terça-feira, 24 de setembro de 2024

Homenagem a Paracelso, nos 487 anos da sua partida da Terra, com breve biografia e alguns dos seus ensinamentos e discípulos.

 Paracelso, pintado por Quentin Matsys, que também já retratara Erasmo e Thomas More, na cópia antiga do Museu de Louvre, já que o original desapareceu há muito,

 Um dos génios mal acolhidos pelo seu tempo, Aureolus Theophrastus Bombastus Paracelsus nasceu a 17-12-1493, no Inverno, no signo do Escorpião, na zona de Ernsielden, Suíça, numa casa situada num desfiladeiro, junto à ponte do Diabo e à passagem de peregrinos para Etzel, e próxima dos píncaros dos Alpes, o que o terá talvez "psicomorfado" para toda a sua vida de itinerância.  Recebeu o nome de baptismo de Theophrastus Bombastus von Hohenhein, o resto sendo acrescentado por ele próprio, do seu pai, um médico da Suábia mas desterrado para aquela região inóspita, Wilhelm von Hohenhein, com quem veio a aprender muito, nomeadamente nas viagens que este fazia, seja em busca de plantas para mezinhas, seja de minerais em minas, já que foi de professor de química na Escola mineira de Villach. Frequentou depois  escolas conventuais e episcopais (onde  dialogou e aprendeu, entre outros, com Nicolas Kaps e o famoso abade Tritémio, ou Johann Tritemius, alquimista), e as universidades de Basileia e Viena, até se doutorar em Medicina, em 1516, em Ferrara, Itália, viajando em seguida  sete anos para «com entusiasmo e diligentemente encontrar e investigar as artes médicas mais confiáveis» (passando em 1518 por Granada e Lisboa), por vezes como médico militar, outras como alquimista (em Schwaz, Tirol), até estabilizar em Basileia em 1527 (convidado pelo município, sob recomendação de Froben e Erasmo), mas apenas por um ano, por oposição dos professores da Universidade aos seus métodos, uso da língua vernacular alemã e afirmações, pois a proclamação de início do magistério,  num discurso revolucionário a vários níveis, e acompanhado da queima de alguns livros de medicina, porque pouco valeriam exacerbaram os mais escolásticos e conservadores, de modo que recusaram a sua nomeação e vieram a atacá-lo anonimamente numa linguagem verdadeiramente execrável, invejosos das suas capacidades científicas, intuitivas e curadoras.

De Hans Holbein, para o Elogio da Loucura de Erasmo: os insidiosos e invejosos...

Esses incidentes aconteceram em mais três ou quatro cidades, pelas invejas e conflitos que criava pela sua independência, sinceridade ou linguagem médica nova, e por desmascarar os embustes médicos e farmacêuticos da época, e num dos casos dos próprios grandes banqueiros Függer. De Basileia passou à Alsácia, Suábia, Nurenberg, onde em 1529 esteve em valiosos diálogos com Sebastian Frank. Mas aí de novo, por oposição de médicos e farmacêuticos associados na Universidade de Leipzig, teve de partir. Era contudo uma época de ouro, e de busca dialogante da conhecimento e verdade, do Humanismo europeu, embora já  desde 1517 começasse a fractura da Reforma e depois a Contra-Reforma, assombrando a Europa, com censuras e perseguições, algo que ele sentiu bastante na pele e alma, embora mais por professores, médicos e farmacêuticos conservadores. 

Os doutores escolásticos, por vezes os casmurrões sorbónicos (da Universidade de Paris), caricaturizados por Hans Holbein, para o Elogio da Loucura, de Erasmo, um amigo de Paracelso.

