domingo, 29 de setembro de 2024

A origem do arcanjo Mikael ou, mais popularmente, São Miguel, na Bíblia, na História, na Arte, no Culto, nas almas espirituais. Um contributo no dia de S. Miguel de 2024.

 Uma das representações mais antigas, imperial, de Constantinopla, do séc. VI, em marfim. Museu Britânico.
I- A maioria dos Ocidentais conhece o arcanjo  Miguel por pinturas, esculturas, desenhos e gravuras, embora geralmente sem saber bem como essas representações nasceram. Se tiver certa cultura religiosa presumi-las-á originadas  nas descrições  visionárias do  Apocalipse,  atribuído enganadoramente a S. João evangelista, onde se refere apenas a luta vitoriosa dele contra o Demónio. Mas havia outras fontes mikaelicas,  na literatura apocalíptica judaica, desde a  primordial no Livro de Daniel aos
extra-canónicos (e desconhecidos de quase toda a gente) Enochs e Assunção de Moisés, e acima de tudo na história, já no decorrer do IV século, quando o imperador romano Constantino (272-337), que oficializou o Cristianismo em 312, como religião do Império, e que  se sentia investido por Deus e Cristo para se considerar o 13º apóstolo,  antes de vencer em 324 a batalha decisiva contra o seu rival Licinus ou, noutra versão, ao dormir, junto a Constantinopla, no templo de cura pelas águas dedicado a Zeus Sostenios, um Deus pai, ou Júpiter, alado,  recebeu uma visão de Mikael e compreendeu que era ele que já era adorado sob essa forma, erguendo-lhe então uma igreja, o Michaelion, Miguélio, com uma representação guerreira de Mikael, que aliás comissionou também ao pintor para  fazer de si com os seus filhos a vencerem Licinus, representado como serpente. Este Michaelion vai-se tornar a fonte das igrejas erguidas ou dedicadas a Mikael, e a pintura, com o afluente imagético do Apocalipse, vai multiplicar-se e metamorfosear-se em milhares de igrejas, capelas, ícones, pinturas, portadas arquitectónicas, esculturas, estátuas, mosaicos, medalhas (nomeadamente de ordens e confrarias), selos, moedas, livros e livros de Horas, gravuras, registos e santinhos, com tantas variantes de especificidades belas, simbólicas e valiosas.
Podemos dizer que os criadores do nome Mikael para forças que se sentiam celestiais-divinas, ou  os primeiros receptores ou  descobridores clarividentes do nome desse ser celestial, foram então o profeta Daniel dos v Impérios e o imperador Constantino, casado com Helena, a "descobridora" da santa Cruz, cujos pedacinhos espalhados por todo o mundo dariam para algumas cruzes, e a fundadora da mítica Igreja do santo Sepulcro, sem dúvida muito poderosa ainda hoje, pese o que a rodeia, a entristece e ameaça. 
Um invulgar mosaico de S. Mikahil Estratega, pintado por Nicholai Roerich em 1906.
II - Do imaginativo Apocalipse, nomeadamente quanto a um eventual e final julgamento dos mortos com a participação de Mikael, e dos receios quanto ao post-mortem ou estágio num purgatório, nasceram outras concepções, imagens e simbolizações populares que entroncando até com a tradição egípcia do deus Anubis pesar as almas dos defuntos, e ainda  com a tradição grega do Hermes psicopompo, fizeram-no surgir como o típico ser celestial dotado de asas,  já não com a espada ou lança apontada ou em luta com uma  representação da  do Mal, isto é, o revoltado Lúcifer, Satan ou Diabo, com um pé sobre a cabeça dele, que pode ser ainda uma serpente ou dragão, ou mesmo pessoas, mas com uma balança, com as almas por vezes representadas num dos pratos, representando ora a aceitação do juizo final ora uma visão de um julgamento particular ao morrer-se: Mikael pesa com as duas mãos as almas e ajuda-as (talvez as que lhe tiveram mais devoção em vida)  a passarem a prova da morte e a encaminharem-se para o Céu. 
A esta invocação-evocação micaélica  acrescentou-se também bastante, com o Concílio de Trento (1545-1563) e a Contra-Reforma, tanto o culto dos seres celestiais como a devoção piedosa às alminhas do Purgatório pedindo orações nossas e ajudas do Arcanjo Mikael, que presidiria a elas, e que se espalharam pelas aldeias e caminhos rurais.   E assim nasceram milhares e milhões de representações artísticas, algumas de grande beleza ou realismo, outras singelas e rurais, e que podemos admirar em igrejas, capelas, alminhas e museus, colecções, livros e casas.
 Uma gravura do séc. XVII,  pouco conhecida mas bela e poderosa nos seus efeitos em quem a souber contemplar e assimilar, mostra-nos São Miguel nessa sua função de ajudante ou intermediário divino, com o pé, um escudo e uma espada suplantando um ser demoníaco e a serpente, numa  simbologia tanto  exterior, Lúcifer ou as entidades malignas, como interior, o mal em nossa na alma. 
Mikael, um dos Príncipes, segundo os irmãos José e João Klauber. Séc. XVIII.
III -  Tentemos então discernir melhor a origem deste espírito celestial, anjo, príncipe, principado ou arcanjo (do grego arkhaggelos: αρχή, primordial, principal, comandante; άγγελος, mensageiro, o Arke-angellos,  cujo nome Mikael, significa em hebraico: "Quem (é) como Deus", e que inscrito em latim surge em muitas representações de Mikael: Quis ut Deus.
A sua fonte original está no Antigo Testamento, no Livro de Daniel, escrito por volta de 166 a. C., que menciona pela primeira vez um espírito celestial chamado Mikael. Na obra, um profeta Daniel, no exílio do povo judaico na Babilónia (586-538 a. C., e donde trouxeram a existência dos Querubins [Kerubs ou Karibus, persas], embora a venham a inserir, manipuladoramente, aquando da redação por volta de 516 a. C., como já conhecida ao tempo do Êxodo) descreve num estilo apocalíptico as suas peripécias, visões e profecias sobretudo para o II séc a. C. (de que seria contemporâneo) e para o mítico fim dos Tempos,  presumindo-se ser uma obra ficcional de mais de um autor com materiais diversos, nomeadamente do Deuterónimo, commos dois últimos capítulos a serem incorporadostardiamente por S. Jerónimo, destinada a aumentar, com  milagres e exageros, a fé no destino do povo judaico e no seu messiah, ou futuro ungido do Senhor. Significativa, Daniel não veio a ser considerado um profeta no Judaísmo mas sim no Cristianismo.
No Livro de Daniel, em hebraico "Deus é meu juiz" esse justo e vidente é levado da Judeia e educado com mais três companheiros na corte do rei da Babilónia, Nabucodonosor, destacando-se por ser "capaz de interpretar qualquer sonho e visão" pelo que o rei consultava-os em questões de sabedoria e discernimento considerando-os, com muito ou pouco exagero, "dez vezes superiores a todos os magos e adivinhos do seu reino", entre os quais se destacavam os sacerdotes caldeus, de cuja sabedoria sobreviverão os Oráculos Caldeus, transmitidos por Michael Pselus (1018-1096) e editados e comentados no Renascimento nomeadamente por Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Francesco Patrizi.
 Ora será  Daniel quem conseguirá desvendar um misterioso sonho de Nabucodonosor, que incluía a enigmática estátua compósita que figuraria os cinco Impérios,  o qual admirado e reconhecido se teria "prostrado" aos seus pés, ordenando que lhe oferecessem "oblações e incensos",  e declarado majestaticamente: «Em verdade o vosso Deus é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis e o revelador dos mistérios, pois tu pudeste revelar este mistério» (II, 46,47), manifestando assim uma tremenda fé e confiante clarividência na interpretação profética do incomprovável  sonho, e uma súbita mudança de religião...
Estamos a ver a mistificação, como se fosse possível o rei converter-se, fazer e dizer tal, tanto mais que logo em seguida Nabucodonosor II eleva uma estátua de ouro e queria que todos a adorassem.
