quinta-feira, 19 de maio de 2016

"O verdadeiro Antero", 1942, por Rebelo de Bettencourt, e a demanda do Graal.

                                 
Como micaelense, poeta, amigo da geração de Orpheu, da qual deu testemunho num texto Os rapazes do Martinho, Rebelo de Bettencourt foi naturalmente atraído pelo seu conterrâneo Antero de Quental, escrevendo sobre ele algumas vezes. O texto incluído no seu livro O Mundo das Imagens, de 1924, transcrito no primeiro artigo deste blogue dedicado a este açoriano, mostra algumas limitações na compreensão das profundidades e altitudes da demanda e das realizações psico-espirituais de Antero, nomeadamente face ao seu suicídio. Por exemplo, afirma que Antero não teria sabido «encontrar na vida o seu rumo próprio», mas poderemos antes pensar ou ver que Antero soube avançar no seu difícil caminho, com o rumo próprio de busca da Verdade, de coerência e dignidade, dentro dos múltiplos condicionalismos que o envolviam e o dilaceraram.
Quando uma vida termina, temos de aceitar, sem grandes juízos de valor morais, pois essa foi a vida  conseguida por tal pessoa, certamente muito condicionada pela parte genética e ambiental, mas sempre com algum livre arbítrio, nem que seja, em caso extremos, fechada numa cela, apenas interiormente ou psiquicamente tendo certa liberdade. Ora do colete de forças que Antero foi crescentemente sentindo, passada a sua fase juvenil de grande plenitude, só ele é que saberá, embora ainda assim saibamos bastante (mas não intimamente sofrendo..) pela sua correspondência e o testemunho dos amigos do périplo desse homem livre ou "selvagem"...
O que é que Antero poderia ter sido e não foi, e assim se desviou do seu rumo, considerado então como o desenvolvimento do seu potencial? Bacharel e advogado, como seria norma enquanto licenciado em Direito?  Padre, como em algumas das suas cartas afirmou? Professor em alguma escola ou universidade, como ainda pensou mas foi dissuadido de concorrer a tal função?
Ao consultar certas pessoas, que o dissuadiram, nomeadamente Oliveira Martins, ter-se-á desviado da sua linha ou rumo próprio?
Qual seria o potencial mais iluminativo para si e para os outros que poderia ter tido, para além do notável líder juvenil, poeta e pensador? Estas são perguntas que devemos também fazer-nos de quando em quando...
Mas como as questões de auto-avaliação são bem subjectivas, ou mesmo  especulações  melindrosas ao serem focadas noutros seres, será sempre inconfirmável afirmarmos que este ou aquele deveria ter sido o rumo próprio de alguém. Deveremos antes aceitar a vida vivida por ele e, neste caso Antero, como o seu caminho verdadeiro, em certos aspectos bastante crucificado pela astenia física e psíquica que lhe advinha provavelmente do estreitamento do piloro e das perturbações nervosas que tanto o apoquentavam.
Fragilizado fisicamente a partir de certa idade e sem grande plenitude amorosa, poderemos interrogar-nos porque não procurou mais ele o amor feminino e acabou demasiado cedo (nomeadamente em 1878 com a baronesa alemã que encontrou nas termas francesas, quando só tinha 36 anos, embora os da altura correspondessem a uns 50) a aventura de encontrar pessoas e com elas dialogar e eventualmente aprofundar tais relacionamentos, cingindo-se apenas a uns tantos fiéis amigos, que mantiveram-no numa aura de memória e de amizade e já não tanto com a criatividade real e incarnada positiva e cardíacamente no mundo, que contudo ainda manifestará uns meses antes de morrer ao aceitar e orientar com entusiasmo a presidência da Liga Patriótica do Norte, que reagiu contra o imperialismo inglês, e onde Luís de Magalhães, Sampaio Bruno, Duarte de Almeida se distinguiram também...
