sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

José Vitorino de Pina Martins. Percurso e Biblioteca. Exposição na Fundação Gulbenkian


O prof. José Vitorino de Pina Martins , como que caminhando para nós do além e lembrando-nos do corpo místico da Humanidade, onde as almas (e os seus livros...)  sempre se comunicam...
Artur Anselmo, com Aires do Nascimento, dos amigos e discípulos de Pina Martins que sabem mais de livros e suas mensagens, rodeado de uma administradora da Fundação Calouste Gulbenkian e de Vanda Anastácio, a comissária da Exposição.
Numa curta prelecção de uns 15 minutos, lembrou o amor de José V. de Pina Martins aos livros e à leitura dos mesmos, e como eles são pontes entre o passado ("a civilização antiga" e o Humanismo) e o futuro ( "o mundo por vir" e os Descobrimentos), tal como a efígie do Janus bifronte escolhida por Pina Martins para seu emblema e ex-libris  simboliza, e que Anselmo caracterizou ainda como representando a Itália e Portugal,  tanto mais que fora aí que ele despertara mais para o Humanismo e tendo as suas investigações cruzado bastante estes dois povos e culturas nas suas influências.
Uma boa descrição cronológica dos principais momentos da vida terrestre (Penalva do Castelo,18/1/1920 -  Lisboa, 18/4/2010) deste nosso notável investigador e escritor corre ou perpassa ao de leve pelas paredes, suportada por textos e fotografias documentais do seu espólio. Os livros oferecem-se mais no espaço central, numa boa visão geral idealizada e concretizada por Mariano Piçarra...
José Pina Martins e sua filha Eva Maria, que estava ao meu lado quando esta fotografia foi tirada a ela jovem... O tempo foge mas a alma espiritual permanece...
A primeira edição da obra completa de Pico della Mirandola, a Opera Omnia de 1496,  feita pelo seu sobrinho. Pico foi sem dúvida um dos grandes amores de José Pina Martins, que sentira animicamente relações antigas com Florença na primeira vez que entrara em S. Maria Magiore, onde se encontra sepultado porém não Pico mas o seu amigo Marsilio Ficino, outro dos eleitos de José V. de Pina Martins...
Marcel Bataillon (1895-1977), seu amigo e que ouviu pela 1ª vez em 1946 em Coimbra, foi  um dos grandes estudiosos e sábios do Humanismo e em especial de Erasmo, nesta fotografia a ser homenageado quando Pina Martins (que admirava muito o seu obstinado rigor na investigação e a sua lúcida e clara abrangência dos contextos) dirigia de modo exemplar e frutuosamente o Centro de Paris da Fundação Calouste Gulbenkian. Pouco antes de morrer, ao saber de algumas descobertas  por Pina Martins de influências e excertos erasmianos em obras de italianos, exclamara: "Erasmo reservar-nos-á sempre surpresas" ,  germinação do dito do notável humanista inglês John Colet, "O nome de Erasmo nunca perecerá"...
Um dos grandes sábios do Humanismo em França, Guillaume Budé (1468-1540), próximo de Lefévre d'Etaples et de Charles de Bouvelle, como os representantes do humanimo francês. Uma das suas obras Do Trânsito do Helenismo ao Cristianismo, 1535, destaca-se na ideia mestra do Humanismo: as Letras Clássicas prepararam o terreno para o Cristianismo, a cultura profana e a religiosa complementam-se...
Não são tão invulgares quão belos estes livros antigos encadernados com folhas de antifonários anteriores. Neste caso é o tratado enciclopédico Margarita Philosophica, do frade cartuxo Gregor Reisch, numa edição veneziana quinhentista, que se encontra encoberta pelas subtis vibrações melodiosas, realçadas pelas letras capitais iluminadas Não há ainda nenhum estudo sobre a intencionalidade de tais encadernações, certamente na maior parte dos casos para aproveitamento esteticamente belo numa encadernação de material musical fora de uso, mas não se pode excluir a ideia de preservação futura delas ou mesmo de mensagem de protecção musical subtil ao livro contido. E só uma leitura clarividente dos seus efeitos nos que leram tal obra aos longo dos séculos poderia ainda confirmar tal teorização...