Esta inventiva  interpretação profética dos quatro reinos que seriam por fim suplantados pelo quinto, o verdadeiro e para durar para sempre, glosada e repisada ao longo dos séculos por judeus e cristão,  veio a dar origem na Europa, no séc. XVII,  em 1666, numa seita extremista puritana, à esperança ou miragem da V Monarquia em Inglaterra,  e em Portugal à crença no V Império que o P. António Vieira (1608-1697)  e depois outros, nomeadamente Fernando Pessoa, desenvolveram e, apesar do seu carácter mistificador e apocalíptico, é ainda hoje acreditada e ensinada por alguns mais caturras, em especial de esoterismos judaizantes.
IV - Ora enquanto os seis capítulos iniciais do Livro de Daniel apresentam uma unidade histórica ainda que cheia de fantasias e invenções, os sete seguintes acrescentados são visionários e apocalípticos (e assim a Bíblia dos Capuchinhos chama-lhes mesmo o Apocalipse de Daniel) e é no capítulo VIII  que lemos a primeira menção de um outro importante ser celestial da história religiosa, o arcanjo Gabriel, e pode-se afirmar que foi o anónimo escritor do Livro de Daniel quem criou ou inventou os nomes angélicos que se tornariam tão famosos: Mikael ou Miguel, e Gabriel. 
Primeiro, no cap. VIII-17, surge Gabriel a explicar uma visão de animais, o carneiro e o bode, que simbolizaria o que aconteceria no tempo do Fim do Mundo,  e  IX-21, aparece-lhe "em voo rápido" pela segunda vez.
Mikael surgirá  no cap. X, após Daniel  relatar a aparição de «um homem vestido de linho, com os rins cingidos de ouro puro, seu corpo tinha a aparência de crisólito, e seu rosto o aspecto de fogo, seus braços e suas pernas como como o fulgor do bronze polido e o som das suas palavras como o clamor de uma multidão. Somente eu vi esta aparição...»
Esse homem resplandecente, e que  chegou a ser identificado ora a Gabriel (já que tinha sido o interlocutor anterior) ora a Jesus segunda Pessoa da Trindade, descreve a Daniel o que se está a passar, a luta  que passou e dá-lhe uma visão fantasmagórica do Fim dos Tempos, como se o houvesse um para além dos que vamos assistindo há tantos séculos, em especial nos grandes conflitos e mortandades, como vemos hoje, para os palestiniano e eslavos mortos, feridos ou destroçados:
X, 13: "O Príncipe do reino da Pérsia resistiu-me durante vinte e um dias; mas Miguel, um dos primeiros Príncipes, veio em meu socorro. E deixei-o a abater-se com os reis da Pérsia.*14: Aqui estou para fazer-te compreender o que deve acontecer ao teu povo nos últimos dias; pois essa visão diz respeito a tempos longínquos.»
Eis-nos com a menção pioneira, na história religiosa e literária, de  Mikael, em luta contra os Arcanjos dos outros países (numa concepção pouco fraterna deles, mas compreensível à luz do nacionalismo judaico), havendo apenas três menções em todo o Antigo Testamento, todas elas no Livro de Daniel. Mas há-os também noutros livros apocalípticos, em especial nos fantasiosos e arrogantes Livros de Enoch, o pai de Matusalém e bisavô de Noé, escritos pela mesma altura e que não foram aceites como canónicoa nem pelo Judaísmo nem pelo Catolicismo, no qual Mikael é apresentado como um dos sete principais espíritos celestiais, que se tornaram os arcanjos Uriel, Raguel, Rafael, Sariel, Gabriel e Remiel. 
Esse ser vestido de linho,  como poderia ser ele Jesus (como quiseram interpretar alguns dos primeiros cristãos), andando à luta com o chefe ou príncipe (que interpretaremos, como anjo,  arcanjo ou principado, aceitando tal hierarquia) persa, vinte e um dias e antes de ser então ajudado por um dos primeiros Príncipes (celestiais), Miguel, e referindo a Daniel "o teu povo", parecendo assim mostrar que não era o dele
Seguem-se mais duas aparições de seres resplandecentes ditos homens, ou "ser em forma de homem", a última entidade acabando por afirmar ser a inicial ou a anterior, pois diz-lhe: "Sabes bem” – prosseguiu ele – “por que vim a ti? Vou voltar agora para lutar contra o chefe da Pérsia, e no momento em que eu partir virá o chefe de Javã [Grécia] 21. Mas (antes), te farei conhecer o que está escrito no livro da Verdade. 22. Contra esses adversários (ou Nestes trabalhos ninguém me ajuda) não há ninguém que me defenda, a não ser Miguel, vosso Príncipe."
Segue-se então  desse enigmático ser resplandecente clarividente do livro da Verdade futura  uma longa descrição das lutas no III e II séculos (quando o Império de Alexandre o Magno - 256 a 323 a. C. - por morte dele se desmembrou), entre o rei do Sul, Plotomeu, do Egipto, e o rei do Norte, Antíoco, do Império Selêucida, com algumas ilusões de durações ou erros. E, por fim, entra-se no fantasioso cap. XII, que influenciou certamente o enigmático e mistificador Apocalipse, e que seria o último capítulo, mas ao qual S. Jerónimo  acrescentou dois capítulos, nomeadamente com a história da casta Susana que só nos chegou em grego, e que apesar dos seus aspectos semi-trágicos, bastante fortuna teve em pinturas e azulejos, por vezes para refrescar os claustros ou junto a tanques, como vemos na quinta da Bacalhoa, em Azeitão.
  Oiçamos então o fim  apocalíptico de Daniel, XII, 1:«Então se levantará o grande príncipe Miguel para tomar a defesa dos filhos do teu povo» [ou noutras versão «que se conserva junto dos filhos do teu povo», ou «que protege os filhos do teu Povo»]. Será um tempo de tal angústia como jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem, mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no Livro da Vida. E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbio, para o horror (reprovação) eterno».  
O arcano XIX do Tarot, um programa humanista nascido no séc. XV, na versão de Marselha, espelha a influência do Julgamento final judaico-cristão. Vide:https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/10/tarot-arcano-xx-o-julgamento.html ... Reflexão: Tragicamente, de forma não natural, tantas pessoas passando pelos portões da morte e pensando na ressurreição, nos nossos dias. É o ensino imaginal deste arcano, e no fundo o do Julgamento apocalíptico exterior suficiente para eles, ou para nos preparar para a morte, ou haverá sobretudo que agir bem e religar ao Anjo, ao Espírito e ao Divino em nós, já, aqui e agora?
V - Como sabemos, o género literário das visões apocalípticas é fruto de imaginações fortes ou frondosas, por vezes emasiado ou zelotas, que, em geral, quanto muito, conseguiram captar no mundo astral ou imaginal certas imagens e forças activas ou germinantes e que, de acordo com a sensibilidade, desejos e receios dos seus autores, dão origem a narrativas apresentadas nas escrituras como profecias divinamente seladas, mas que não passam  de sonhos, desejos e filmes, ainda que recheados de simbologia, numerologia, astrologia, profecia e enigmas, de tal modo que atraem sempre muitos comentadores ou hermeneutas, e no caso, ao ser considerado de S. João, o discípulo mais próximo de Jesus, ainda mais. 
Neste caso temos um escritor que relata os feitos e visões de um profeta Daniel, uma figura ficcional que serviu para fortificar os judeus face a outras religiões e povos, descrevendo mistérios da História e do Ser Divino que nem Jesus se atreveu mais tarde a enunciar, reservando unicamente para o Pai que está nos Céus, seja  Ele Jeová ou não, tal conhecimento dum fim do mundo que não acontecerá. 
Se houve mesmo tais, ou mesmo parciais, visões dessas duas entidades celestiais, Mikael e Gabriel, ou se foi uma invenção não podemos ter a certeza, embora fosse valioso saber-se pois trata-se da acta de nascimento dos dois espíritos celestiais, seja qual for o seu nível, que mais serão  cultuados na história frondosa das religiões, na arte, na devocionalidade, ainda hoje vivos para milhões de seres, atribuindo-se-lhes tantos feitos no passado como intervenções no presente, ainda que certamente o princípio enunciado por Krishna, a Divindade (Vishnu) manifestada, a Arjuna no canto VII da Bhagavad Gita regeu em grande parte os começos: - Qualquer que seja a forma em que me adorares com fé, eu me manifestarei a ti através dela...