 Assim morreu só, bastante dilacerado no seu sofrimento psico-somático, pois as amizades não chegavam, e as afilhadas ou quase filhas estavam a ser apartadas deles e restava-lhe voltar quase como uma sombra de si mesmo à metrópole e quedar-se por casas de amigos, algo bem instalados ou triunfantes, enquanto ele se degradava a olhos vistos, fisicamente e logo algo psiquicamente. Resolveu então apressar o caminhar no seu rumo, o qual, como o de todos os seres humanos, tem como horizonte a morte, por ele aliás tão precocemente desafiada e invocada, poetisada e amada, Mors, Amor...
Certamente que poderemos interrogar-nos se ia bem preparado, se tinha as forças anímicas necessárias para entrar consciente e dinamicamente nos outros níveis ou planos de existência ou, ainda, se tal acto de suicídio, no seu caso como em todos sempre tão individuais e únicos, teria consequências dificultadoras e emprisionadoras na sua vida post-mortem, no seu avançar rumo aos mundos mais espirituais e divinos, aos quais certamente aspirava e sabia que existiam, como espiritualista e gnóstico que era e como tantas cartas manifestam de forma mais ou menos clara...
                                
Já no segundo texto ou livrinho sobre Antero, O Verdadeiro Antero, de 1942, nas Comemorações do Centenário do Nascimento, Rebelo de Bettencourt vibra bastante mais com o seu conterrâneo e tem algumas afirmações e compreensões excelentes, embora aqui e acolá de novo tenha ficado aquém do verídico Antero, como me parece e tentaremos demonstrá-lo...
Depois de no Pórtico realçar a actualidade da «sua resposta às nossas inquietações espirituais» e o «seu amplo sentido humano e universalista», considera que «Antero não falou só de si próprio, as suas dúvidas, as suas incertezas, a sua inquietude espiritual, o seu desejo de se conhecer melhor, a sua ânsia de atingir o mistério da existência, foi também, - se é que não o foi principalmente, a voz e o verbo do seu século, tão profunda e humana é a sua alma, tão dolorosa e sincera é a sua atitude perante o enigma das coisas».
Destaquemos nestas afirmações uma certa intuição do ungimento sacrificial de Antero, de um Cristo, não o triunfante e glorioso mas o que assume sobre si mesmo dores e angústias do seu tempo.
Viu Rebelo de Bettencourt também claramente, que Antero teve o seu caminho de ascensão, que eu chamaria antes de evolução, e que «não se deve tomar por contradições aquilo que nele representa estados de alma ou experiências de libertação», simplificando talvez já demais quando diz: «Da dúvida e do pessimismo é que Antero partiu, para poder alcançar o estado de beatitude», já que à parte as míticas iluminações beatificantes de um Gautama Budha e outros iluminados há apenas estados beatíficos, momentos de maior comunhão com tal estado e nível espiritual e divino, demasiado rarefeito para o nível actual da Humanidade, tão dilacerada pela ignorância, sofrimento e egoísmo, e sejam estes nossos ou dos que nos rodeiam e sobretudo dos que nos desgovernam e oprimem. Aliás, o próprio Antero, se bem que refira à fase de Vila do Conde como a sua mais serena e feliz, classificará a sua obra poética de um modo bem mais humilde na carta a Santos Valente  (15/2/1883), referida por Rebelo Bettencourt: «Será a autobiografia poética de um sonhador, de um crente? - crente em quê? - no invisível, no insondável, no que não é esta miserável existência real, que evidentemente não pode ser o que parece, porque então o Universo seria absurdo. Esta grande máquina não pode deixar de ter um fim. Eu chamo a Liberdade a esse fim»...
 
 Onde Rebelo de Bettencourt torna a não compreender tão bem, parece-nos, é quando nos diz: «Como ele próprio nos confessa, o seu espírito naturalmente religioso tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida: - para aceitar Deus sem discuti-lo, como um mistério em que a pessoa humana se encontra envolvida igualmente, mistério piedoso e doce que se ama tal qual ele é, tal qual julgamos que ele seja».
