Natural de Ponta Delgada, José Rebelo de Bettencourt (30-VIII-1894 a 4-IX-1969) abandonou os seus estudos universitários em Lisboa (onde se tornara amigo, entre outros, do seu professor e também micaelense Teófilo de Braga, como narra nestas crónicas) para se dedicar à literatura, poesia, tradução e revisão e ao jornalismo, tendo trabalhado em vários periódicos, tanto no Continente como nos Açores, sendo estas Crónicas, além da sua obra poética, a sua mais significativa obra, ao testemunhar por dentro o início do movimento Modernista em Portugal.
Destaque para os textos sobre os açorianos Antero de Quental, ainda que algo incompreendido na sua realização espiritual, e Teófilo Braga, este sendo muito valorizado pela sua "bondade e lirismo". E são, certamente, bem valiosos os testemunhos sobre a Geração de Orfeu, ou os Rapazes do Martinho, com textos pouco conhecidos e citados mas com indicações preciosas acerca de Santa Rita Pintor, Almada Negreiros e Fernando Pessoa. O capítulo acerca de Fernando Pessoa é até muito profético, patenteando algumas intuições certeiras, pois em 1924 já discerne: «Esparsa e fragmentária é a sua obra, quase esquecida no Orfeu, no Portugal Futurista, no Centauro e na Atena, mas o seu espírito original e criador, a subtileza do seu pensamento, não hão-de morrer tão cedo, antes estarão sempre, como amparo e guia, ao lado de todos quantos, sentindo na sua inteligência a necessidade quase física de ser uma outra coisa, mais completa e perfeita, nele hão-de sentir o precursor dum grande movimento e a origem de uma nova vida.»
Uma imagem de José Rebelo de Bettencourt (1894-1969), já no fim da sua vida terrena, ele que fora um jovem açoriano admirador e discípulo do Futurismo e do Modernismo, amigo de Santa Rita Pintor, de Almada Negreiros e Fernando Pessoa, e colaborador na revista famosa e revolucionária Portugal Futurista, de 1917, liderada por Almada Negreiros, já que é ele (e o vertiginoso Raul Leal, em francês) que apresenta Santa Rita Pintor, em seis quadros futuristas excelentes, bem merecedores de meditação, dos quais transcrevemos apenas o 1º parágrafo: «Santa Rita Pintor começa por nos surpreender. Uma oculta energia afirma-se, desenvolve-se e prende-nos os sentidos. É uma sensibilidade mediumnica a sua - uma sensibilidade antena da sensibilidade universal.»
Carimbo de mais uma livraria, a Livraria Almeida, à calçada da Estrela, que deixou de existir no plano físico e da qual eu, muito jovem, quando ela estava a fechar, comprei muitos livros, entre os quais o do Rebelo de Bettencourt, graças ao seu antigo dono. Lux para ele.
O texto sobre Antero tem algumas limitações, pois Rebelo Bettencourt era jovem de trinta anos (embora já fosse o seu sétimo livro, tendo começado a publicar em 1913) e era-lhe difícil compreender bem a profundidade da demanda e das realizações psico-espirituais de Antero, mesmo que tenha havido (samuraicamente) o suicídio . Por exemplo, diz que Antero não teria sabido «encontrar na vida o seu rumo próprio». Não, Antero soube trilhar o seu difícil caminho, com o seu rumo próprio de poeta e de buscador da Verdade, da coerência, da dignidade, da Justiça, embora certamente pudesse ter enveredado por outras vias...
Onde diz bem é: «interpretou também o drama de todas consciências em crise», embora toda a gente tenha sempre a sua consciência com certa crise, ou difíceis escolhas de acções, decisões e aspirações, e não apenas os que não encontraram na vida o seu rumo próprio, como ele acrescentara. Por isso, Eduardo Lourenço me dizia há tempos, em diálogo anteriano, que o seu suicídio era também, ou sobretudo, o de uma geração, no que ela não se conseguira realizar plenamente, ou pelas contradições que não tinha conseguido fazer desaparecer ou esbater, e sabemos como elas subsistem nas sociedades, e logo nas pessoas, pesem as revoluções e os idealismos ou mesmo as vivências familiares e comunitárias muito harmoniosas...
O texto está comentado nas margens e, quem tiver dúvidas em ler, por favor, pergunte. Na imagem em cima, por exemplo, erra ao dizer que Antero buscava e desejava só a felicidade terrena. Ou que Deus é o repouso e refúgio das almas intranquilas como ele era. Antero alcançou uma compreensão do Espírito, embora mais no universo do que em si como centelha (o jivatman, da Índia, nele soterrado por visões negativizantes budistas) muito valiosa e apenas falhou porque na altura não conseguiu, apesar de se ter desprendido das concepções religiosas de Deus judaico-cristãs (a que Bettencourt parece quer sujeitá-lo...), alcançar interior e subtilmente ligações com a Divindade e o Espírito mais fortes e harmonizadoras...
