sábado, 18 de abril de 2015

Ensinamentos de Antero de Quental. A ordem dos Mateiros, e a realização espiritual interior.

Antero de Quental, espírito imortal, em luz azulada...
  Se é no seu rico epistolário que encontramos os ensinamentos espirituais e éticos, filosóficos e morais, políticos e revolucionários que Antero mais quis transmitir aos seus amigos e leitores, certamente que na sua poesia e prosa os encontramos também, e desse todo desabrocham os sinais e indicações que nos ajudam a sentir as dúvidas e as lutas em que esteve envolvido, as realizações e as intuições conseguidas e a aperfeiçoarmos a nossa demanda de unificação e plenitude anímico-espiritual.
Nos seus Sonetos, a obra mais completada ou aperfeiçoada, consultando o exemplar onde uma arejada, elegante e espraiada letra reza «ao seu querido amigo António de Azevedo Castello Branco off. o autor», encontramos constantemente os sinais dessas batalhas e demandas de Verdade que caracterizam Antero, desde os que mostram a sua ânsia e esperança de amor, beleza e sensibilidade, até aos que partilham o seu enleio num certo desânimo, vazio e morte...
Relembremos a sua grande desilusão nos últimos meses de vida, aquando do Ultimato e da Liga Patriótica do Norte, com o país, os partidos e o governo que abafaram a reacção popular, deixando escrito,  em carta de 22-VI-1890: "O que se passou durante este Inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos candidatos do Governo, Governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião estava lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas!" males que se foram repetindo ao longo dos tempos e até aos nossos dias...
Mas onde, em que aspectos, é que Antero de Quental poderia ter ido mais longe, seja em si ou por si, seja em acção grupal?  Onde é que Antero é mais hoje um mestre a ser pensado, ou seja, alguém com ensinamentos dignos de serem lidos e meditados, aprofundados e vividos? Que sugestões e impulsões nos pode dar ou suscitar? Em que aspectos mais importantes se insere na Tradição Espiritual Portuguesa?
Tais questões são bem vastas e tentaremos apenas apresentar duas ou três linhas de força bem patentes.
É significativo ser natural duma ilha dos Açores e da família do Padre Bartolomeu de Quental, um escritor e moralista de grande fama, com alguma atracção pela mística e que andou a educar com santas histórias e exempla centenas e milhares de pessoas, sobretudo nas reedições dos seus best-sellers, terminando, contudo ou assim, os últimos anos mentalmente  como uma criança. E era neto do poeta e ousado pensador André da Ponte do Quental e Câmara, o «amável amigo» de Bocage que lhe dedicou uma ode e uma quadra que Antero leu e da qual certos ensinamentos colheu e que de algum modo parafraseou numa das suas poesia iniciais...
Antero jovem, querendo vencer os atavismos nacionais
Será tendo em conta essa rica vis hereditária que Antero lançará e se embrenhará corajosamente pelas vias românticas e amorosas e depois revolucionárias e socialistas seguindo-se as espectrais e fabulosas do negativo, do inconsciente, do não-ser e do Budismo, por fim transformados tanto num Helenismo coroado pelo Budismo como num panpsiquismo eo  «mais completo espiritualismo» de ordem sobretudo ética e moral e de coincidência entre o saber e o ser, como atesta a sua última obra Tendências Gerais do Pensamento Filosófico na segunda metade do séc. XIX.
Cortou contudo voluntariamente os seus sofrimentos psicosomáticos e os conflitos da desadaptação a uma sociedade dominada por uma predominância egoísta e insensível, ao extinguir voluntariamente em 11 de Setembro de 1891, tal como um samurai, o seu corpo-alma bastante depauperado, envelhecido e desiludido, embora super-sensível, aliás esta última faceta  intimamente ligada com a sua alma-espírito...
Mas como estaria ela no momento da morte, e para onde foi projectada e com que consciência, será sempre um mistério...
