segunda-feira, 22 de junho de 2015

Antero de Quental, a década dourada de Vila do Conde (1881-1891)

Os últimos dez anos da vida de Antero de Quental, 1881-1891, em Vila do Conde, à parte os iniciais, têm sido considerados pelos anterianos como os mais felizes da sua vida pois finalmente conseguira a almejada melhoria da saúde e certa ordem e sossego, dormindo, pensando e escrevendo bem (tanto os seus últimos ensaios filosóficos, como treze sonetos são a prova disso), vivendo acompanhado das suas duas pequenas, Beatriz e Albertina, filhas do amigo Germano Meireles e de Teresa de Jesus Costa, e recebendo vários ilustres amigos, tais como Jaime Magalhães de Lima, Joaquim de Araújo, António de Azevedo Castelo Branco e Eça de Queirós, para conversas peripatéticas na orla, certamente por vezes algo ventosa, do revigorante oceano Atlântico.
Da comunicação ao Congresso do centenário da sua morte em 1991, pela Ana Maria Almeida Martins, sem dúvida actualmente a melhor conhecedora de Antero, resultou a publicação em 1993 do belo livro Antero de Quental, a década dourada de Vila do Conde (1881-1891), do qual resolvemos partilhar a bela capa com a vista de Vila do Conde oitocentista, com o estaleiro junto ao convento, a dedicatória autógrafa da Ana Maria e algumas páginas e imagens.

Começo da narrativa da Ana Almeida Martins
Anotemos entretanto algumas frases significativas de Antero, tal como as consignadas na correspondência que foi endereçando a Alberto Sampaio, esta em 1881:
" O Verão de S. Martinho vai belo, e convida ao bucolismo e à filosofia peripatética. (...) Do teu vinho, que já tenho libado, dir-te-ei maravilhas. É em tudo digno da reputação que no ano passado alcançara e que fica agora inabalável (...) Isto por aqui é bonito, com o seu ar nobre e campestre, e põe a gente numa disposição de espírito plácido e suave. Para envelhecer em paz, era proximamente disto que eu necessitava (...)
Um bom abraço ao José, que, se um dia por aqui aparecer, me dará um alegrão. Do vosso do coração, Antero."

                                                    
De outra carta: "Este pobre Portugal tem-se feito tal, que não é agora senão para eremitas. Mas, para esses, parece terra fada, com o seu sol perene, os seus puros horizontes campestres, as suas largas praias que tão bem convidam a uma cismar melancólico e consolador. Este povo daqui parece-me simples e de boa condição, e em seu viver ainda antigo e católico..."
Realcemos nas cartas, além da belíssima "terra fada", a expressão final frequente de "seu ou vosso de coração, Antero", mas também o alegrão, o sol perene, o libar o vinho, a disposição de espírito plácido e suave e a terra fada, sem dúvida palavras importantes do testamento anteriano, o qual foi também nesta década efectuado em cartório, como nos diz numa carta a José da Cunha Sampaio, de 1890: "O Alberto que tome nota disto, pois, como testamenteiro e tutor das pequenas, pode ter que intervir se por qualquer caso esta minha máquina se escangalhar mais cedo do que se prevê"...
Significativa esta expressão da máquina que se escangalha, ou que ele próprio escangalhará totalmente, talvez porque gradualmente e de repente subitamente (no dia do seu suicídio) a sentiu irreparavelmente escangalhada...
Acrescente-se que em 1890, com o infame Ultimatum da Inglaterra a Portugal, Antero se viu confrontado com o desafio de ser Presidente da Liga Patriótica do Norte, deslocando-se então para o Porto, onde foi recebido delirantemente, pelos estudantes e população mais patriótica.  Cedo porém a falta de apoio dos partidos e dos políticos acabou o sonho dos estudantes e dos idealistas nortenhos, certamente apressando a desilusão de Antero de Quental em relação a Portugal, talvez até ou sobretudo Continental, regressando aos Açores, a sua ilha natal berço da vida, seio da morte, de certo modo libertadora...
Terminemos este pequeno texto, com mais uns fragmentos, e uma carta de Antero, reproduzida por Ana Maria Almeida Martins na obra,  e que é muito actual:
"O reconhecer-se que uma coisa é má não é razão suficiente e necessária para que ela se reforme: é preciso ainda saber e querer fazê-lo. No fundo o país quer isto, que tem". E a pergunta que a Ana Maria Almeida Martins faz e resposta que ele pela citação lhe"dá", inserida na página 49: «Antero sempre se caracterizou fundamentalmente como um crente. Em quê? "No invisível, no insondável, no que é esta miserável existência real que evidentemente não pode ser o que parece porque então o universo seria absurdo. Esta grande máquina não pode deixar de ter um fim. Eu chamo liberdade a esse fim".
Anote-se de novo a expressão "máquina" tanto para o universo como atrás para o corpo, e a sua ânsia ou ideal supremo da Liberdade, quando poderia ser o Amor, a Inteligência Cósmica, a Divindade. 

Mas certamente que a ideia de Liberdade tem ou poderia ter muitas conexões com a filosofia Oriental indiana, nomeadamente com Libertação, e que é tanto designado como Kaivalya como Nirvana, de tão grande elevação metafísica e espiritual mas de complexa definição e dificílima plena realização.
Prossegue então a Ana Maria Almeida Martins: "E quando entre os seus contemporâneos se considerava a metafísica tão absolutamente morta como a mitologia greco-romana, para Antero ela era, justamente, a essência da religião [eu diria mais que a metafísica é uma ossatura racional da realização religiosa e espiritual obtida] e, em época de grande crise em que a grande crença colectiva se dissolve «cada qual tem de procurar sozinho com o suor do seu rosto e a ansiedade do coração, para conseguir uma espécie de religião individual, que no fim de contas nunca pode equivaler em firmeza, confiança, serenidade, àquela ampla comunhão espiritual, ideia-sentimento em que a fraqueza do indivíduo se ampara na potência da colectividade»" (Carta a Oliveira Martins).
Será valioso equacionarmos com o decorrer dos tempos, e hoje já mais de cem anos passaram, a erosão da confiança e serenidade sentida pelas pessoas amparadas na potência da colectividade religiosa e espiritual e como provavelmente devemos a Antero de Quental, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoais (ou Pascoaes), Sant'Anna Dionísio, Agostinho da Silva  e mais alguns mais lúcidos, uma certa emancipação de amparos meramente sentimentais, os quais podem  diminuir a demanda da verdade, não só filosófica mas sobretudo religiosa, na linha designada por Antero de Quental como uma religião individual, vivida interiormente, usando mesmo a expressão «ampla comunhão espiritual». 
Ampla não só em crenças e comunidade de seres (o chamado corpo místico da Igreja ou da humanidade), como também na expansão de consciência obtida em práticas, intuições e graça.
Esta posição pioneira e difícil de Antero, que pode mesmo ter tido uma pequenina influência nos múltiplos factores que desencadearam a sua morte "samuraica", como também na desagregação precoce de Fernando Pessoa, é contudo cada vez mais necessária e actual, pois devemos ir além do Bojador das crenças e medos e alcançar a Ilha do Amor e a visão espiritual e divina que penetra as opacidades e distâncias do Mundo.

Algo que se vai desenvolvendo no Caminho espiritual justo e harmonioso, transcendente e imanente, pelo estudo, o amor, a abnegação, o serviço, a aspiração, a intuição interior e a experiência ou visão no olho e ser espiritual e a religação à Divindade...

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