Frontispício com bela tarja renascentista alegórica das virtudes do cavaleiro ou soldado cristão, de um dos livros mais importantes e lidos de Erasmo, no qual expõe a sua visão da docta pietas da Filosofia ou Sabedoria de Cristo, e que teve grande sucesso na Península Ibérica, tal como Marcel Bataillon provou na sua fundamental obra Erasme et l'Espagne. Quanto ao Enchiridion, cuja edição princeps é de 1503, e que teve alguma modificações, pese a sua linguagem fervorosa algo ultrapassada, esperamos um dia publicá-lo em Portugal, numa tradução com Álvaro Mendes, como já fizemos no Modo de Orar a Deus, impresso nas Publicações Maitreya.
Parte da montra com livros antigos e modernos erasmianos, destacando-se os dez volumes da edição de Allen da Correspondência valiosíssima de Erasmo com os outros humanistas do seu tempo, destacando-se algumas com o nosso Damião de Góis, um  dos últimos dos seus discípulos e que habitou com ele ainda alguns meses, tal como na Índia se fazia e faz com a instituição dos ashrams.
Uma bela gravura setecentista de Erasmo de Roterdão, o Cristo (ou um dos Cristos...) do Renascimento...
O famoso dito que ecoou pouco depois da sua morte terrena, Sancte Erasmo, ora pro nobis, testemunha tal realização...
Uma das mais belas encadernações, certamente quinhentista alemã, em pele de porco, e com um super-libros heráldico,  gravado na pasta frontal a seco e a ouro, de uma alta personagem da época. A escolha das encadernações apresentadas nesta exposição foi feita pela Margarida Cunha, amiga próxima de Pina Martins e que se foi especializando nas encadernações antigas...
Beatus Rhenanus foi um dos grandes humanistas da época amigo e colaborador de Erasmo, de Lefévre d'Étaples e do notável impressor Iohann Froben passando-se contudo na altura da Reforma para o lado dos Prostestantes, mas de uma forma moderada. A sua biblioteca já era na altura local de encontro de pesquisadores no círculo de Schlettdstadt e está também hoje preservada como biblioteca Museu, o que já não se pode dizer seja dos livros de Erasmo ou de Pico, por exemplo.  A de Pina Martins poderá talvez tornar-se também fomentadora de estudos humanísticos em Portugal...
Conseguir dispor ordenadamente os livros de uma boa biblioteca é sempre uma tarefa bem necessária e agradável, quando há espaço e  prateleiras para tal... O Professor Pina Martins tinha dois andares com livros e um deles com um outro andar em cima, este onde guardava as suas obras e as gravuras, além de um milhar de livros mais recentes de apoio aos seus estudos...
Uma explicação do desenho anterior em termos do andar principal da sua biblioteca e onde estavam quase todos os seus livros antigos, nomeadamente os poucos incunábulos e os numerosos quinhentistas...
Pequeno texto de José V. de Pina Martins acerca do comentário de Pico della Mirandola à Canzone d' Amore de Girolamo Benivieni, de 1496 e de que possuía um exemplar da "mimosa" edição de 1522. Pina Martins interessou-se bastante sobre a tratadística do Amor, tendo escrito sobre o assunto e dialogado...
Sá de Miranda, além de Camões, era o seu principal amor na Literatura Portuguesa e a ele dedicou vários estudos. E com o Pires,  fundador da livraria alfarrabista  O Mundo dos Livros, junto ao Teatro Trindade, ainda hoje a funcionar com ele e sua filha Catarina, reeditou esta raríssima edição quinhentista das Obras completas, além de outros opúsculos que eram dados como presentes de Natal gratuitamente aos bibliófilos amigos, numa bela tarefa de divulgação de pequenas obras ou excertos de grandes autores.