Passados estes anos poderemos pensar e intuir onde e como estará este filósofo idealista da Justiça e místico pesquisador da Verdade e que era também quase um santo, como foi chamado por dois ou três dos seus seres mais íntimos, pelo seu amor e o altruísmo?
Certamente, mas apenas em experiências interiores que dificilmente se podem comunicar ou publicitar e talvez no estoicismo e sobriedade de vida...
Que duas ou três linhas de força deveremos então realçar dele e  dos seus ensinamentos e vida, que sejam utéis à nossa evolução e à da Humanidade, à nossa passagem pelo plano terrestre e continuidade no além?
Entre os muitos aspectos e pensamentos, e é um trabalho que ainda muitos frutos têm a  dar, pois muitos dos que o comentaram fizeram-no debaixo de perspectivas materialistas, meramente psicológicas e católicas, sem terem em conta a sua qualidade de ser espiritual, relembraria primeiro um aspecto valioso e que para a maior parte das pessoas e até anterianos é de somenos importância, sendo quase desconhecido: a Ordem dos Mateiros, a ordem de contemplativos vivendo numa mata ou bosques, a sua ordem espiritual ideal, o seu “eremitério de S. Columbano”, que Eça de Queirós refere (desenvolvidamente e donde retiramos por um extracto) no seu contributo para o In-Memoriam de Antero, «Antero pensava que uma forte reacção espiritualista e afectiva se seguiria à materialidade deste duro século utilitário e mercenário; - e, rindo, relembrou a sua antiga ideia, a fundação da Ordem dos Mateiros. Estes monges do idealismo, teriam por missão reconstituir , em toda a sua beleza e dignidades primitivas, a vida rural, a mais elevada, porque imolando toda a civilização sumptuária, e portanto todos os apetites, e paixões e necessidades falsas que dela derivam, e reclamando a cada bocado de terra o seu bocado de pão, conquista socialmente a verdadeira liberdade, e através dela se prepara a atingir espiritualmente a verdadeira perfeição»...
 Por Antero, da Ordem dos Mateiros, só ficou uma referência expressa, numa carta de Vila de Conde, não datada, mas provavelmente após 1886, a Joaquim Gonçalves:«Mas os versos que eu quisera fazer só se farão daqui a duzentos ou trezentos anos, nalgum convento da Ordem dos Mateiros, que alguém mais feliz que eu conseguirá fundar».
Um sonho de forças anímicas portuguesas bem agrupadas e que passou depois a Fernando Pessoa mas não foi realizado (ficando várias fragmentos com tais projectos), e que perpassou ainda nos diálogos do genial Leonardo Coimbra, nos quais participaram entre outros Sant'Anna Dionísio, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, este por fim dando-lhe de novo forte impulso mas que não foi consolidado, alargado e cumprido como se antevia, devido a intervenções exteriores, nomeadamente do então ministro da Educação Roberto Carneiro, que desviou e acabou com o seu Fundo do Bem Comum del Rei Dom Dinis que se destinava exactamente a apoiar experiências comunitárias ou  conventos do Bem Comum.
Hoje em dia este psicomorfismo de um grupo ou ordem espiritual encontra-se visível em certos aspectos em algumas comunidades, associações, tertúlias e ordens, ora culturais ora esotéricas,  muitas vezes porém demasiado superficiais ou comerciais, e raramente implementando bem a harmonia entre a Terra e o Céu, o discurso e a Verdade, a multiplicidade e a Unidade, a partir de uma realização espiritual interior e de uma vida harmoniosa, justa e corajosa.
Certamente que tais ordens ou pequenos cosmos mais harmoniosos houve-os e os há também dentro das religiões, em especial na Índia e no Extremo Oriente, com os seus ashrams e viharas, mosteiros e jinjas, Oriente este do qual aliás o próprio Antero não andou distante não só pelo seu grande interesse pelos Vedas, a literatura Persa e o Budismo, mas também porque admitira até numa carta de 1886: 
Para onde irei? Ignoro; talvez daqui até lá, indague dum emprego para a Índia, para Goa ou Macau, países onde a vida moderna não deve ostentar-se em muito excessivo luxo de seu vermelho sangue burguês e gordura de banalidade, como acontece nesta Europa soesmente comodista, esta Cartago sem Moloch - mas com muitos mercenários”, descrição talvez ainda hoje mais verdadeira...