A ideia de que devemos aceitar Deus tal como nos é passado nas crenças dos nossos antepassados, ou de seguir ou obedecer a uma regra religiosa sem mais, se serve a muita gente certamente que às pessoas mais individualizadas e despertas, ela poderá não ser mais do que um freio posto na mente e no coração  que aspiram a mais revelação ou compreensão do que aquela que vem do passado. Antero vinha para abrir caminhos de acção, de solidariedade social, de visão, de filosofia, de espiritualidade e não para ficar num sossegado rebanho de crentes ou seguidores de regras ou partidos...
Rebelo de Bettencourt (30-VIII-1894 a 4-IX-1969), açoriano...
Rebelo de Bettencourt, com o tempo, aderiu mais ao pensamento tradicionalista integralista nacionalista, considerando assim que António Sardinha, corifeu arguto do mesmo, teria sido quem melhor compreendera Antero de Quental e citando-o então algumas vezes no livro, do qual transcrevemos: «Pela primeira vez entre nós, no drama duma inteligência, se vivia e agitava o drama dum século inteiro, na sua ânsia de emancipação e na sua simultânea impossibilidade reconstrutora».
Que esta luta e dualidade entre as ânsias de libertação ou de conhecimento e a efectivação existiu nele não há dúvida, mas sempre tal houve e muitos outros seres a testemunharam e realizaram. A expressão "impossibilidade reconstrutora" pode ser uma crítica ao caminho mais revolucionário e independente de Antero. Neste sentido dirá ainda Sardinha, algo reacionariamente, pondo em causa o pensar-se criticamente os dados religiosos: «não faltou a Antero a acção corrosiva da análise, contagiada pelos pensadores protestantes à sua rica sensibilidade meridional, bem entretecida por uma sólida estratificação católica».... 
Estratificação algo simples e por vezes tão infantil e limitada que fatalmente o espírito mais profundo de Antero não poderia sentir-se bem enquadrado e coisificado nela e nos seus ritos e crenças. Mas sabe-se pouco da sensibilidade e distanciamento seus em relação às práticas comuns do Catolicismo, por vezes contudo bem patentes nos Sonetos ou mesmo o que do culto do Espírito Santo, tão açoriano, o terá tocado e quem sabe permanecido...
É valiosa a refutação que Rebelo de Bettencourt faz da justificação da doença de Antero ser  a de um degenerado hereditário, tal como Sousa Martins talvez algo pedantemente lavrara no seu contributo para o In Memoriam, de Antero, pois este, «descendente pelo lado do pai, de açorianos de S. Miguel, tem por mãe não uma açoriana mas uma senhora continental, natural de Setúbal, com quem o pai casara em Tomar. Seu avô paterno não casara igualmente com uma açoriana, mas com uma madeirense, de quem recebe o apelido de Bettencourt, com que, um dia, em Paris, se apresenta a Michelet».
O segundo capítulo do seu livrinho de comemoração dos 100 anos de Antero leva o título Antero e o ideal Socialista. Antero e os Republicanos, e narra como tanto o pai como o avô foram lutadores liberais e considera que Antero sempre foi socialista, mesmo depois de ter passado a sua fase mais activa, demarcando-se sempre dos monárquicos liberais e dos republicanos, já que o mais necessário era «uma reforma da economia política e uma melhor organização do mecanismo que produz e distribui a riqueza».
Contudo o ênfase que faz de Antero ser um anti-individualista, anti-liberal, anti-burguês, talvez seja um pouco demais sobretudo no individualismo, que Antero sempre assumiu, ainda que certamente considerasse que uma certa limitação do individualismo era essencial para se sair do egoísmo e se viver mais o interesse do Todo e que a Humanidade se encontrava nessa crise de saber dar tal passo, algo que ainda hoje a todos desafia...