Gravura inicial de uma edição quinhentista francesa da Utopia de Thomas Morus, na qual a principal personagem é o português Rafael Hitlodeu, representante do conhecimento humanista e fraterno que as Descobertas deveriam proporcionar. Esta obra ainda hoje é levedante de criatividade utópica que ultrapasse o dilema Sistema capitalista imperialista e fundamentalismo terrorista. Pina Martins era um grande devoto de Santo Tomás Moro (decapitado em 1535), tanto mais que ele se considerava um discípulo do Humanismo Italiano, ao amar e traduzir Pico della Mirandola e ao ter tido Marsilio Ficino e a sua edição da República de Platão como uma das fontes da imortal Utopia, em cuja tradição Pina Martins se inseriu ao publicar em 2005 a sua valiosa Utopia III, um dos poucos afloramentos utópicos eruditos em Portugal.
Bela ilustração de uma edição quinhentista da Divina Comédia de Dante, com a Beatriz como psicopompa prestes a enlaçar ou orientar, pela sua alma já plenamente luminosa e clarividente, Dante, ainda peregrino terreno...
A belíssima gravura inicial do Supplementum Chronicarum do monge agostinho Jacobus Philippus Bergomensis, representando a Criação de  Eva do Adão adormecido, obra muito reeditada enquanto enciclopédia geral e cuja 1ª edição é de 1483, Veneza.
O Professor Aires do Nascimento, que traduziu a Utopia  de Thomas More recentemente para português, com um notável prefácio de Pina Martins que o convidara para tal tarefa, em simpática conversa com uma arquitecta sábia, a braços com a tarefa hercúlea de preservar os espólios dos arquitectos que vão desaparecendo e que bem precisava de uma secretária...
Esta raríssima edição quinhentista lisboeta de Garcilaso de la Vega, que Sá de Miranda ainda conheceu em Espanha, foi comprada em Lisboa na afamada e das mais antigas leiloeiras de livros, provavelmente sita na antiga oficina de impressão da família Craeesbeck, a Antiquária do Calhariz, ao elevador da Bica, ainda hoje a funcionar, com José Manel Rodrigues e sua filha Catarina a enviarem os catálogos a quem os desejar...
Vanda Anastácia, a conservadora da exposição, em diálogo com Francisco d'Orey, o responsável da biblioteca e Arquivo da Santa Casa da Misericódia de Lisboa, e sua mulher.
Visão pelas costas dos livros, em geral os fechados de estudos modernos e os abertos antigos, numa combinação geral  bastante harmoniosa, criada pelo notável arketecton da exposição Mariano Piçarra...
Visão a 180º da exposição, algo que geralmente o ser humano não consegue e menos ainda a 360º,  a qual provavelmente José Vitorino de Pina Martins terá nos mundos espirituais, onde o saudamos...
Nesta fotografia, ao lado do Giovanni Pico della Mirandola, na belíssima pintura quinhentista, actualmente da sua filha Eva Maria, e que tantas vezes toquei e contemplei, enquanto magister nostri nas nossas múltiplas conversas...
Diálogos dos últimos fiéis (neste dia...) de José V. de Pina Martins, já no exterior da exposição, destacando-se a filha Eva Maria explicando a Silvina Pereira as suas actividades como professora na Sorbonne e como investigadora e antropóloga na Sibéria e noutras regiões dos Fino-Uigur, nomeadamente dos seus milenários rituais de fertilidade. O Padre Aires, notável greco-latinista, medievalista e conhecedor de livros e da religião Católica, e ao fundo, à direita, um dos sobrinhos de Pina Martins e sua família.
José Vitorino de Pina Martins, com o seu mestre Pico della Mirandola no horizonte último da sua biblioteca, com as vestes doutorais da Sorbonne parisiense, na qual se doutorou com uma valiosa obra consagrada a esta pintura de Pico que acabara de descobrir e adquirir, custosamente, e a mais alguns aspectos das obras de Pico della Mirandola, olha-nos e desafia-nos a trilharmos o caminho da Santa Sophia, do despertar Humanista e Espiritual...
Uma última imagem tremida pela rapidez do tempo e a fragilidade da matéria, restando a essência subtil das almas num fio ininterrupto de consciência, ou de mestres e discípulos, ou de amantes da santa Sophia, Sabedoria Perene, e da Divindade...
               "Os Livros procuram quem os ama", José Vitorino de Pina Martins..