A fortuna do profeta Daniel, um dos visionários apocalípticos, logo a seguir à de Ezequiel e o seu carro de fogo, foi grande e na Europa cristã certamente teve influências nas crises milenaristas e outra sazonais de fins do mundo. Mas destacaram-se em especial, como já mencionámos, a Inglaterra dos puritanos, com a sua V Monarquia e o Portugal de Bandarra e do P. António de Vieira, com os seus sonhos utópicos do V Império, dessas tradições estando conhecedor e amplificador devoto Fernando Pessoa. 
É de Daniel também, por exemplo, que vem a ideia e a expressão «Será salvo todo aquele que estiver inscrito no Livro da Vida», bem como a materialização ou coisificação da ressurreição da carne, pois que se trata de um corpo subtil e espiritual, algo que a tantas religiões e seitas se estendeu, embora hoje vá decaindo...
A obra, em que não houve mão restrita nas visões e profecias, ainda que enriquecida com esse sedutor maravilhoso visionário, é contudo bastante violenta, e mesmo nos acrescentos vemos os anjos a rachar a cabeça ao meio de dois anciões que tentaram relacionar-se sexualmente com a casta Susana. 
Com o Livro de Daniel termina de certo modo o profetismo do Antigo Testamento, talvez porque viesse Jesus, talvez porque foi tão imensa e pesada a avalanche de visões que mais ninguém se atreveu a levantar a voz em nome do Deus Jehova, ou os que o fizeram ficaram excluídos do cânone da Torah e do Novo Testamento, como já nomeamos alguns.
        Do fabuloso Ivan Bilibin (1876-1942), S. Miguel defensor radioso, de culto popular.
VI - Ora do arcanjo Mikael, tão escassamente referido no Antigo Testamento, embora admitido por detrás de algumas intervenções angélicas do Génesis, também no Novo Testamento (excluindo o Apocalipse) só encontramos uma referência, embora se prometa em dois passos o Julgamento Final, quando o apóstolo Judas Tadeu o apresenta como respeitador do ser glorioso caído Lúcifer-Satanás, num episódio mítico seja a propósito do Deuterónio XXXIV-6,  ao afirmar desconhecer-se o paradeiro do túmulo de Moisés, seja ecoando o hoje perdido apócrifo de Moisés"…o arcanjo Miguel, discutindo com o demónio (Erasmo preferiu traduzir por Diabolus, Diabo, o adversário) na contenda sobre o corpo de Moisés, não se atreveu a proferir um juízo que o desonrasse; ele apenas disse: Que o Senhor te repreenda!" (Judas 1, 9). 
 Na sua versão crítica pioneira do Novo Testamento, 1515, Erasmo explica ainda que, nessa passagem, os manuscritos mais antigos não mencionam sequer a palavra Arcanjo, o que sugere o estado de infância (ou de simplicidade) da hierarquização angeológica, traduzindo-a assim: «contudo Michael, que disputou em contenda contra o Diabo o corpo de Moisés, não teve coragem lançar-lhe uma maldição, mas disse-lhe: Que Deus te increpe».
Anote-se que esta epístola de Judas Tadeu, contém  duas citações do Livro de Enoch, o tal que S. Jerónimo não aceitaria como inspirado divinamente e logo canónico, as que justificam Enoch como profeta: a primeira quando escreve, v. 7: «Enoch, o sétimo depois de Adão», que é uma citação de I Enoch, 60, e a segunda, quando partilha a espectacularidade do mítico Julgamento final: v. 8 «Eis que é vindo o Senhor com milhares de seus santos para exercer o julgamento contra todos», a qual é uma citação de I Enoch 1:9. Acrescentemos outra declaração profética, e apocalíptica, desta carta ou epístola de Judas Tadeu, 6: «E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia», dando a entender que os anjos revoltados, estavam na escuridão e presos até ao grande dia, certamente, do Julgamento e ressurreição x danação. Quanto a estarem desterrados para a Terra e perturbando os humanos ou cristãos não se fala tanto.
Aduzem alguns que São Paulo, na sua primeira carta aos Tessalonicenses, quando revela, muito aereamente, pois «o próprio Senhor descerá, à ordem dada,  à voz do arcanjo  e ao som da trombeta de Deus, descerá do Céu, e os mortos em Cristo ressurgirão primeiro. Em seguida nós, os vivos, os que ficamos, seremos arrebatados juntamente com eles sobre as nuvens, para irmos ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. (1 Ts 4, 16-17), estaria a referir nessa "voz de Arcanjo" (e como seria ela?) Mikael, mas diremos que tal não é certo e que até ao não mencionar de facto o seu nome pode ter dado um sinal de que tais nomes dos Arcanjos eram arbitrários. E o que diria ele hoje face às tabelas com nomes dos Anjos para cada dia do ano e que seriam os anjos da guarda das pessoas que nasceram nesses dias e que tanta exploração comercial e mistificação se têm prestado?
                                                                         