Notabilizou-se pela sua erudição, coragem e mente prescrutadora e optimista («Deus quer que experimentemos toda as suas obras, que penetremos nos segredos da Natureza e que nada disso nos permaneça desconhecido», in De Prognosticatione), e por ter sido um dos  descobridores na medicina experimental e laboratorial em vários campos e terapêuticas, nomeadamente na ginecologia, sífilis e doenças psicosomáticas, socorrendo-se ainda nas suas curas do conhecimentos das subtis correspondências (as assinaturas, ou sinais de Deus nas natureza, nomeadamente no paralelismo de vegetais e partes do corpo humano) de propriedades entre os reinos e elementos da Natureza, visível e invisível, destacando-se na utilização de tinturas metálicas, dos minerais, com suas propriedades químicas, tal o ouro, o zinco, o bismuto. Deixou vários tratados médicos, filosóficos, teológicos, astrológicos, alquímicos e de prognósticos, e vinte oito livros foram publicados em sua vida, entre 1527 e 1538. 

A segunda figura das trinta  e duas do enigmático livro Da Prognosticação, na edição de 1549, impressa  na contracapa da Poesia Profética, Mágica e Espiritual, de Fernando Pessoa, que dei à luz em 1989, nas Edições Manuel Lencastre.
Sucederam-se várias edições, as dos impressores Theodor Birckmann (1564) e Peter Perna (1575 e 1581)  e as  obras todas até então descobertas, mais de 300, foram reunidas diligentemente e dadas à luz entre 1589 e 1591 pelo médico Johannes Hauser em dez grandes fólios, onde encontramos a Grande Cirurgia, o Paramirum e o Paragranum, De Natura Rerum, o Labyrintus Medicorum Errantium, a Astronomia Magna, os tratados sobre a peste, as cãibras, os cálculos ou pedras, as doenças dos mineiros, a epilepsia e a loucura, etc. E ainda os escritos das suas visões antropológicas, filosóficas, teológicas, ocultistas e espirituais, o seu credo (muito poderosamente afirmado),  intuições, prognósticos (estes com grande circulação) e teorias, nomeadamente quanto aos sinais ou assinaturas da Natureza (a forma corresponderia à essência), as três substâncias (enxofre-fogo espiritual, mercúrio-energia anímica e sal-matéria corporal)  e o uso e eficácia dos talismãs, estes desenhados nas formas geométricas adequadas aos influxos e posicionamentos dos astros, sendo acompanhados de palavras e orações.  

O ser humano zodiacal, numa gravura impressa entre 1530-1540, em Estraburgo, por Jacob Cammerlander, na obra Eine newe Badenfart...
Teve algumas crenças exageradas nos poderes da alquimia, que conhecia bem, tendo trabalhado por exemplo em 1529 com o alquimista Bartolomeu Schobinger, no laboratório do castelo de Horn, em St. Gallen. E nos poderes de certos remédios preparados a partir do partes do corpo humano e animal, e sobretudo de minerais, de que nos chegaram várias receitas, por vezes algo estrambólicas, nas linhas da alquimia, espagíria, astrologia e magia operativa, sob o céu das ideias filosóficas pitagóricas, neoplatónicas e herméticas que circulavam no Renascimento e que ele procurou experimentar e sintetizar quase que enciclopedicamente. Foi amigo do grande impressor Froben, e  dos humanistas Erasmo (e sobreviveu correspondência),  Oekolampad, os irmãos Amerbach, e Vadianus, tendo tratado mesmo os dois primeiros.

Erasmo, pintado por Quentin Massys, num altar lisboeta.
Talvez o bom e profícuo relacionamento com o teólogo e místico profundo Sebastian Frank, que o acolheu no ano de 1529, possibilitando-lhe bons escritos teológicos e onde especulou com bastante originalidade, tenha contribuído para se intitular professor ou  "Doutor das santas Escrituras", algo que contudo só pode manifestar a escassas almas ou pequenos grupos de espirituais que ia encontrando ou atraindo, em especial nos Alpes e em Meran no Tirol em dificultosas e fabulosas satsangas itinerantes, hoje quase ignoradas mas na época vividas com grande fervor e provavelmente íntima eficácia na clarificação curativa e espiritual, que o iluminado Paracelso, pelo seu astra, ou espírito santo próprio, sob a graça divina, transmitia.
Em 15
37 e 1538 convidado por Johann von Leipnick, marechal da Boémia e ser espiritual, esteve em Kromau, de novo com bons diálogos, meditações e escritos filosóficos e teológicos, tais como a Astrologia Magna, a Philosophia Sagax, que inclui o Tratado das Ninfas, silfos, gnomos, salamandras e outros seres e os Escritos de Caríntia, Caríntia onde esteve até 1540, seguindo depois para Salzburg, o seu último abrigo terreno.