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

UM ABRAÇO AO CONSERVATÓRIO NACIONAL. Escola de Música do Conservatório Nacional em Lisboa


Hoje dia 26 de Fevereiro, às 12:00
Jovens transparentes face a responsáveis impenitentes, ou a calma oração pela Vontade do Logos  em acção...
Almas aspirando  a que algo da Música das Esferas, na expressão de Pitágoras, chegue até à Terra e aos ouvidos humanos
Apreensão na face dos jovenzinhos músicos, com o futuro luminoso algo obscurecido....
Umas trezentas pessoas terão estado diante do Conservatório reclamando as medidas adequadas à sua preservação digna...

Anúncio que finalmente, após um telefonema, uma verba para as obras iria ser disponibilizada
Almas luminosas e artísticas, as mais pequenas interrogando-se sobre este por vezes tão absurdo mundo dos adultos..
Firmeza, determinação, aspiração, perpassam pelas almas...
O Estevão Barahona, com o seu colar que fez, além do clarinete em que é hábil, olha ainda assim algo receoso para este mundo educativo algo desgovernado, sob o olhar da mãe, a Pilar...
O cordão humano cinge e carrega magicamente o monumental edifício do Conservatório Nacional e a sua Escola de Música...
Aprendizagem da luta cívica por vezes começa mesmo em criança...
O que se passa em baixo repercute-se no que está cima, ou das várias frequências vibratórias das ruas e dos corpos, das almas e dos espíritos, para que se faça ou reconheça a Unidade, Tawid, Brahman...
Mãos dadas, sorrisos confiantes, a união faz a força...
Já na rua do Século, quando se soube que todo o quarteirão do Conservatório fora cingido num círculo mágico abraçante, as pessoas batem as palmas, curiosamente aqui mesmo em frente à galeria Novo Século, do Carlos Barroco e da Nadia, outros creadores e lutadores pela Cultura...
Subidas das colinas lisboetas, de mão dadas em causas cívicas, agradam às ruas e suas auras, almas e legendas...
O Estevão, bem sério, numa parte da subida, com pormenores de arquitectura bem antiga..
Algumas almas mais dinâmicas destacam-se e irradiam auras luminosas...
As mãos separam-se, o cordão irá desfazer-se, a volta completa foi dada, espera-se que o edifício tenha recebido e irradie as forças subtis e bençãos do Alto, talvez até mais dos Anjos da Música e do Arcanjo de Portugal...
Comunicações finais, missão cumprida...
Diálogos e despedidas...
A Pilar, artista notável de ourivesaria e jóias, e o Estevão, dialogam com o Rui, professor de Educação Visual no Conservatório, e comigo, acerca da conciliação entre as múltiplas vontades que constituem os seres, os grupos e as nações e como a abertura ao Logos, ao Amor Divino e ao coração espiritual de cada um de nós, deve ser a pedra de toque da conciliação harmoniosa e criativa, para que haja mesmo uma Sinfonia Cósmica a brotar do Conservatório Nacional e da sua Escola de Música e em que todos participemos ou comunguemos...

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Pico della Mirandola, dia de aniversário, 24 Fevereiro de 1463. Vida e obra. Texto melhorado no dia dos seus 560 anos.

                              
Neste suave fresco renascentista de Cosimo Rosseli, na igreja de S. Ambrósio, em Florença, de 1485, o jovem Pico encontra-se entre os seus dois grandes amigos e sábios, Marsilio Ficino e Angelo Poliziano.