Do fabuloso Gerard David (1460-1523), um S. Miguel muito rico simbólica e energeticamente. Museu de Viena.
VII - Será então do autor do imaginativo e simbólico mas já tardio (por volta de 100 d. C.) Apocalipse segundo São João (mas que nada tem de joanino, de amor e de gnose),  a ideia ou visão da luta, já não (como em Daniel estava) do Príncipe de Judá e contra os Príncipes ou Principados da Pérsia e da Grécia, mas contra a própria personificação do Mal, que da serpente do Génesis se elevou a dragão no Céu e besta na Terra, abrindo assim várias hipóteses simbólicas para se personificar o Mal, o Diabo, Satan: "Houve então uma batalha no céu: Miguel, com seus anjos, teve que lutar contra o Dragão. O Dragão também lutava com seus anjos, mas não foi o mais forte; para eles, a partir de agora, não há lugar no céu." ou nunca mais encontraram lugar no céu: o grande dragão, a serpente antiga - a que chamam também Diabo e Satan, o sedutor de toda a Humanidade, foi lançado à Terra e com ele os seus anjos». 12, 7-8.
Prosseguindo, nesta incursão ao mistério do mal, com uma explicitação dualizante acentuada,  tendo em conta o livro de Job, onde Lúcifer ou o advogado acusador-Diabo participava calmamente na Assembleia dos Anjos com Deus: «Porque foi precipitado o Acusador dos nossos irmãos, o que os acusava diante de Deus dia e noite, mas eles venceram-no pelo sangue do Cordeiro ... Ai da Terra e do mar porque o Diabo caiu sobre vós com grande furor, ao ver que pouco tempo lhe resta», leem-se em seguida as mais estrambólicas narrativas dos sinais, pragas, acontecimentos das Bestas, do Cordeiro, da Prostituta, da Babilónia, do Messias e da Nova Jerusalém, e  no Epílogo com Jesus a surgir e afirmar : «Eis que venho em breve (...) Diga também o que escuta:«Vem!» (...), terminando assim: «O que é testemunha destas coisas diz: - Sim, virei brevemente. 
- Amen! Vem, Senhor Jesus! A graça do Senhor Jesus esteja com todos vós.» 
  Teve-se pois de aguardar algum tempo, para já no seio do Cristianismo nascente, no mesmo veio hebraico apocalíptico, se manifestar e mencionar Mikael, sendo apresentado sob a autoria do apóstolo dito o mais querido de Jesus, João, mas sabendo nós hoje que é uma obra de um judeu cristão, escrita por volta de 90-100 d. C., um autor que não conheceu Jesus, mas muito bem as visões e profecias de Isaías, Ezequiel e Daniel, dos salmos de David, e dos livros de Henoch e de Tobias. E que as utilizou frequentemente na feitura da sua obra imaginativa, provavelmente escrita para estimular a fé e a esperança e também para afastar os cristãos de estabelecerem acordos ou acomodações com outras comunidades religiosas, dando continuidade de valor aos profetas do Antigo Testamento e ao seu estilo, em riscos de serem destronados caso o Cristianismo nascente cortasse com o Antigo Testamento, o que desgraçadamente sabemos que não aconteceu.
Como se deu o grande salto de tão poucas referências ao arcanjo S. Miguel à  aceitação e expansão tão poderosa do seu culto cremos ter apresentado alguns factores, nomeadamente a acção de Constantino, cm templos e ícones.
Um ícone russo do séc. XVII, Mikhail com a espada desembainhada e sob o olhar de Jesus.
Já o discernirmos nas intervenções, visões e revelações micaelicas o que possa ter mesmo acontecido é dificílimo, restando-nos pois acrescentar alguns elos históricos, cultuais e artísticos que lhe foram  consagrados, sem alongarmos demasiado o artigo que lhe consagramos neste seu dia 29 de Setembro de 2024.
Um dos aspectos que justificará o sucesso de Mikael foi o terem-se aproveitado bem os locais  e os cultos dos deuses greco-romanos, tal como vemos no Michaelion de modo que podemos explicar a consagração de Constantino e depois de outros por duas razões: uma a de se cristianizar um local de culto de pedras e de águas pagão, já com fama miraculosa e portanto absorvendo facilmente os seus peregrinos, que sacrificavam e rezavam devotamente antes a Zeus Sostenos, ou noutros locais a Hermes, Mercúrio,  Wotan,  Lug, a Esculápio,  Aegitania, a Endovelicus, como se verificou no Alentejo em S. Miguel de Terena e do qual vários testemunhos cultuais estão hoje no Museu de Arqueologia em Belém. Por outro, porque a necessidade ou  apetecência de intermediários, tanto mais que Jesus não regressara logo como muitos erradamente esperaram, e o acesso ao Pai e ao Espírito Santo não era tão fácil, provavelmente foi crescendo, recorrendo-se aos anjos e e depois aos seres considerados santos, e sabemos que foi o papa João XV (985-996), em 993, a canonizar o primeiro, Santo Ulrico, Bispo de Augsburgo que morrera vinte anos antes.
A protecção do Arcanjo em templos ou capelas estabeleceu-se tanto em locais de cultos pagãos,  geral fora das cidades, em sítios altos, ou de águas, como nas cidades, tal a cidade de Constantinopla que tantos (quinze) teve após o exemplo de Constantino e do Michaleion. Outro momento alto da sua expansão sucedeu no sul de Itália, na Lombardia, a 8 de Maio de 492, quando o Arcanjo Mikael se terá manifestado ao bispo Siponto numa gruta do Monte Gargano, para que lhe construisse um santuário dando azo a que muitas das igrejas construídas sob a sua invocação  tivessem criptas ou se assemelhassem à gruta de Gargano. 
 Anos mais tarde, em 509, teria sido o papa Gregório a vê-lo aquando de uma peste, sobre o castelo do Santo-Anjo, em Roma. E em  709, passa-se o mesmo quando Mikael aparece e  pede ao bispo e  depois santo Aubert para lhe abrir uma gruta  e templo no monte de S. Michel, na Bretanha e, numa hermenêutica anagógica, certamente a gruta é sobretudo a do coração e da devoção, e é por tal chama e luz do amor acessa que temos acesso aos Anjos e Arcanjos.  
Invulgar gravura ou registo de uma irmandade de S. Miguel portuguesa, séc. XVIII.
