi a que tem acesso, resultando numa unidade da pluridimensionalidade do espaço e tempo, das perspectivas e épocas históricos, com o colorido, o dinamismo e a alegria que caracterizam o seu estilo de pintura.
A Fátima, com o autor do texto, evocando-invocando. |
Gerada toda a sua obra por uma grande sensibilidade e vigor, e em que história e religião, afectividade e devoção, memória e conhecimento são alquimizados e reactualizados pelo seu espírito criativo, Santo, espontâneo, poético, tal como o caracterizava Agostinho da Silva, e que enraizando-o em D. Dinis, Isabel e os franciscanos espirituais e fioristas, muito o tentou explicar e partilhar nas suas conversas, cartinhas e teorizações, confiando numa vindoura Era fraterna e plena, coroada pelas festas do Espírito Santo, com o culto do Menino como Imperador do Mundo, a Fátima em alguns das pinturas desta exposição assume mais tal tradição, com o Menino Jesus, ou o menino poeta, inocente ou criativo, representado e abençoando o mundo. São, portanto, pinturas do culto do Espírito Santo, dinamizadoras de quem as souber contemplar e acolher, fermentos de esperançosas utopias, tão necessárias na nossa época de tanta normatização e controle, egoísmo e conflito.
Encontramos também o culto do coração espiritual , como imagem piedosa, como emblemata, como local de teofania divina ou de confluência das correntes entre os que se amam, ou que ligam o Céu e a Terra, a Humanidade e a Divindade; a abertura, harmonia e culto aos quatro elementos da Natureza; o culto dos antepassados, da família e da continuidade da fecundidade das três Mães; e a comunhão oceânica ou marítima, e em que nos Descobrimentos fomos os iniciadores e os artesãos mais esforçados (certamente com limitações e erros), da união do Ocidente e Oriente, e o Egito, a China, o Japão e a Índia afloram em alguns quadros.
Mencionemos ainda o culto dos mensageiros, das aves, dos daimons, mercúrios, anjos e deusas que povoam bastante o imaginário anímico e pictórico tanto da história humana como da Fátima, e para bem nosso, pois face à virtualização digital crescente da percepção do mundo e da comunicação, mais do que nunca nos compete trabalhar para não esquecer que tanto somos corpos com mãos que pintam, escrevem, leem, trabalham, ajudam e abençoam, e elas estão muito presentes na exposição, como também espíritos no caminho da Vida eterna e que os Anjos, como os santos e santas, os guias, antepassados e mestres, ou as diferentes Faces Divinas (ishta devata, na Índia), são ajudantes e intermediários para a sintonização e manifestação do Espírito, do Bem, da Verdade e da Divindade e para uma melhor Humanidade.
O que é que cada pessoa valorizará mais no caminho para o Espírito ou já no Espírito, qual é a pintura ou os elementos nela que mais o tocam ou encantam, caberá a cada um de nós considerar, sentir, intuir; e talvez assim, para aprofundar melhor a qualidade icónica espiritual, adquira algum quadro, ou apenas o contemple suficientemente, para o ter de cor no coração e ser assim um psico-morfismo vivo e dinamizante no seu caminho no Espírito, luminoso, santo, beatífico como todos aspiramos e potencialmente merecemos e que a Arte tanto estimula, pois como o mestre russo Nicholai Roerich disse, “através da Beleza oramos, através da Beleza unimo-nos!”.
Lisboa, Pedro Teixeira da Mota. 5 Setembro 2024.
2 comentários:
Nas palavras do Pedro, encontro-me, sinto uma comunhão muito verdadeira, de coração e como explicar as minhas demandas pictóricas. Agradeço muito a apreciação que o Pedro faz e fico muito feliz embora saiba e sinta que sou uma gota de água neste caminho pitagórico, Muitas graças carissimi amicum por caminhar ao meu lado.
linda apresentação de uma obra muito interessante que não vou perder. Já vi que está na Biblioteca Municipal até 28.09.
Muitas graças ao Pedro e à pintora Maria de Fátima Silva
Adli
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