Giovanni Pico della Mirandola, um dos primeiros seres a explicitar a Filosofia Perene subjacente e comum aos vários cultos e religiões, filosofias, teologias e mistérios, por alguns denominado o Anjo sábio da Renascença, nasceu a 24 de Fevereiro de 1463, em Mirandola, Itália, sendo o terceiro filho do Conde de Concordia. Dotado de agudo engenho e de uma capacidade de memória impressionante, por morte precoce do pai será a sua mãe Julia Boiardo que o destinará a uma carreira eclesiástica, começando muito novo a estudar música, latim, grego e teologia, e tal era a luminosidade do seu engenho que aos 10 anos foi nomeado protonotário apostólico.
Em 1477, aos 14 anos, é já estudante universitário de Direito Canónico em Bolonha, num ambiente onde se respira a influência libertadora e criativa dum notável humanista, e que será um dos destinatários das suas valiosas cartas, Filipo Beroaldo, um buscador da essência mais do que da forma, livre das amarras do conservadorismo, do escolasticismo. Todavia, quando também a mãe morre inesperadamente em Agosto de 1478, decide abandonar o Direito terrestre eclesiástico e  aventurar-se na demanda livre do conhecimento, da literatura e da religião universal, procurando realizar uma Pax Philosophica, através denodados estudos e diálogos de filosofia e teologia, procurando concordâncias, em sínteses ou mesmo sincretismos por vezes arrojados aos olhos dos seus contemporâneos. A sua frase «a filosofia procura a verdade, a teologia afirma-a e a religião possui-a», entre nós muito relembrada pelo nosso querido amigo e notável humanista José V. de Pina Martins, é significativa do reconhecimento de uma graduação ascendente no conhecimento da Verdade, a qual implica a demanda intelectual da Filosofia, a descoberta e afirmação doutrinal dogmática na Teologia e finalmente a interioridade da religião ou religação anímica e espiritual à verdade da Realidade e da Divindade.
Em 1479 vai para a Universidade de Ferrara, onde aprende não só melhor o grego e o latim, como conhece também uma plêiade de grandes almas, desde o seu professor Giovanni Battista Guarino a Aldo Manuzio, que se tornará o famoso impressor das edições Aldinas e inventor da letra itálica, tanto mais que se estava a realizar então um Concílio Ecuménico em Ferrara (para religar a Igreja do Oriente e a de Roma) e onde se encontram alguns sábios, tal o cardeal bizantino Bessarion (1403-1472), os quais lhe intensificam a busca da Sabedoria Divina, fazendo a sua primeira e rápida viagem a Florença, centro maior do Humanismo de então.
Em 1480 estuda em Pádua com Ermolao Barbaro, Elia del Medigo e Nicoletto de Vernia, aprofundando os conhecimentos de Averróis e dos Aristotélicos e Platónicos e até dos Mistérios do Médio Oriente. Quando estava em Paris, e estudando a escolástica, em Maio de 1482, por guerra, é forçado a regressar a Mirandola. Conhece então, em Regio d'Emilie, o frade austero Savonarola (1452-1498) e ambos sentem certa afinidade mística e profética.
Entre 1482-1483 está em Paris e depois em Carpi estudando e poetisando. É em meados de 1484 que chega a Florença e entra em plena amizade com Marsilio Ficino, Lorenzo de Medici, Angelo Poliziano, Cristoforo Landino e Girolamo Benivieni, membros da Academia Platónica de Careggi, fundada por Marsilio Ficino, o qual acabara de dar à luz a primeira edição latina da obra completa de Platão.
 Deixa de escrever poemas de amor e amizade (embora ainda venha a raptar uma jovem casada, Margarida, a pedido dela, infrutiferamente, e a compor um notável comentário a uma canção de Amor, de Girolamo Benivieni) e passa a estudar a Sabedoria Perene, a Prisca Teologia, nomeadamente a Platónica, Neo-Platónica, Orphica, Zoroástrica, Islâmica, Cabalista e Hermética.
Em 1485 decide  estudar na Universidade de Paris, a Sorbonne, a filosofia escolástica e tomista, numa época em que o livre diálogo vigorava, e inspira-se, face à discussão das teses públicas durante doze horas (denominada sorbónica), a redigir uma série de teses, não para discutir apenas num recanto universitário por mais importante que fosse, mas em Roma, e convidando todos os que quisessem discutir as suas 900 Conclusiones, quatrocentas das quais de outros pensadores (padres latinos, árabes, cabalistas, platónicos, peripatéticos, hermético-egípcios) e quinhentas dele próprio, nas quais ele considerava resumir-se todo o campo principal do cognoscível, o scibile.
Esta sua tentativa de discutir Novecentas teses filosófico-religiosas com os sábios de todo o mundo, não foi todavia bem vista pelo clero de Roma, onde chega em Novembro de 1486, e o Papa e alguns teólogos nomeados para uma comissão de inquérito, após um exame, para o qual aliás não estavam muito preparados, dado a novidade de muitas das fontes extra-católicas aduzidas por Pico della Mirandola, consideram heréticas treze das suas proposições, que “renovam os erros dos gentios e as perfídias dos judeus”.
Entre elas destacavam-se a sua defesa de Orígenes, que fora condenado pela Igreja em algumas das suas doutrinas, tal a que concluía que no fim do Mundo todos os seres estariam no Paraíso, salvos ou com a visão de Deus; a ainda  que negava que o crucifixo ou outra imagem qualquer religiosa deveria ser objecto de culto, e a que  afirmava que mais importante que rituais e sacramentos era a piedade e realização interior, algo que virá a ser também um dos estandartes de Erasmo, a docta pietas, a piedade douta, na sua Philosophia Christi, que tanto sucesso luminoso teve na Península Ibérica e na Europa, antes da Reforma Protestante e a reacção conservadora do Concílio de Trento: a trágica (pela Inquisição) Contra-Reforma.
                                                              