Num sentido humilde muitas confrarias e irmandades de S. Miguel se criaram no mundo, em Portugal e em igrejas ou pequenas capelas se reuniam para cultuar e partilhar a fraternidade cristã sob as asas angélicas, ou para orar pelas almas já partidas, as alminhas no Purgatório e que  tanto necessitam das nossas orações, como algumas das nossas freiras místicas do séc. XVII-XVIII souberam e confessaram, tal a venerável Mariana da Purificação de Beja, ou a soror Isabel do Menino Jesus, em Portalegre.
Também algumas profissões o invocaram como protector, por exemplos os boticários ou farmacêuticos medievais, quem sabe se por Mikael ser o mestre da pesagem do bem (virtutes) e do mal (pecata) na alma, e logo servir de analogia à sábia e atenta pesagem das poções dos medicamentos que poderiam salvar ou matar. 
S. Miguel pesador de almas, por Rogier van der Weyden (1399-1464) no museu de Beune.
Este aspecto de pesar as almas implicava também, para as boas, guiá-las no além, servir-lhes de guia ou psicopompo e tal foi certamente uma das razões fortes do aumento do culto de Mikael: era um protector na hora tão temida da morte, não bastavam as Nossas Senhoras da Boa Morte, ou o Bom Despacho. Podemos ver nas fontes de tal alguma influência do Egipto, a terra mãe das religiões e tão cuidadosa na pesagem das almas, presidida pelo psicopompo Anubis. O considerar-se Mikael o braço direito de Jesus  já que fora erguido a seu principal príncipe, ou voz, no julgamento previsto no Apocalipse, referido também na epístola de Judas Tadeu, mas sem se mencionar a acção de Mikael nele. E uma urgência de destino no além,  antecipando-se o julgamento do hipotético e suspeito do Fim dos Tempos: o julgamento era à hora da morte, conforme estava a alma, logo se caminhava para inferno céu e purgatório, como vemos na Divina Comédia de Dante, no Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente e em peças do teatro popular religioso europeu
Anúbis, com cabeça de chacal, pesa o estado do coração, da piedade e da devoção.
Outro ainda dos factores da fortuna do Arcanjo Mikael é ele ter sido   considerado protector, ou o arcanjo, de locais e mesmo países, o primeiro caso sendo o de França, onde já em 709 lhe tinha sido consagrado o monte de Saint-Michel na Bretanha, mas também Israel, o Líbano, a Rússia e o Vaticano.
Também a Portugal foi  considerado estar, infundadamente, sob custódia de S. Miguel, pois a instituição da festa do Anjo Custódio de Portugal pelo rei D. Manuel, realizada em 1507 e que se comemorava anualmente no dia 25 de Julho, não o refere de modo algum, ainda que ao longo dos séculos as forças guerreiras ou protectivas atribuídas a S. Miguel fossem invocadas por igrejas, capelas ou mesmo alguns seres nas suas batalhas interiores ou mesmo exteriores.
O Arcanjo de Portugal, ou Anjo Custódio, que nunca foi o Arcanjo Mikael numa escultura quinhentista na Charola do Convento de Cristo, em Tomar
As concepções violentas dos Anjos, provindas em grande parte do Judaísmo, algo derivadas da época e da concepção de Deus concretizada num Jehova cioso, violento e até cruel, talvez  fosse bom serem postas de parte, acabando com a crença nas mortandades realizadas por Anjos, típicas do Antigo Testamento, tendo-se mesmo criado um  Anjo Exterminador (pois seria demais ser o Arcanjo do país, e logo Mikael) que teria matado os primogénitos do Egipto, o que serviu de fundamentação à legenda evangélica de Herodes ter mandado matar as crianças até à idade de Jesus, dois anos]; outro dos exemplos sendo Isaías, um dos profetas violentos, narrando  no cap. XXXVII que  um Anjo celeste exterminou numa noite 200.000 Assírios comandados por Senaquerib, por terem blasfemado do nome santíssimo de Deus.
Uma imagem de S. Miguel angélico, numa fotografia em Portugal mas não localizável.
 São certamente duas mistificações, como se Deus mandasse matar por um Anjo, tomando partido em guerras humanas, e logo duzentos mil homens. Um mau precedente se abriu com esta intrujice, pois ao longo dos séculos vimos sacerdotes a abençoar os povos antes de partirem para guerra ofensivas e injustas, e para chegarmos aos nossos tempos e ouvirmos criminosos de guerra, tais como Bush, Blair, Cameron e outros, afirmarem que Deus os mandara entrar nas guerras no Médio Oriente. 
 Se formos para outra religião da zona, o Islão, e no seu texto fundador, Mikael apenas aparece uma só vez, na II surata, al-Bacara, a Vaca, verso 98, «Quem for inimigo de Deus, dos Seus anjos, dos Seus mensageiros, de Gabriel e de Miguel, saiba que Deus é adversário dos incrédulos», e popularmente quando executa com o anjo Gabril ou Jibril  a pesagem das almas, algo bastante presente na iconografia cristã, como se a impossibilidade no Islão de representarem figuras humanas gerasse uma reacção iconográfica  no Cristianismo, tão grande que a Reforma Protestante veio por cobro ao culto das imagens, infelizmente destruindo muita imagem preciosa e tornando a religião Protestante bastante mais seca, impessoal, pouco piedosa, ao perder as imagens, imaginações e aceitação de intermediarizações e visitações seja dos santos e santos seja dos Anjos da Guarda e Arcanjos, ou mesmo de Maria, todos eles tão cultuados na Europa Católica e em especial em Portugal e em Fátima.
É natural então que a partir da Reforma protestante mais se acentuasse a apetência pelos anjos e arcanjos, e sabemos como o culto do Anjo da Guarda recebeu grande incremento então, tal como os Arcanjos. Mas a estatística do culto, das estátuas dos santuários, e das devoções ao longo dos séculos não está ainda bem feita (embora a Mariana esteja bem mais) e é difícil de se concretizar dada a pluridimensionalidade dos factores e a imensidade numérica de exemplares.
Exemplar dos estatutos, deveres, festas e orações (a principal sendo: "Anjo de Deus, que sois o meu guardião, e a quem eu fui confiado pela bondade divina, esclarecei-me, defendei-me, conduzi-me, dirigi-me. Assim seja". Duma confraria dos Anjos da Guarda do séc. XIX, Lyon, França, Europa antiga.