É interessante compararmos com o que Fernando Pessoa afirmará 40 anos depois, no fim da sua vida, claramente num nível mais elevado da espiral da auto-consciência e da Tradição Espiritual Portuguesa: «Fui sempre, e através de quantas flutuações houvesse, por hesitação de inteligência crítica, em meu espírito, nacionalista e liberal: nacionalista - quer dizer, crente no País como alma e não como simples nação; e liberal - quer dizer, crente na existência, de origem divina, da alma humana, e da inviolabilidade da sua consciência, em si mesma e em suas manifestações.  Por isso me foram sempre origem de repugnância e asco todas as formas do internacionalismo, que são três: a Igreja de Roma, a finança internacional e o comunismo».
        
Do amor de Fernando Pessoa a Antero fala uma carta de 1915 a outro açoriano, Armando Cortes Rodrigues: «Mande-me quando puder, cuidadosamente copiados dos originais, os inéditos de Antero de que me fala. Pode ser que, tendo-os aqui, seja conveniente publicá-los nalguma parte. Haverá autorização para isso? É bom saber-se.»
No III capítulo, intitulado A crise portuguesa e o patriotismo de Antero, Rebello de Bettencourt exalta a consciência sincera, universalista e até nacionalista (certamente mais correcto será patriótica) que animou sempre Antero, ainda que estivesse tão desiludido com as lutas de partidos que chegasse a escrever a Oliveira Martins: «Afinal não pude parar em Lisboa. Não ouvia falar senão em roubos, tive medo de encontrar algum ministro e de ficar sem camisa»,  ou ainda: «É duvidoso se haverá posterioridade para este deplorável Portugalório de hoje», referindo ainda «o sentimento de desdém que me merece esta sociedade em que vivemos»
Já no final da sua vida, em 25/11/1890, numa carta ao jovem poeta Osório de Castro, testemunha a desilusão: «só um moço poeta podia assim idealizar as misérias da nossa vida política e põe ideias e sentimentos onde toda a outra gente põe interesses sórdidos e vaidades estultas e ferinas. A política nunca foi para poetas, hoje e entre nós menos do que nunca. Creio que fez muito bem em abandonar esse campo lamacento...»
Face à vileza dos interesses materiais, ao estado eunuco e comatoso de muita gente, bem como a ausência de «propósito, firmeza e força moral» que revolucionassem ou transformassem a sociedade, Antero vai apelar sobretudo a que «tratemos simplesmente, como indivíduos, de conservar cada um em si um foco tão intenso quanto possível de força moral, de inteligência calma e sofredora caridade, pois, no naufrágio desta sociedade, na perversão do espírito público, toda a esperança de regeneração está posta nas virtudes individuais. Se, no meio do geral envilecimento, a natureza humana se manifestar grande e amável em alguns poucos indivíduos excepcionais, ao mesmo tempo como protesto e como exemplo, não se poderá então dizer que está tudo perdido»
No IV capítulo, Antero e o seu Açoreanismo, Rebelo de Bettencourt flui muito bem e lembra até que logo em Coimbra, em 12/8/1860,  ele «redige com o seu patrício Alberto Teles de Ultra Machado uma carta aberta e um anúncio sobre Lírica Açoreana - uma colecção de poesias prosas poéticas de todas as poetisas, poetas e literatos do Arquipélago dos Açores», que os dois estudantes se propunham realizar e que, infelizmente não chegou a ser publicada». 
Em 26/6/1874, no meio das gentes e ambientes da ilha da Terceira, Antero, então com 32 anos, confessava a Oliveira Martins que «de dia para dia me vou sentindo mais português, mais descubro em mim a fibra nacional e mais preciso pôr-me em comunhão com a alma colectiva»...
Este desiderato, pelo qual Antero mais de uma vez manifestou o seu empenho, nomeadamente quando em 15 de Março de 1887 escreve de S. Miguel: «Tive um certo prazer em tornar a ver a minha terra, ainda que não sei porquê, e talvez só por instinto, pois deve haver uma relação profunda entre o homem e a terra, em que nasceu e se criou»,  não foi contudo suficientemente aprofundado e harmonizado para o ligar mais consciente e saudavelmente com a grande Alma Portuguesa, até como degrau intermédio com os mundos mais elevados e absolutos a que ansiava..