Esta página tem ideias bem interessantes de se desenvolverem criticamente, das quais destacarei «o crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra conhecida», como autobiográfico de Antero, mas que nos parece reflectir um idealismo infantil e uma sujeição a um regra de vida, fatalmente estilhaçável face a o seu crescimento psíquico, tal como sucedeu, mas não para que a tranquilidade do coração rolasse para um abismo, como Rebelo Bettencourt imagina...
Certamente ajudaria a um bom discernimento compararmos a geografia dos abismos das fés e das religiões nas mentes das almas portuguesas, e não só, e naqueles tempos, nos de Antero e de Bettencourt, e nos nossos...
Esta geografia interna das profundidades, muito trabalhada prometaica e fausticamente por Antero e seu discípulo (e depois mestre...) Fernando Pessoa, tem sempre bastante de mistério para nos impulsionar às altitudes que as complementam, e que ambos não conseguiram tanto como desejariam ou aspirariam, por várias razões de escolhas e dos ambientes, e no fundo dos próprios "mundos de imagens" que deixaram criar sobre si próprios, de facto dificultando o pleno desvendar e manifestar do espírito individual e próprio.
Quanto a chamar de superstições à Liberdade, Igualdade, Razão e Justiça não valerá a pena comentar pois é mais que evidente que se tratam de atributos e qualidades divinas, ideias forças, psico-morfismos e que são personificados poética, revolucionária e arquetipicamente...
Fazer a analogia dos poemas com factos autobiográficos íntimos é um exercício de interpretação simbólica muito exigente e José Rebelo de Bettencourt talvez não estivesse tão preparado. Por exemplo, pensar que uma hora houve em que ele viu serem loucos os seus ideais e que mais valia ter caminhado com ódio, raiva e dor do que os ter sonhado. Ou que Antero era escravo de si mesmo e só raramente se interrogava intimamente e analisava, ele um dos mais exigentes pesquisadores da Voz da Consciência e da qual dá tantas vezes testemunho na sua correspondência, nomeadamente nas cartas a Fernando Leal, tal como já transcrevi num texto dedicado a este.
Seria Deus o remédio de todos os seus males, ou a Divindade foi antes bastante intuída por Antero e a sua morte tem a ver bastante mais com o desgaste do seu corpo e cérebro e da sua fraca inserção social e auto-imagem e, no caso concreto, a infelicidade de ser subitamente confrontado com a separação definitiva das suas duas crianças adoptadas?
As conclusões de José Rebelo de Bettencourt transparecem o seu catolicismo normal e não parecem muito acertadas: «Alma religiosa, afastou-se da fé - e foi a sua dúvida que lhe deu aquela dolorosa inquietação de alma e o levou à morte», pois Antero, mais que um homem de fé, foi um pensador, filósofo e gnóstico, embora mais filosófico do que de prática espiritual, e a inquietação e o desassossego, depois também muito desenvolvidos por Fernando Pessoa, não o levaram à morte por razões de falta de fé. Antes pelo contrário, talvez até porque a tivesse demais, ou não tivesse sido ele sempre um crente na irmã Morte libertadora, tivesse concluído os seus Sonetos, com o seu coração a descansar na mão de Deus, e fosse libertar-se voluntariamente do corpo num banco, provavelmente pintado de verde, debaixo de uma âncora com a palavra Esperança..
Já a citação de Eça de Queirós, o qual, tal como Oliveira Martins, não estava à altura espiritual de Antero, corresponde a uma ideia feita simpática, ou seja, a um branqueamento excessivo do acto, pois que à hora da desencarnação a cor da alma de Antero não seria a mesma com que começara a sua vida em S. Miguel, se é que ela não vem já tingida coloridamente...
Como se não tivesse havido todo um talhar de um corpo psico-espiritual, com claridades e sombras, certamente estas de algum modo contribuindo para a decisão, venha ela de que níveis ou plenitude de si mesmo, que o fez partir voluntariamente para as dimensões mais subtis da existência onde continua a sua peregrinação...
Muita luz e amor para e em Antero de Quental e José Rebelo de Bettencourt.
Em 1942, Rebelo de Bettencourt participou nas homenagens do centenário do nascimento de Antero (18/4/1842) publicando este livrinho de 78 páginas intitulado O Verdadeiro Antero no qual já consegue compreender melhor a sua vida e evolução (sobretudo porque tanto amadureceu como leu, e aduz parte da importantíssima correspondência) considerando-o não um ateu, pessimista ou panteísta mas um espiritualista. Noutro artigo faremos (feito) uma aproximação histórico-espiritual a tal obra de Rebelo de Bettencourt: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/05/o-verdadeiro-antero-na-visao-de-rebelo.html
(Nota final: A imagem incluída neste texto do banco e âncora da Esperança, em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, de onde Antero partiu em Setembro de 1891, muito conhecida, chegou-me com a adesão da Olga Silva (a quem agradeço), ao grupo Antero de Quental, escritor, hoje 6-2-23 quase obliterado, no tão censurador:
2 comentários:
que posso dizer ... foi com agrado que li e fiquei maravilhada.
Muitas graças, Ana, por tão bela apreciação. E peço muitas desculpas de só agora ter começado a conseguir responder aos comentários... Votos de muitas inspirações e criativas realizações!
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