Gravura de Paracelso, por Romeyn de Hooghe, para a valiosa História da Igreja apartidária e  dos Hereges, de Gottfried Arnold, 170o.
Do seus ensinamentos, escolheremos brevemente um, tendo em conta que, estudando e investigando bastante as ligações entre corpo, a  alma  e a alma Universal, a partir duma visão em geral tripartida do ser humano como corpo, alma e espírito (nous), e face ao saber antigo livresco, valorizou muito a vivência, o experimentalismo, a  magia tradicional popular milenária,  segundo as quais a imaginação, a fé e a vontade exercem efeitos fortes nos corpos e no mundo: «O ser humano tem uma oficina visível que é o seu corpo e outra invisível que é a imaginação. O Sol emite uma luz que ainda que impalpável e não agarrável, pode por concentração [dos seus raios] aquecer ao ponto de acender um fogo; de igual modo, a imaginação exerce os seus efeitos sobre a esfera que lhe é própria e faz germinar, e depois desenvolver, formas tiradas dos elementos invisíveis. Assim como o mundo é apenas um produto da imaginação da alma universal, assim a imaginação do ser humano pode criar formas invisíveis e estas materializarem-se. Quando um mulher grávida imagina algo fortemente, a criança que nascerá pode manifestar algum traço disso. A imaginação extrai toda a sua força do desejo. (...) A imaginação das mulheres é mais forte que a dos homens e pode, durante o sono, levá-las para outros lugares, onde pessoas no estado vibratório semelhante as podem ver. Elas  posteriormente podem lembrar-se do que viram, se bem que o seu corpo não se tenha sequer  movido na cama.» De Virtute imaginativa.