  Chegado a este ponto, passando por tantas efabulações bíblicas, certamente não devemos pôr em causa a existência dos anjos e arcanjos, ou seja de espíritos celestiais, com diferentes níveis de ser e poder, tanto mais que embora as referencias escriturárias fundacionais a Mikael fossem poucas uma longa tradição se foi criando, com muitos seres obtendo visões dele e descrições, não estando bem estudado as que mais fidedignas serão, pese a moda dos Anjos que desde os 70 com o New Age se foi desenvolvendo, mas que em termos de estudos e livros ficou bastante no comercial, ainda que em circuitos académicos e religiosos alguns estudos valiosos se tenham publicado.
A luta de Mikael com o dragão, por Max Wolffhügel, um pintor antroposófico, steineriano.
Poderíamos referir ainda alguns pintores que  pintaram ou desenharam Michael com tal qualidade que poderemos admitir que foram inspirados, ou ainda os nomes dos clarividentes que viram o Arcanjo e escreveram sobre ele, seja membros da Igreja Católica seja devotos e místicos de outras igrejas e religiões, ou mesmo esotéricos e  espiritualistas, iniciados, ocultistas, e seria valioso.
Entre eles, Rudolfo Steiner (1861-1925) é certamente um dos que mais lhe consagrou meditações, reflexões, esquemas, teorias e palestras, ligando bem os quatro Arcanjos e os elementais da Natureza às quatro estações do ano, às festividades solsticiais e equinociais, celebradas em tantos povos, e estudando e valorizando extraordinariamente  Mikael e a sua  acção na ciclicidade histórica humana, e estaríamos agora, desde 1879, na era Mikaelica. 
A era de Micael, por Leonor Malik, a directora da escola Jardim do Monte, em Alhandra.
 Dediquei algumas horas de leitura e meditação a vários livros sobre anjos e no blogue encontra artigos, como por exemplo:https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/08/livros-sobre-anjos-os-melhores-e-os.html
Do fabuloso Hans Memling (1430-1494), um S. Miguel muito luminoso, clarificador, pacificador, a espada da Verdade apenas para ligar a Terra  e o Céu...
 Podemos perguntar-nos ainda assim o que fazem estes grandes seres nos nossos dias de hoje, e se até  alguma diminuição de crença religiosa neles os afectará na sua plenitude de mensageiros e inspiradores? Aguardam os fins dos tempos para lutarem e julgarem as almas, como algumas escrituras imaginaram?  Certamente não, mas mais modestamente inspiram aqueles que os invocam e meditam sentidamente, com necessidade e devoção amorosa, tal como os que   desenvolvem boas qualidades anímicas e aspiram a ligar-se mais a eles, nomeadamente ao Anjo da Guarda, ou a um ou outro Arcanjo, e perseveram na aspiração e adoração a Deus?
Quem medita mais intensa ou perseverantemente no Arcanjo Mikael, usando até o mantra ora ternário Mi-ca-El ou Mi-ka-hil, ora polar Mi-guel ou Mi-cael, e com as associações energético-psíquicas que quiser,  poderá receber por vezes certamente dele, ou do campo de forças psico-espirituais e angélicas ligado, as energias luminosas, cruzadas e dinamizadores que necessita nas suas lutas, meditações ou criatividades e assim o seu culto continuará a existir por vivências e será um factor de ligação entre o mundo humano e o espiritual e divino, e fonte de harmonia, beleza, coragem, paz no Mundus e Kosmos...