O dito “o meu reino não é deste mundo”, que ele glossava e viveu de certo modo nas suas peregrinações e experiências, é cada vez mais real, pois a Idade de Ouro ou V Império sonhado por alguns é claramente uma utopia impossível exteriormente, apenas contando e surgindo como realização individual interior, partilhada, vivida ou sentida por uns poucos ou pequenos grupos, dentro da linha expressa aliás por Jesus quando afirmou «onde dois ou três se reunirem em meu nome, eu (o Espírito) estarei no meio deles», certamente podendo eles sentirem então mais naturalmente o mundo espiritual e divino que a todos perpassa...
Ordem dos Mateiros da qual se falará pouco, umas linhas aqui e acolá, nas referências leves de alguns comentadores posteriores, como Faria e Maia, Jaime de Magalhães Lima e Fidelino de Figueiredo (neste mais desenvolvidamente, sugerindo três virtudes nos que militassem na Ordem dos Mateiros: "firmeza, paciência e esquecimento, colunas do convívio pacífico dos homens"), mas que continua a ser uma seta iluminada, um arquétipo de sábios em estudo e diálogo, como ele conseguira por vezes nas conversas peripatéticas na Natureza ou junto à orla do Oceano, com alguns dos seus amigos, e nas cartas em que dava conta dos seus esforços na descoberta do paradigma filosófico espiritual a que tanto aspirava mas para o qual já poucas forças realizadoras sentia para descrevê-lo sistematizadamente.
E em segundo lugar ou linha de força, a realização interior espiritual, concomitante à descoberta da doutrina mística definitiva, dentro da realidade e com sólidos alicerces, numa síntese que conciliaria o naturalismo científico e a metafísica, afirmando por exemplo que “se pode pela aprofundação da natureza humana (e por analogia invencível, de toda a natureza) chegar ao mais completo espiritualismo, a um panpsiquismo que se acomoda perfeitamente, ou antes harmoniza necessariamente, com o materialismo, e ainda o materialismo das ciências naturais... chegar teoricamente até aquela profundidade de compreensão do “Homem interior,” como eles diziam, a que os místicos chegaram”.
"Homem interior", que já vinha dos Persas e Gregos mas era aqui referência sobretudo dos místicos do norte da Europa medievais e que Antero lia e apreciava, nomeadamente essa obrazinha intitulada Theologia Germanica que ele possuía na cabeceira e lia.
   Ora há muitos sinais que Antero de Quental intuiu e sentiu esse Homem Interior, essa voz de consciência, essa iluminação, e que a pressentiu e a realizou mesmo de quando em quando.
Tentando ver e sentir para além do bem e do mal...
Oiçamo-lo então em algumas cartas falando da realização espiritual: a Ferreira Deusdado, de 7-IX-1888, escrita em Vila do Conde, é bem valiosa, pois após realçar  "a aliança do Kantismo com o espiritualismo", afirma: " O espírito humano não é um fragmento truncado e incompreensível ou uma coisa à parte isolada no meio do Universo, mas sim um elemento fundamental dele e a mais alta potência e expressão da sua essência (...)