Transcreveremos agora dois parágrafos seguidos deste capítulo, o primeiro até porque no séc. XXI se fala já da nubloterapia: «É grande, na verdade, o parentesco existente entre os Sonetos de Antero e a paisagem de S. Miguel. A certos dias baços, de céu plúmbeo e ameaçador, que parece querer desabar e esmagar a gente, pode dar-se, sem forçar a nota literária, o nome de «dias anterianos» [talvez force um pouco...] Foi precisamente, segundo a corroboração de testemunhas presenciais, num anoitecer açórico, húmido, pesado, em que predominava a brisa salgada do mar, que Antero, numa hora de desespero e não de heroísmo [quem acertará na quantificação?], puxou, febrilmente [estaria, ou antes frio?], por duas vezes, o gatilho dum revólver.
Encontrava-se o poeta, nessa hora, sob a âncora simbólica da Esperança, junto a um muro do Convento, cujo terreno para a sua fundação - oh, suprema ironia [ou sabedoria...] do destino! - fora oferecido por seu décimo avô Fernão de Quental e sua mulher Margarida de Matos. E foi assim que esse homem de génio, que andou em busca da perfeição moral [e de um modo muito exigente...] para se encontrar a si próprio e a Deus, pôs termo à vida e entregou o corpo à terra onde nascera» e que se calhar já o estava a chamar irresistivelmente, impedindo-o de regressar a Lisboa e aí ficar...
Na II parte deste seu livro, Rebelo de Bettencourt escolhe extractos de algumas cartas, sob os títulos significativos e de facto recorrentes em Antero: A Missão do Escritor; Definição de Liberdade; Caridade e Humildade; O Pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho; Idealismo e Fé; Tese da Imortalidade. 
Na III parte,  Rebelo de Bettencourt dará, tal como António Sérgio e outros, a sua versão d' A «história» de Antero contada nos seus Sonetos, e valerá a pena observá-la criticamente (mas também  cardíaca ou cordialmente...): «Quem folhear Os Sonetos completos de Antero de Quental, além da história discreta e comovida de uma paixão, depara com um drama religioso, o drama profundo de uma consciência, em que se confundem, de uma maneira singular, espantosa, mas não alucinante, as dúvidas, as interrogações, as ansiedades e, a par de umas e outras, o desejo ardente de crer, de entregar, finalmente, o coração na mão de Deus. É esse desejo o que triunfa na obra e na alma do poeta, porque o que o leva ao suicídio não é aquele drama teológico, mas a doença que o atormenta durante uma largo período de vida e é a desesperança da sua cura.»
Admitindo que de facto foi a doença, o sofrimento, a degeneração sentida uma das causas principais da sua morte, pomos em causa o desejo ardente de crer, de entregar, finalmente, o coração na mão de Deus. Antero tinha passado esse estágio: a crença no Deus criador cristão derivado do furibundo Jehova já não podia satisfazer a sua alma nutrida no conhecimento comparativo das religiões e nas filosofias idealistas e vitalistas. Antero estava antes a fazer a sua síntese entre o naturalismo e um panpsiquismo, que seria o reflexo de uma vida divina omnipresente. E também a tentar coincidir ou unir a voz da consciência interior com a Divindade imanente. Era nesta direcção que Antero caminhava e que certamente poderia ter obtido mais resultados, tais como o de sentir o Amor divino em si, se tivesse conseguido meditar mais,  ou mesmo a Divindade dentro de si manifestando-se.
Tem valor a ideia veiculada em seguida por Rebelo de Bettencourt de que «até certo ponto, os poetas falam por si; de certa altura em diante começam a falar, como intérpretes do seus semelhantes, e o seu aparente pessimismo, no fundo, não é mais do que piedade pela desventura alheia». Talvez se possa ver mesmo mais: como uma osmose ambiental pela qual o poeta assimila e poetiza as aspirações, as dúvidas e as dores colectivas, naturalmente, já que tem a sua alma aberta tanto aos humanos como ao mundo das ideias-forças, a que chamamos psicomorfismos. E isso sem dúvida alguma se passou e por isso ele sempre foi tão lido ou cultuado...