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

O geoestratega Dugin adverte o Ocidente que a política de dissuasão nuclear aprovada por Putin a 26-IX-24 fará perigar o Ocidente se este continuar a apoiar o regime de Kiev na sua incursão em Kursk. O que fará o Ocidente? Aquietarão (e substituirão) finalmente Zelensky e tentarão negociar a Paz?

Escrito a 26 de Setembro, por Alexandre Dugin,  o texto que propomos à leitura  é simples mas espelha contudo uma situação grave: o conflito nuclear pode acontecer, e como se o pode evitar, bem como terminar a mortandade eslava decretada pelo mantra dos políticos e oligarcas norte-americanos e europeus, "até ao último ucraniano". 
 
Dugin parece apontar apenas para a retirada imediata da Ucrânia, mas talvez esteja a exagerar e no entendimento do Kremlin e de Vladimir Putin isso seja apenas uma ferida, que será dentro em breve sanada, não havendo portanto razão para o emprego de meio tão violento como o nuclear. Cremos mesmo que Putin, na sua sabedoria e paciência, fez a emenda à doutrina nuclear e deixou a advertência, sobretudo para o caso de serem dados ao regime extremista de Kiev mísseis de longo alcance que pudessem atingir Moscovo e logo causar muito mais mortes civis do que as poucas pessoa por dia na zonas russas limítrofes. 
Cremos que pressionados pelos resultados das eleições europeias, em que os votos foram mais para a esquerda e para a direita, do que para o centro bi-partidário inepto e escravizado aos USA da maioria dos países europeus, os governantes começam a pensar duas vezes se devem manter o seu posicionamento falcão ou warmonger e continuar a prolongar o conflito e a mortandade com o envio de mais armas e mais dinheiro, tal como os ingleses e franceses, alemães e holandeses se têm destacado, já que a santa Rússia, na sua justiça e poder, sabedoria e patriotismo, é invencível e ao contrário da NATO nem recorreu ao Irão, China e Coreia de Norte com quem está aliada, o que teria todo o direito de o fazer, pesem os ataques condenatórios e as sanções que o G7, a  NATO, UE e USA estão sempre a ameaçar ou a fazer por tal hipótese, legítima certamente. 
O texto foi publicado nos meios ligados a Daria Dugina Platonova e as seu pai, na Arktos, e oiçamos então o que ele pensa e escreveu:
 «A sessão de ontem da reunião permanente do Conselho de Segurança da Rússia, durante a qual Vladimir Putin anunciou emendas à doutrina nuclear do nosso país (“Fundamentos da Política Estatal no Campo da Deterrência Nuclear”), é um acontecimento extremamente importante. O aspecto mais significativo  é a seguinte inovação introduzida na doutrina nuclear: a participação em agressões contra a Rússia por qualquer estado não-nuclear, se apoiada por um estado nuclear, será considerada um ataque em conjunto à Federação Russa.
Este é um ponto fundamental, segundo o qual nosso Presidente, como Supremo Comandante-em-Chefe, agora não retém apenas o direito de usar armas nucleares. No caso de nosso país ser atacado por um estado não-nuclear com o apoio de um estado nuclear, ele não apenas tem o direito de responder de acordo com toda a lógica da dissuasão nuclear, mas é obrigado a fazê-lo. [Talvez esta seja uma interpretação mais do kshatriya Alexandre Dugin...]
Agora, vamos considerar: isso é sobre o futuro ou o presente? Neste momento, estamos a testemunhar um acto de agressão direta contra a região de Kursk. Uma invasão pela Ucrânia hostil e não-nuclear, apoiada e assistida diretamente por um estado nuclear. Isso significa um acto conjunto de agressão contra a Federação Russa por parte da NATO, dos Estados Unidos e da Ucrânia.
Claro, ao mesmo tempo, há também quatro outras entidades que se reuniram com a Rússia, contra as quais a Ucrânia está a cometer agressão. No entanto, no caso da região de Kursk, agora temos não apenas o direito, mas também a obrigação de entrar em guerra com a NATO. O mesmo  se aplica agora a qualquer violação da integridade territorial da Bielorrússia, nosso parceiro estratégico no Estado da União.
Em outras palavras, a partir do momento em que a nova versão da doutrina nuclear for adotada, deve-se reconhecer que a Rússia está em estado de guerra com a NATO. Há evidências concretas de agressão contra a Rússia por parte do regime ucraniano, com o apoio de um estado nuclear. Quer gostemos ou não, de acordo com nossa doutrina nuclear, agora estamos obrigados a entrar em um conflito em grande escala com a NATO e os Estados Unidos da América.
Deixem-me repetir, isso é mais do que sério. Essencialmente, estamos numa situação onde entrar em  guerra é inevitável. E não em situações hipotéticas que podem vir a surgir um dia, mas em circunstâncias que já  já um fato bem conhecido.
Portanto, hoje, para evitar um apocalipse nuclear, ou seja, uma confrontação nuclear direta entre a Rússia e a NATO, há apenas uma solução. A retirada imediata das tropas ucranianas da região de Kursk. Imediata, porque qualquer presença continuada, com o apoio contínuo dos EUA e da NATO, é [ou pode vir a ser] simplesmente o início inevitável de uma guerra nuclear. Não porque decidimos assim, mas porque  tais emendas foram adoptadas na nossa doutrina nuclear.
Sim, claro, muitas pessoas tentarão agora suavizar essa rigidez. Mas a essência é que não se tratam apenas de mais "linhas vermelhas", mas efectivamente uma decisão para o Armagedom nuclear. Em quaisquer outros documentos, incluindo a Estratégia de Segurança Nacional, as emendas ainda podem ser interpretadas de maneira diferente. Mas quando tal cláusula é adotada em nossa doutrina nuclear, não nos deixam outra escolha.
Sim, este é um movimento muito sério e um documento muito sério. O que aconteceu ontem provavelmente é um ponto de viragem na história. Porque, nas circunstâncias atuais, não podemos mais evitar um confronto direto com a NATO.» 
Aleksander Dugin.

Texto na versão inglesa extraída da Arktosjournal.com e traduzido por nós. Segue a versão inglesa. English version, original for me: «Yesterday’s session of the permanent meeting of the Russian Security Council, during which Vladimir Putin announced amendments to our country’s nuclear doctrine (“Fundamentals of State Policy in the Field of Nuclear Deterrence”), is an extremely important event. The most significant aspect here is the following innovation introduced into the nuclear doctrine: participation in aggression against Russia by any non-nuclear state, if supported by a nuclear state, will be considered a joint attack on the Russian Federation.
This is a fundamental point, according to which our President, as Supreme Commander-in-Chief, now not only retains the right to use nuclear weapons. In the event that our country is attacked by a non-nuclear state with the support of a nuclear state, he is not only entitled to respond according to the full logic of nuclear deterrence but is obligated to do so.
Now, let us consider: is this about the future or the present? Right now, we are witnessing an act of direct aggression against the Kursk region. An invasion by hostile, non-nuclear Ukraine, supported and directly assisted by a nuclear state. This means a joint act of aggression against the Russian Federation by NATO, the United States, and Ukraine.
Of course, at the same time, there are also four other entities that have reunited with Russia, against which Ukraine is committing aggression. However, in the case of the Kursk region, we now have not only the right but also the obligation to enter into a war with NATO. The same now applies to any encroachment on the territorial integrity of Belarus, our strategic partner in the Union State.
In other words, from the moment the new version of the nuclear doctrine is adopted, it must be acknowledged that Russia is in a state of war with NATO. There is concrete evidence of aggression against Russia by the Ukrainian regime, with the support of a nuclear state. Whether we like it or not, according to our nuclear doctrine, we are now obligated to enter into a full-scale conflict with NATO and the United States.
Let me repeat, this is more than serious. Essentially, we have placed ourselves in a situation where entering into a war is inevitable. And not in hypothetical situations that may arise someday, but in circumstances that are already a well-known fact.
Therefore, today, to prevent a nuclear apocalypse, that is, a direct nuclear confrontation between Russia and NATO, there is only one solution. The immediate withdrawal of Ukrainian troops from the Kursk region. Immediate, because any continued presence there, with the continued support from the US and NATO, is simply the inevitable start of a nuclear war. Not because we decided so but because we have adopted such amendments to our nuclear doctrine.
Yes, of course, many will now try to soften this rigidity. But the essence is that this is no longer just “red lines” but effectively a decision for nuclear Armageddon. In any other documents, including the National Security Strategy, the amendments might still be interpreted differently. But when such a clause is adopted in our nuclear doctrine, we leave ourselves no choice.
Yes, this is a very serious move and a very serious document. What happened yesterday is probably a turning point in history. Because under the current circumstances, we can no longer avoid direct confrontation with NATO.»



terça-feira, 24 de setembro de 2024

Homenagem a Paracelso, nos 487 anos da sua partida da Terra, com breve biografia e alguns dos seus ensinamentos e discípulos.

