segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Sebastião da Gama: "Lugar de Bocage na nossa poesia de Amor". Uma visão do amor pleno, de corpo e alma unificados.

                                   

Sebastião da Gama, Lugar de Bocage na nossa poesia de Amor, Lisboa, 1953,  é uma separata in-4º de 23 páginas da Revista da Faculdade de Letras, do Tomo XVIII, 2ª série, de homenagem ao poeta e professor, que morrera a 7 de Fevereiro de 1952, nela se transcrevendo a palestra proferida por Sebastião da Gama em Setúbal em 15-IX-1950, e repetida em Estremoz em abril de 1951 e Vila Viçosa, junho de 1951, momentos certamente inesquecíveis para Sebastião Gama (1924-1952) e os seus ouvintes, tal como ele deixou registado nos manuscritos e foi inserido pela direcção da Revista em nota final: «Não pude no entanto deixar fugir a estas duas agradáveis coisas: primeira - ler a meia dúzia de Amigos que tenho nesta cidade (...) não chamo vaidade, no entanto a isto de me querer numerosamente ouvido: é mais suave aos olhos da minha consciência dizer que é prazer de pagar aos estremocenses, com leite do meu gado, o puro azeite da simpatia e do bom acolhimento». A palestra (esquematizada no seu início em Setúbal e Azeitão, 15-12-48) seria publicada mais tarde, nomeadamente na antologia O Segredo é Amar, publicada em 1969 na Ática pela suave Matilde Rosa Araújo.

                           

Sebastião da Gama era poeta, era jovem, era amoroso e aproximou-se de Bocage com o discernimento de companheiro de aventuras e ao mesmo tempo de professor, pelo que conseguiu extrair da sua vida e obra os aspectos fulcrais do Amor nele.  E, no seu modo de ser e estilo tão coloquial e fraterno, traça-nos uma visão geral e sumária da poesia de Amor portuguesa, mostrando-nos o lugar nela  do Bocage amoroso imortal, nos seus melhores sentidos e discernindo os seus íntimos sentimentos e tendências, comparando-o ao principal dos imortais sonetistas, Luís de Camões e sobretudo inserindo-o na sua especificidade e originalidade na tradição lírica portuguesa, que ele considera dividida em duas correntes: a que reza, de mãos postas e a que abraça, de braços abertos,  a que ama a alma e a que ama o corpo.
Triunfou mais a
corrente poética que amou a gemer e de joelhos, frequentemente diante da Dama indiferente e distante, embora inteligente, sensível, sensata, e mesmo Luís de Camões teve se sujeitar em parte a tal linha, escapando aqui e acolá, e sobretudo na Ilha dos Amores. Compreensível porém, acrescentaremos nós, face aos códigos vigentes religiosos e de moralidade, controlados pela Inquisição e que a contra-Reforma estava a intensificar puritanamente ou anti-sexualmente.
Já a visão
realista do Amor, diz-nos Sebastião da Gama, que «surge nas Cantigas de Amigo, continua-se no Cancioneiro de Garcia de Resende, aflora em Camões, recebe vigor novo em Bocage, e tem uma força já magnífica nalguns poetas modernos».
Nela,
vê bem e com perspicácia que «deixa  a mulher de ser pintura, deixa o amor de ser suspiro. Vê a gente afinal (isto nas Cantigas de Amigo, onde está o princípio da história) que não é o Poeta tão desamado, que não é a mulher tão dura. Nem é a mulher, vê a gente afinal, Nossa Senhora nenhuma: é uma criatura encantadora mas de carne, e que tem saudades verdadeiras, femininos caprichos. A Cantiga de Amor foi a convenção que ditou; a Cantiga de Amigo foi a própria realidade».
Sebastião da Gam
a menciona então como elos desta corrente do amor de corpo e alma, a seguir a Bocage, Tomás António Gonzaga (1744-1810) e a Marília de Dirceu, Almeida Garret (1799-1854), António Nobre (1867-1900), Alberto Serpa (1906-1992) e Armindo Cortes Rodrigues (1891-1971), omitindo com razão Fernando Pessoa, embora cite Álvaro de Campos «Todas as cartas de Amor são ridículas». E regressa de novo, e demoradamente, a Camões, destacando nos Lusíadas a figura de Leonardo que não segue apenas "o apelo do sexo": «Leonardo é a confirmação camoneana do que eu disse ao princípio: que o Amor, o Amor que o é, é uno e indivisível.»