Gravura de 1503, por Albrecht Dürer, na obra Prognosticationem des Stabius, Nuremberg, representando a Anima mundi, a Alma universal, a grande Deusa.
Era o reconhecimento do psicosomatismo, da unidade do corpo, alma e espirito, do poder metamorfoseador da psique humana, seja na sua capacidade, em corpo subtil (o evestrium, na sua linguagem),  de projectar-se para fora do corpo físico, seja na sua capacidade de visualizar e obter o que pede ou deseja, o que no séc. XX, por exemplo, mestres como Paramahamsa Yogananda, Peter Deunov, Omraam Aivanhov e Bô Yin Râ realçaram nos seus ensinamentos, denominando-se mesmo galvanoplastia à arte de modelar a forma da alma e corpo da criança nascitura,  de acordo com os ensinamentos sacralizadores do matrimónio e nascimento, nos quais a união corporal é acompanhada e dirigida pela imaginação visualizadora bela, a realização espiritual e a invocação divina. Para alguns espirituais, e que na época seriam considerados heréticos,  tendo por isso de disfarçar bastante, tal seria provavelmente a razão da narrativa evangélica simbólica da virgindade de Maria e da sua gestação  pelo Espírito santo, por José e pelo Anjo ou Arcanjo  Gabriel.
Vénus, um dos arquétipos da mulher e, como planeta, muito influente na vida humana. Gravura da Practica Teutsch aufs 1537. Jahr durch den hochgelerten Doctorem Paracelsum beschriben und gemacht. 
Paracelso, talvez levemente frustrado na sua aspiração ou mesmo ânsia de transmissor da Luz e curador, no dia 24 de Setembro de 1541, em Salzburg, na albergaria do Cavalo Branco, partia para o mundo celestial, apenas com 48 anos, intensos e muito fecundos e polémicos,  bem preparado, redigindo o seu testamento dos escassos bens que tinha a favor dos pobres e firme no corpo espiritual que tanto teorizara  e alquimizara na fornalha da sua vida que fora Caminho e Verdade...
Oswald Crolius, em 1609, incluía no canto inferior direito, do frontispício, da sua Basilica Chymica, Paracelso, com Hermes Trismegisto, Geber, Morienus Romanus, Raimundo Lúlio d Roger Bacon.
A sua fortuna com o tempo foi crescendo, não só cientificamente e como filósofo da Natureza e médico como sobretudo pelos seus aspectos ocultistas, alquímicos e espagíricos, atraindo sucessivos admiradores, discípulos e estudiosos importantes, dos quais mencionarei Jacques Gohory ou em latim Leo Suavius (1520-1576), Leonhard Thurneisser (1531-1596), Valentin Weigel (1533-1588), Giovanni Battista Della Porta (1535-1615, dando à luz em 1578  a célebre Phytognomonica), Petrus Severinus, isto é, o médico dinamarquês Peder Sørensen (1542–1602, com a valiosa Idea medicinae philosophicae), Heinrich Khunrath (1560-1605), Michael Maier (1568-1622), o iluminado místico e filósofo Jacob Böehme (1575-1624), J.B. Van Helmont (1580-1644), os autores rosicrucianos dos séc. XVII-XVIII, nomeadamente Valentin Andreae (1586-1654), Tobias Hess (1568-1614) e outros do círculo de Tübingen, bem como os rosicrucianos posteriores (de que fiz menção no livro no livro de inéditos de Fernando Pessoa, Rosea Cruz, que publiquei em 1989). O beneditino, alquimista e maçon D. Antoine-Joseph Pernety (1716-1796), no seu Dicionário Mito-Hermético, elogia bastante Paracelso e explica muitos dos termos misteriosos ou cifrados dos seus escritos   e, já no séc. XX,  Carl Gustav Jung, teceu três reflexões valiosas em 1934, 1941 e 1942, Paracelso, Paracelso como médico, e Paracelso como figura [erscheinung] espiritual, a mais longa e bastante psicanalítica (a falta da mãe, como fonte de intensa compaixão) e alquímica. Mais recente é o contributo valioso de Patrick Riviere, La Medicine de Paracelse, 1988. Dos críticos, um dos mais fortes foi Nikolaus Hunnius (1585-1643), que reconhecendo o seu valor como médico e aceitando a altura em que as pessoas o queriam elevar, critica fortemente os seus aspectos teológicos que estavam em desacordo com as Escrituras, tanto mais que Hunnius era um fervoroso luterano. Ora muito lúcido e independente, tal como o era  seu amigo Erasmo, Paracelso distanciara-se bastante da adesão às religiões, justificando-se mesmo:«Quer sejam papistas, luteranos, baptistas, ou zwinglianos, todos estão prontos a glorificarem-se de possuírem só eles o Espírito Santo, e cada um grita: Eu estou na verdade, a verdade está comigo». Sua era uma visão mais celestial, cósmica ou se quisermos mesmo panteísta, duma vida divina na Natureza, que dispensava os intermediários, tanto mais que pouca realização espiritual e macrocósmica tinham.
O  mote ou lema de Paracelso, o seu testamento anímico, tão lúcido e tão importante nos nossos dias de arregimentações e manipulações, e que sintetiza bem o seu Credo, foi, é e será : Alterius non sit, qui suus esse potest. "De outro não seja, quem seu pode ser".
A gravura mais antiga e fidedigna de Paracelso, desenhada por Augustin Hirschvogel, em 1538, com o seu famoso lema ou mote, "De outro não sejas se podes ser teu."

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