A metafísica e o espiritualismo só poderão ser destruídos quando ao mesmo tempo forem abolidos a razão e a consciência humana. Em conclusão, dou-lhe parabéns pela lúcida direcção do seu pensamento, tal qual o seu livro, pela prudência e segurança do seu método, e, finalmente, pela simplicidade desprentiosa da sua exposição.  E termino agradecendo a oferta e o proveito que me proporcionou com aquela leitura, e a consolação que senti ao ver que no meio do deplorável amesquinhamento, a que assistimos "há ainda perfumes em Galaad"»
Oiçamos ainda o que ele nos diz numa carta enviada ao poeta e peregrino, natural da Índia, Fernando Leal, seu grande amigo:
"É bom, é até necessário passar pelo Pessimismo, mas não se deve ficar nele por muito tempo. O Pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho. É a síntese das negações na esfera da natureza, a luz implacável caída sobre o acervo de ilusões das coisas naturais. Mas, para além da natureza, ou, se quiser, escondido, envolvido no mais íntimo dela, está o mundo moral, que é o verdadeiro mundo, ao qual a harmonia, a liberdade e o optimismo são tão inerentes como ao outro a luta cega, a fatalidade e o pessimismo. Afinal, não vivemos verdadeiramente senão na proporção do que partilhamos desse mundo íntimo e perfeito, ou, mais exactamente, da parte dele que desentranhamos de nós mesmos e fixamos nos nossos pensamentos, nos nossos sentimentos e nos nossos actos. Já vê que a existência tem um fim, uma razão de ser, e o Fernando, embora diga sinceramente o contrário, no fundo não o crê. Lá no fundo do seu coração há uma voz humilde, mas que nada faz calar, a protestar, a dizer-lhe que há alguma coisa porque se existe e porque vale a pena existir. Escute essa voz: provoque-a, familiarize-se com ela,e verá como cada vez mais se lhe torna perceptível, cada vez fala mais alto, ao ponto de não a ouvir senão a ela e de o rumor do mundo, por ela abafado, não lhe chegar já senão como um zumbido, um murmúrio, de que até se duvida se terá verdadeira realidade. Essa, meu amigo, é a verdadeira revelação, é o Evangelho eterno, porque é a expressão da essência pura e última do homem, e até de todas as coisas, mas só no homem tornada consciente e dotada de voz. Ouça essa voz e não se entristeça.
E, para terminar imitando o delenda Carthago de Catão, repetir-lhe-ei: saia de Lisboa, e, se puder, case."
Anote-se, para finalizar, que Fernando Leal seguiu o conselho desta carta de Antero, enviada da tebaida de Vila de Conde em 1886, e regressou a Goa, casando-se com Maria Guiomar de Noronha, irmã da minha bisavó e que quase o adorava, embora a diferença de idades fosse de trinta anos. E que a expressão Evangelho Eterno remete para o conhecimento de Joaquim de Fiora, que lançou esta expressão e visão dinâmica da história e da possibilidade de constantes novas páginas de "anúncios de boas novas", Evangelho), inspiradas pelo Espírito santo, ou seja, a presença divina e criativa no ser humano.
Terminemos com a carta de 26-VIII-1899 a António Molarinho (1860-1890), e que se tornou prefácio do seu livro póstumo (1921) Lira Romântica, organizado por Adelaide Molarinho e Aristides Mendes (e que já desenvolvemos num artigo do blog), contém mais achegas para a compreensão do alto nível de espiritualidade, suprapessoal e ética, a que Antero de Quental intuía: «Creio que a virtude pode mais e é mais que a arte. E dura mais também: dura eternamente. As obras do bem, ligadas indissoluvelmente à substância do Universo, absorvidas, desde o momento da sua produção, para nunca mais saírem dele, vinculadas, pela cadeia duma casualidade superior, a todas as suas evoluções através dos tempos, dos espaços, dos mundos, vão aumentar o tesouro da energia espiritual das coisas fecundá-las nos seus mais íntimos recessos e, sempre presentes, sempre activas, eternizam, nessa sua perene influência, a alma donde uma vez saíram. O Universo só dura pelo bem que nele se produz. Esse bem é às vezes poesia e arte. Outras vezes é outra coisa. Mas no fundo é sempre o bem e tanto basta".  

 
                        "A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência, 
                                           Só se revela aos homens e às nações  
                                           No céu incorruptível da Consciência".
 Saudemos Antero de Quental e, onde quer que a sua alma esteja, que o seu Espírito divino brilhe e irradie cada vez mais.

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