Pico della Mirandola tem que assinar a sua rendição ou retracção em Março de 1487 mas, corajoso, defende-se e responde-lhes com a Apologia das Treze Questões, as que tinham sido consideradas heréticas, mas não aceitam e é forçado a submeter-se e a prometer  não editar as teses, que são mesmo proibidas e condenadas em todo o seu conjunto de 900 teses, embora entre os comissários houvesse quem as considerasse defensáveis. Pico não se rende e dá à luz pública a sua Apologia, em Nápoles, no fim de Maio de 1487 e é então considerado como criminoso de rebelião e perjúrio e citado para o tribunal inquisitorial.
Foge então em direcção a Paris, mas é preso em Janeiro de 1488 em Lyon, e a luta pela sua libertação, seja por parte do rei de França seja de Lorenzo de Medici, força o papa Inocêncio VIII a aceitar que Pico della Mirandola, após alguns meses de cativeiro no castelo de Vincennes, regresse a Florença, para uma bela vila ou casa posta à sua disposição pelo magnífico regente da cidade  Lorenzo de Medici,  onde vai estabilizar, descrevendo mesmo numa carta o seu dia a dia: «de manhã aplico-me assiduamente na concordância de Platão e Aristóteles, as horas da tarde são para os amigos, e a recreação do espírito através da leitura de obras literárias, e as horas da noite reparto-as entre o estudo dos textos sagrados e um breve sono».
Gera então várias obras mais ortodoxas (mas sempre recebidas com desconfiança pelo Papa, sendo a sua condenação por perjúrio somente retirada em 18 de Junho de 1493, já pelo Papa Alexandre VI, um Borgia sábio), nomeadamente especulações sobre o Ser primordial e a conciliação entre Platão e Aristóteles, no De Ente et de Uno, sobre os sete dias da Génesis, no Heptaplus,  ou ainda tanto os religiosos Comentários aos Salmos, como os Commento alla Canzone d' Amore, de Girolamo Benivieni, escrevendo em 1489 uma obra, Disputationes adversus astrologicam divinatricem, não publicada em vida, contra as pretensões dos astrólogos de quererem profetizar acontecimentos futuros, embora Pico admitisse que os astros influenciassem os seres humanos. Deixará a Terra por febre em 17 de Novembro de 1494, com  32 anos de vida, apenas, mas tão bela, sábia e ardente que o seu fulgor jamais se apagará... 
                           

A influência de Pico della Mirandola nos homens do Renascimento é imensa, nomeadamente em Erasmo e, sobretudo, em Thomas More, e nos portugueses dos Descobrimentos é mais visível especialmente em Frei António Beja (1493-1547) que, a propósito da Astrologia e na corte da rainha D. Leonor, utiliza o texto de Pico amplamente no seu Contra os juizos dos astrologos, impresso por Germão Galhardo em 1525, em Lisboa, mas também em Garcia de Horta, o sábio dos Colóquios dos Simples e das Drogas, escritos e impresso em Goa, que cita Pico Mirandulano a propósito dos Reis Magos que certa tradição apontava como vindos da Índia ou Ceilão, e que noutra se diziam enterrados na bela catedral de Colónia na Alemanha, onde já  o nosso D. Pedro das Sete Partidas fora em peregrinação. O teólogo místico dos Agostinhos Descalços Frei Sebastião Toscano, no sermão pregado na transladação dos ossos (se vieram mesmo) de Afonso de Albuquerque para a igreja da Graça em Lisboa  em 1566, comparou estes dois seres, Giovanni Pico della Mirandola e Afonso de Albuquerque, como universais, pelo menos no valor e fama das suas ideias e obras.
Nos nossos dias José Vitorino de Pina Martins foi um admirador, estudioso e amante do Humanismo, e de Pico, mas também bastante de Erasmo, Camões, Sá de Miranda e Thomas More (este, o mais estimado), tendo realizado valiosos estudos sobre a tipografia quatrocentista e quinhentista e sobre a história das ideias e imagens da época. Convivi vários anos com ele, fazendo mesmo, sob o olhar de Pico, na belíssima pintura quinhentista que Pina Martins possuía, uma catalogação resumida da sua magnífica biblioteca, da qual três das salas tinham os ícones de Pico della Mirandola, deThomas More e de Erasmo protegendo os valiosos manuscritos e livros inspiradores dos grandes mestres da sabedoria da Humanidade que recolhera, e que hoje, nos 560 anos do nascimento de Pico se encontram na biblioteca da Universidade de Letras de Lisboa.
 