O verdadeiro Antero, entre a terra, a história, a literatura e o mundo espiritual...
No faseamento do percurso poético diz-nos que é no 1º, «em que o poeta, ou por curiosidade filosófica ou cultura protestante, bebida nos filósofos alemães, mais duvidou». No 2º, de 1862 a 1866, dos 20 aos 24 anos, bastam os títulos como Amor vivo, Pequenina, a Sulamita, Idílio, para «depreendermos que estamos na intimidade dum amoroso, que acreditou no amor e que, por amor, veio a sofrer, como facilmente se adivinha, lendo os sonetos Na capela e O Palácio da Ventura. Devia, em verdade, ter sido grande o seu desgosto, pois, em suas mãos piedosas, o poeta desfolha, na sua própria expressão, "as tristes rosas da sua pálida e estéril mocidade".
De novo discordamos pois O Palácio da Ventura é um poema que não se refere ao amor humano, mas é uma espécie de aviso e sonho quanto à demanda prometaica de Fortuna e Felicidade,  sem mais...
Fazendo passar depois Antero por uma fase de crença, será no ciclo de 1874 a 1880 que Bettencourt vê mais dúvidas e sarcasmo, mais filosofia alemã ou protestantismo, reconhecendo no ciclo final que se abre desde 1880 «a fase mais serena de Antero, a fase da sua beatitude» pelo que protesta indignado contra os críticos "de cultura anarquista" que o consideram complicado, negando ainda «que seja inconveniente ou prejudicial para a mocidade culta» já que ela «saberá distinguir as perguntas e respostas, as dúvidas e as certezas». Propõe mesmo que se faça «uma antologia das suas prosas, dos seus pensamentos», donde «não sairá um código de inconveniências ou dislates», como afirma um dos mais ferozes detractores do grande poeta, a quem se tem conferido a designação de o maior, depois de Camões».
Nos poemas Solemnia Verba e O Palácio da Ventura apresenta-nos Rebelo de Bettencourt interpretações que não ecoam muito, embora na realidade cada pessoa leia e sinta um poema subjectivamente, pelo que se o poeta já não está incarnado não se pode ter a certeza qual era a motivação ou intenção do poema, para além de que mesmo tal possa ser ignorado pelo poeta, como Fernando Pessoa aliás tanto repetiu nas suas análises literárias, por exemplo, de Shakespeare ou de Cervantes, dos quais em 2016 celebrámos os centenários das desencarnações...
                                
Fiquemos pois com a ideia de que a vida, com a suas ilusões e desilusões, prazeres e dores, nos deve fazer ascender, desprendida e gratamente, a um nível em que já vemos ou sentimos  a Fonte essencial e Divina do Amor, qual Rosa Divina de Dante na Divina Comédia, que provavelmente estava na mente de Antero ao compor o Solemnia Verbae finalmente no Palácio da Ventura, mais do que «o soneto da desilusão do poeta, o soneto da história dos seus amores infelizes», «o desabafo natural, humano, dum homem que amou e não foi correspondido», é a constatação num sonho de que o mundo espiritual não é alcançado numa demanda de Ventura ou Felicidade exterior, pois mesmo nas regiões mais feéricas não se encontrará o santo Graal, já que é, concluiremos, dentro de cada um de nós, e pela vida justa, a meditação e a acção que iremos entrando ou erguendo a  frequência vibratória e logo sintonizando a realidade espiritual em nós, tornando-nos taças ou vasos de sabedoria e amor, ou como na Índia se dizia, de haoma ou amrita Divino. Consigamos ser portadores do Graal, e possa o Graal Divino ser-nos também intensificado, trazido ou desvendado pela amada, o Mestre, o Anjo...
Portugal, ou os portadores do Graal...

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