Bocage, visto por Maria de Fátima Silva.

Será só após percorrer, sumariamente, o longo percurso temporal da tradição poética portuguesa do Amor - das Cantigas de Amigo até à Modernidade - ,  que vai, com bastante juventude, amor e ousadia abordar Elmano Sadino, isto é,  Bocage, confessando que ao contrário  de Luís de Camões, constata que a sua poesia «é mais de acordo com a experiência pessoal, menos sujeita ao, assim chamado por mim, pudor literário, mais independente de tudo que não seja o próprio amor como  realmente foi vivido. Ler Camões e pensá-lo - é dar-se a gente conta de que por detrás da sua poesia há uma ideia - de que a sua poesia obedece a uma teoria, a um conceito de Amor. A vida terá confirmado tal conceito, como já estabeleci, mas a confirmação não invalida o meu ponto de vista.  Com Bocage, o caso é outro. Também ele faz uma ideia do Amor - toda a cabeça pensante faz uma ideia do Amor; mas esta ideia não é senão a resultante de um conhecimento directo, uma lição aprendida fora dos livros. Tem-se a impressão de que Bocage vai para o amor ingenuamente [ou talvez mais, sincero e confiantemente]. Não sabe nada, não prevê nada. Por detrás de cada poema se entrevê a circunstância que lhe deu origem, como se cada apontamento fosse um apontamento tirado in loco. A sabedoria virá depois.
E que diferente da sabedoria camoneana vai ser a dele! Abalou para o amor de coração intacto; quanto muito, como todo o que parte sem medo, levava-o cheio de esperança. E logo o amor lhe foi uma coisa deleitosa, um risonho prazer. Eis o que o opõe terminantemente a Camões: o contentamento de amar. E daí o ar festivo de tantos dos seus versos de amor:

«No risonho prazer consiste a Vida»

- isto é o que ele aprendeu amando; e ainda que o Amor é um doce Nume, que os seus farpões, forjados no céu, são deleitosos.»
Após esta visão prazentosa, optimista, de sacralização do amor físico e afectivo que vê activa em Bocage, e certamente em ressonância com a sua jovem alma amorosa, Sebastião da Gama vai explicar como a Mulher nesse final do século XVIII era já bem mais real e menos submetida a idealizações e platonização, e exprime-se com belas e sentidas imagens. Oiçamo-lo com os seus vinte e seis anos, tão intensos de sede de conhecimento, de amor, de comunicação, de fraternidade e que infelizmente pouco tempo mais neste vale de amor e de dor passaria: «É de adivinhar que só vê assim o Amor quem viu a Mulher bem diferente da humana fera do século XVI. [Um pouco forte e extremizante a afirmação, pois nessas cortes de amor platonizante a distância não era tão negativa. Isto pode ter causado choque entre os seus professores]. Não será deleitoso senão o amor da mulher que se entrega em vez de recusar-se. Getrúria, Nise, Ulina, Marília, não viveram duramente fechadas numa redoma de indiferença; nem o Poeta pode calar o que para lá do simples consentimento houve entre ele e elas.»
O jovem professor, namorando e feliz do encontro do Amor plenamente correspondido, vai pois vibrar fortemente com Bocage e assim compreendê-lo e partilhá-lo na intimidade amorosa pura, como podemos observar na continuação: «Getrúria, Nise, Ulina, Marília ( e ainda Armia e quantas faltam para as sete mulheres e meia da tradição) suspiraram nos seus braços, consentiram gostosamente em ser a agua da sua sede. O que dá nervo e novidade à poesia amorosa de Bocage é o desejo que a percorre toda, desejo sequioso mas terno- (terníssimo - especifica ele, que se conhecia por dentro e por fora. E essa correspondência, essa dádiva total da mulher amada.
Luminosamente, escreverá Bocage:

«Se é doce no recente, ameno Estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias, e os verdores,
Mole, e queixoso, deslizar-se o rio:

Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis Amadores,
Seus versos modulando, e seus ardores
De entre os aromas de pomar sombrio:

Se é doce mares, céus ver anilados
Pela Quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados:

Mais doce é ver-te, de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor, melhor que a vida. 