No seu Discurso sobre a Dignidade Humana (e o título já é póstumo, sendo provavelmente o intencionado Oratio ad Laudes Philosophiae) escrito em 1486, uma parte dele publicada na Apologia, a outra apenas impressa após a sua morte, circulando até então manuscrito, e que antecederia como preâmbulo o texto, num estilo ou ossatura algo escolástica, com as  900 Conclusões ou Teses, Pico mostra a sua alta concepção do ser humano e o ardor optimista de elevação à verdade, numa obra que será considerada como uma das mais belas e significativas do Renascimento, e na qual a posição ímpar do ser humano no universo, capaz de união com o Ser Divino ou de degradar-se ao nível sub-animal, é transmitida com intensidade, beleza e mística qualidade, apoiada nas diversas tradições e metodologias espirituais. 
Pico exorta-nos na Oratio a trilharmos o caminho do auto-conhecimento, da purificação dos instintos e dos costumes, e do desenvolvimento das capacidades intelectuais e das unitivas que o Amor proporciona, nomeadamente para a Divindade e em analogia com os Espíritos celestiais posicionados na proximidade divina conforme as suas potências ardentes de Amor e caridade (os Serafins), de esplendor da Inteligência (os Querubins) e de firmeza do Discernimento, os Tronos...
Oiçamos algumas partes então da sua Oratio:
Princípio: “Li, padres colendissímos [de colendu-respeito], nos monumentos [livros] dos árabes, que o sarraceno Abdallah interrogado, sobre o que, nesta quase cena mundana, via com mais admiração, respondeu que nada via de mais admirável de que o homem. Sentença esta que está conforme com aquela de Mercúrio [Hermes Trismegisto]: «Grande milagre, ó Asclépio, é o homem».
Cogitando a razão deste dito não se me fazia suficiente o que por muitos foi referido da prestância [superioridade] da natureza humana: esse homem internúncio das criaturas, familiar dos superiores, rei dos inferiores, intérprete da natureza pela perspicácia dos sentidos, a indagação da razão e a luz da inteligência, interstício entre a estável eternidade e o fluxo do tempo e, como os Persas dizem, cópula ou mesmo himeneu [vínculo] do mundo e, como testemunha [ou diz] David, pouco menos que os anjos”
Que invada a nossa alma aquela ambição sagrada de não nos contentarmos com as coisas medíocres e que aspiremos pelas maiores (...)»

A sua ligação e sabedoria angélica era grande e aconselha-nos com bastante originalidade em relação aos Arcanjos: «Invoquemos Rafael o médico celeste, a fim de que ele nos liberte pela moral e a dialéctica, como por remédios salutares. Então, nos que formos restaurados, habitará doravante Gabriel, a força de Deus, que nos conduzirá através dos milagres da natureza: ele mostrar-nos-á por toda a parte a virtude e a potência de Deus, e por fim levar-nos-á a Miguel, o sacerdote supremo, para que, tendo-nos alistado ao serviço da filosofia, nos cinja, como duma coroa de pedras preciosas, do sacerdócio da teologia».
                                         
 Transcrevo agora, das 900 teses, as respeitantes a Plotino, com tradução e comentário meus, algo sucintos e mais na linha espiritual do meu caminho do que num domínio da terminologia filosófica em causa.
1 - Primum inteligibile non est extra primum intelectum

2 - Non tota descendit anima quum descendit

3 - Omnis vita est immortalis

4 -Animae quae peccavit vel in terreno vel in aereo corpore, post mortem brutam vitam vivit

5 -Anima irrationalis est idolum animae rationalis ab ea dependens sicut lumen a sole

6 - Ens, vita, intellectus in idem coincidunt

7 - Felicitas hominis ultima est cum particularis intelectus noster totali primoque intelectui plene coniungitur.

Tradução, comentada:
1 - «O Inteligível Primeiro não está exterior ao Intelecto Primeiro».
Comentário: Ou seja, é no seio do Intelecto Divino que se dá a primeira inteligibilidade ou ideia, e assim cada um de nós deve assumir responsabilidade pelos seus pensamentos e deve saber retroceder a sua auto-consciência intelectual até à Fonte e Intelecto Divino.
2 - «A alma não desce toda quando desce».
 
