segunda-feira, 22 de junho de 2015

O soneto "Evolução", um dos últimos sonetos de Antero de Quental. Revisitação e hermenêutica.

                 Revisitação de um do sonetos, escritos entre 1881 e 1991, a Década dourada de Vila de Conde, na feliz expressão de Ana Maria Almeida Martins: Evolução.
  
Sanguínea de António Carneiro...
                                
 I - EVOLUÇÃO                     
                                (A Santos Valente)

Fui rocha em tempo, e fui, no mundo antigo
Tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...

Hoje sou homem - e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, na imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade."


A Evolução é um poema bastante filosófico,  no qual Antero de Quental não está a exprimir tanto uma clara vivência interior nem sequer uma certeza, mas a poetizar ideias e possivelmente sentimentos vividos, ou mesmo intuições, acerca da evolução dos seres na Terra, das quais destacaremos a sua passagem a meio de tal escala ascendente, por ter sido escrito talvez nas praias do mar bravo de Vila de Conde, "Onda, espumei, quebrando-me na aresta//Do granito, antiquíssimo inimigo", realçando-se a oposição ou luta do líquido e do sólido que bem poderia ser antes de abraço amoroso, ainda que por vezes bem poderoso...
Poderemos interrogar-nos sobre em que percentagem ele acreditaria nesta evolução que retrata bem no poema, e que é a que vai da pedra ao animal e por fim ao homem. Como sabemos, não é esta a visão da Igreja Católica onde Antero fora doutrinado em criança. Posteriormente, os seus estudos filosóficos evolucionistas e por fim budistas deram-lhe certamente motivos para admitir tal hipótese de metempsicose, mas em que proporção acreditava ou duvidava não sabemos, embora nos pareça que nele haveria um presentimento ou uma intuição do espírito como estando acima da evolução do corpo animal para o humano...
O terceto final é bem rico, parece claramente mais sentido e vivido, pois muito se interrogou embora já não saibamos quantas vezes, algumas mencionadas por amigos, terá chorado....
A posição de estender as mãos no vácuo ou no ar é uma boa posição de oração e de demanda e pode ser certamente autobiográfica, mesmo que apenas mental e afectivamente e não corporalmente.
Já o "adoro e aspiro unicamente à liberdade" também parece bastante sincero e tipicamente anteriano, ao valorizar talvez excessivamente a liberdade, pois esclarece que unicamente a ela adora e aspira.
O que nos diria hoje Antero? 
Diria só a Liberdade, ou antes o Amor, ou a Divindade?
A que devemos nós aspirar e adorar ou amar supremamente?
Por mim diria: eu aspiro, amo e adoro a Divindade, a Realidade, a Verdade, o Amor, a Sabedoria... Ou seja reconheceria tanto uma Divindade suprema, transcendente como também imanente, Deus em nós, o que aliás Antero em certas cartas a amigos bem valorizou como a Voz da Consciência... E reconheceria e invocaria depois os seus atributos, qualidades e arquétipos, a eles me abrindo quando aspiro, oro, medito, escrevo, trabalho e luto...
O que nós amamos verdadeiramente, e logo aspiramos e veneramos ou adoramos, é então fundamental de ser equacionado por cada um... 
Ao fazê-lo estamos a cumprir o testamento espiritual de Antero de Quental e estamos a levar mais longe o facho de Luz empunhado por ele e que a Divindade, a Verdade ou o Logos, ou as suas correntes de amor e sabedoria, em nós acendes na braçada de amor, que em esforço e sabedoria conseguimos manifestar...
Possamos ser agraciados com a memória da descida na espiral imensa do tempo, reminiscência do que já fomos ou do que em nós está subtilmente à nossa espera para realizarmos...

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