Olha Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-e, os Amores
incitam os nossos ósculos ardentes:
Ei-las de planta em planta as inocentes
As vagas borboletas de mil cores (...)»

Sebastião da Gama discerniu bem a originalidade e o lugar pioneiro de Bocage na poesia de Amor portuguesa, ao conseguir unir o amor da alma com o amor carnal ou do corpo que se deseja e lhe é belo. Reconhece contudo os efeitos negativos que os ciúmes lhe causavam, e dos quais Bocage se queixava, e vai relembrar Antero (que contudo Sebastião da Gama esquece na sua poesia juvenil altamente amorosa, embora de facto bem mais platónica) e Mário de Sá Carneiro, que chegaram mesmo a dar fim "ao Fado acerbo e duro" que Bocage maldizia:
«E chega a propor-se a porta de saída de Antero e Sá de Carneiro:

«Eia, amante infeliz, teu fim procura:
Fantástico terror não te reporte»

Mas eu prefiro a solução luminosa, a ressurreição em saudade. Aí se depura o amor de Bocage, se transcende, se diviniza. A luz renovou-se no próprio chão em que Bocage sofria; o Amor que não a Morte, encheu de Claridade os olhos do Poeta:[No soneto à Memória de Ulina:]

«Sonho, ou velo? Que imagem luminosa,
Esclarecendo o manto à Noite escura,
A meus olhos pasmados se afigura?
Sopeia a tua dor, alma saudosa!

De mais vistoso objecto o Céu não goza,
A clareza do Sol não é mais pura...
Que encanto! Que esplendor! Que formosura!
Caiu-te um astro, abóbada lustrosa!...

Sorrisos da purpúrea madrugada,
Vós tão gratos não sois... Ah! Como inclina
A face para mim branda, apiedada!...

Refulgente visão, tu és de Ulina;
Tu és cópia fiel da minha amada,
Ou reflexo talvez da Luz divina.»


Que Bocage e Sebastião da Gama, as Musas e Anjos, nos inspirem e unifiquem na "Luz Divina", do Amor e do Espírito...

Reconhecendo que Bocage se deixa frequentemente colorir "pela queixa, a solidão e a morte", observa contudo que logo o Amor o resgasta: «No Amor se queima Bocage, para logo renascer, humana fénix, e renascer transfigurado.»
                                  
Joana Luísa da Gama, a namorada de Sebastião desde 1944, e casados no convento da Arrábida em 1951. A ela (com colaboradores valiosos) se deve o ingento trabalho da coordenação e publicação dos vários manuscritos do tão intenso quão fugaz poeta, professor e amante da Arrábida.

Os dois parágrafos finais são sinceros, ousados, sábios, belos, e vamos transcrevê-los (tanto mais que não estão na net), para ser mais completa a comunhão com Bocage e Sebastião da Gama: «Era uma vez (terminemos a história como é costume começá-las) um poeta moreno que nos emancipou do pudor literário. A esse tal repugnava complicar pelo pensamento o que nascera simples como as ervas; sublimar o que já de si mesmo era sublime; apodar de triste o que era a sua mais sincera alegria; ou encobrir-se, para cantar à vontade o que lhe ia pelo coração, na figura de amadores fantásticos. Bocage (o tal poeta é Bocage) vai direito ao fim sem nenhuma dessas subtilezas. No quadro da nossa poesia de Amor, em que há lugar, como acabámos de ver, para o recato e discreto atrevimento, Bocage é aquele poeta que nos diz de frente o que tem a dizer. (...)
Minhas Senhoras e meus Senhores, muito boa tarde e muito obrigado por me terem ouvido até ao fim [e com que alegria não terá pronunciado estas palavras cumprida a sua missão]. porque a meada acabou. Possa Bocage perdoar-me, se fiz afinal a sua caricatura. O mau, Senhoras e Senhores, foi querer figurar em palavras o que Bocage me deixou no espírito: que aí ficou dos seus versos de Amor apenas a luz puríssima que os distingue.»
Arrábida, Maio e Junho de 1950 (Esquema: Setúbal e Azeitão, 15-12-48).

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