Comentário: Certos níveis da alma não estão acessíveis à consciência terrena do comum dos mortais. Para se chegar aos níveis superiores é necessário um trabalho intelectual, devocional e espiritual. De qualquer modo, é importante uma prática metódica ou  regular na tentativa de apropriação consciencial pela alma do que é mais espiritual, o que se alcança pelo desenvolvimento da nossa capacidade de amar com sabedoria, numa expansão supra-corporal de universalidade e numa interioridade meditativa cardíaca, ígnea e divina.
3 - «Toda a vida é imortal».
Comentário: Todo o ser vivente é imortal, em especial o ser humano. Quanto aos animais, a vida que perpassa neles é imortal, mas não está individualizada, como acontece com o ser humano dotado de uma centelha individual, ou mónada, imortal, com a qual durante a vida terrena, se forma um corpo espiritual. Contudo, é possível que em alguns animais, muito próximos do ser humano e que desenvolveram umamais forte relação afectiva, haja como que uma individualização, talvez não agraciada com uma mónada imortal mas com alguma imortalidade temporária...
4 - «A alma que peca no corpo terreno ou no corpo aéreo (ou subtil), na vida depois da morte vive uma vida bruta, ou embrutecida».
Comentário: - O que é pecado, o que é mais ou menos pecaminoso, são questões bem difíceis de se clarificar. De qualquer modo, tudo o que fazemos tem consequências no além, pelo que sofremos tanto cá como lá pelos danos que fizemos nos nossos corpos físico e ao subtil ou aéreo, seja obscurecendo-o, seja tornando-o escravos ou dependente de vícios,  e ainda paralizando-o, quando em relação à sobrevivência no além se a nega.
5 - «A alma irracional é uma imagem da alma racional, dela dependendo assim como a luz do sol».
Comentário: - O problema desta derivação é que a parte irracional pretende dominar a vontade e o corpo, apropriando-se incorrectamente da força motriz do sol espiritual, ou pouco ligando à voz da consciência ou da razão, da alma racional.
Ou seja, o Logos, a inteligência-amor deve estar presente nos nossos actos, sentimentos e pensamentos, por uma atenta e perseverante auto-consciência.
6 - «Essência, vida e intelecto coincidem em si mesmos».
Comentário: - No nosso ser estão em conjugação ou unidos a essência primordial espiritual, a vida cósmica e energética e o intelecto luminoso ou capacidade de inteligir e de compreender correcta e unitivamente
7 - «A felicidade última do ser humano é portanto unir plenamente o nosso intelecto particular com o Intelecto primordial, primeiro, Divino».
Comentário: - Tornemos a nossa mente e seus múltiplos pensamentos mais estáveis e unificados numa intelecção pura, para que o Logos ou Intelecto divino esteja mais presente em nós, ou se reflicta mais luminosamente.

Mais algumas Conclusões de Pico, a partir de Outros, também valiosas:
6. 5. Ideo angelus est obstinatus et impenitens, quia substracti sunt ei divini impetus speciales.
«O anjo (caído) é obstinado e impenitente, porque ímpetos (forças) divinos especiais lhe foram subtraídos».
Comentário: E, tal como eles, assim as pessoas, infelizes, frustradas, violentadas, manipuladas, e logo exudando  tanta violência....
6. 7. Superior angelus illuminat inferiorem non quia ei vel objectum presentet luminosum, vel quod in se est unitum illi particulariset et dividat, sed quia inferioris intelectum confortat et fortificat.
6. 7. «Um anjo superior ilumina um inferior não porque lhe apresente um objecto luminoso ou aquilo que sendo em si uno particulariza e divida, mas porque conforta e fortifica o intelecto do inferior».

Comentário: Eis uma boa visão da relação de mestres e discípulos, o fortalecimento dos intelectos pelos laços de amizade e de estímulo, de estudo e de discernimento, do amor e da compaixão, bem longe dos laços hierárquicos, por exemplo dos Estados Europeus e de muitas organizações, baseados talvez ainda demasiado frequentemente na esperteza e arrogância, no servilismo e medo, na opressão e corrupção.  A tese apela também a não esperarmos sempre a luz que vem do alto, mas sentirmos na unidade interior a comunhão fortificadora com os seres ou níveis mais elevados.
Traduzamos ainda as sete primeiras das dez Conclusões segundo a prisca doutrina do egípcio Hermes Trismegisto:
1- Onde haja vida, aí está alma; onde haja a alma, aí está a mente [mens, com sentido amplo até ao intelecto divino].
2 - Tudo o que é movido é corporal, tudo o que move é incorporal.
3 - A alma no corpo, a mente na alma, o verbo na mente e o pai destes, Deus, a Divindade.
4 - Deus está cerca de tudo e por entre tudo; a mente cerca da alma, a alma cerca [ou à volta, em latim circa] do ar, o ar cerca da matéria.
5 - Nada há no mundo sem vida.
6 - Nada no universo é passível de morte ou de corrupção. - Corolário: ubíqua é a vida, ubíqua é a providência, ubíqua a imortalidade.
7 - De seis modos Deus denuncia ao homem o futuro: por sonhos, portentos, aves [voo], as estranhas [examinadas], o espírito e a Sibila.
                                       
Sabermos desenvolver o amor e a compaixão, e estarmos mais nele, e mantermos a ligação de aspiração ao Anjo, ao Arcanjo e à Divindade, é então fundamental para irradiarmos luz e amor horizontalmente na sociedade e ambiente, e para que a Humanidade melhore no seu nível de harmonia, felicidade e religação Divina. E nestes tempos de opressivas narrativas oficiais e oligarquias e elites tão egoístas e sem honestidade nem fraternidade, muito temos que trabalhar...
                   
Vitória, por Bô Yin Râ.