 Paracelso, pintado por Quentin Matsys, que também já retratara Erasmo e Thomas More, na cópia antiga do Museu de Louvre, já que o original desapareceu há muito,

 Um dos génios mal acolhidos pelo seu tempo, Aureolus Theophrastus Bombastus Paracelsus nasceu a 17-12-1493, no Inverno, no signo do Escorpião, na zona de Ernsielden, Suíça, numa casa situada num desfiladeiro, junto à ponte do Diabo e à passagem de peregrinos para Etzel, e próxima dos píncaros dos Alpes, o que o terá talvez "psicomorfado" para toda a sua vida de itinerância.  Recebeu o nome de baptismo de Theophrastus Bombastus von Hohenhein, o resto sendo acrescentado por ele próprio, do seu pai, um médico da Suábia mas desterrado para aquela região inóspita, Wilhelm von Hohenhein, com quem veio a aprender muito, nomeadamente nas viagens que este fazia, seja em busca de plantas para mezinhas, seja de minerais em minas, já que foi de professor de química na Escola mineira de Villach. Frequentou depois  escolas conventuais e episcopais (onde  dialogou e aprendeu, entre outros, com Nicolas Kaps e o famoso abade Tritémio, ou Johann Tritemius, alquimista), e as universidades de Basileia e Viena, até se doutorar em Medicina, em 1516, em Ferrara, Itália, viajando em seguida  sete anos para «com entusiasmo e diligentemente encontrar e investigar as artes médicas mais confiáveis» (passando em 1518 por Granada e Lisboa), por vezes como médico militar, outras como alquimista (em Schwaz, Tirol), até estabilizar em Basileia em 1527 (convidado pelo município, sob recomendação de Froben e Erasmo), mas apenas por um ano, por oposição dos professores da Universidade aos seus métodos, uso da língua vernacular alemã e afirmações, pois a proclamação de início do magistério,  num discurso revolucionário a vários níveis, e acompanhado da queima de alguns livros de medicina, porque pouco valeriam exacerbaram os mais escolásticos e conservadores, de modo que recusaram a sua nomeação e vieram a atacá-lo anonimamente numa linguagem verdadeiramente execrável, invejosos das suas capacidades científicas, intuitivas e curadoras.

De Hans Holbein, para o Elogio da Loucura de Erasmo: os insidiosos e invejosos...

Esses incidentes aconteceram em mais três ou quatro cidades, pelas invejas e conflitos que criava pela sua independência, sinceridade ou linguagem médica nova, e por desmascarar os embustes médicos e farmacêuticos da época, e num dos casos dos próprios grandes banqueiros Függer. De Basileia passou à Alsácia, Suábia, Nurenberg, onde em 1529 esteve em valiosos diálogos com Sebastian Frank. Mas aí de novo, por oposição de médicos e farmacêuticos associados na Universidade de Leipzig, teve de partir. Era contudo uma época de ouro, e de busca dialogante da conhecimento e verdade, do Humanismo europeu, embora já  desde 1517 começasse a fractura da Reforma e depois a Contra-Reforma, assombrando a Europa, com censuras e perseguições, algo que ele sentiu bastante na pele e alma, embora mais por professores, médicos e farmacêuticos conservadores. 

Os doutores escolásticos, por vezes os casmurrões sorbónicos (da Universidade de Paris), caricaturizados por Hans Holbein, para o Elogio da Loucura, de Erasmo, um amigo de Paracelso.

Notabilizou-se pela sua erudição, coragem e mente prescrutadora e optimista («Deus quer que experimentemos toda as suas obras, que penetremos nos segredos da Natureza e que nada disso nos permaneça desconhecido», in De Prognosticatione), e por ter sido um dos  descobridores na medicina experimental e laboratorial em vários campos e terapêuticas, nomeadamente na ginecologia, sífilis e doenças psicosomáticas, socorrendo-se ainda nas suas curas do conhecimentos das subtis correspondências (as assinaturas, ou sinais de Deus nas natureza, nomeadamente no paralelismo de vegetais e partes do corpo humano) de propriedades entre os reinos e elementos da Natureza, visível e invisível, destacando-se na utilização de tinturas metálicas, dos minerais, com suas propriedades químicas, tal o ouro, o zinco, o bismuto. Deixou vários tratados médicos, filosóficos, teológicos, astrológicos, alquímicos e de prognósticos, e vinte oito livros foram publicados em sua vida, entre 1527 e 1538. 

A segunda figura das trinta  e duas do enigmático livro Da Prognosticação, na edição de 1549, impressa  na contracapa da Poesia Profética, Mágica e Espiritual, de Fernando Pessoa, que dei à luz em 1989, nas Edições Manuel Lencastre.
Sucederam-se várias edições, as dos impressores Theodor Birckmann (1564) e Peter Perna (1575 e 1581)  e as  obras todas até então descobertas, mais de 300, foram reunidas diligentemente e dadas à luz entre 1589 e 1591 pelo médico Johannes Hauser em dez grandes fólios, onde encontramos a Grande Cirurgia, o Paramirum e o Paragranum, De Natura Rerum, o Labyrintus Medicorum Errantium, a Astronomia Magna, os tratados sobre a peste, as cãibras, os cálculos ou pedras, as doenças dos mineiros, a epilepsia e a loucura, etc. E ainda os escritos das suas visões antropológicas, filosóficas, teológicas, ocultistas e espirituais, o seu credo (muito poderosamente afirmado),  intuições, prognósticos (estes com grande circulação) e teorias, nomeadamente quanto aos sinais ou assinaturas da Natureza (a forma corresponderia à essência), as três substâncias (enxofre-fogo espiritual, mercúrio-energia anímica e sal-matéria corporal)  e o uso e eficácia dos talismãs, estes desenhados nas formas geométricas adequadas aos influxos e posicionamentos dos astros, sendo acompanhados de palavras e orações.  

O ser humano zodiacal, numa gravura impressa entre 1530-1540, em Estraburgo, por Jacob Cammerlander, na obra Eine newe Badenfart...
Teve algumas crenças exageradas nos poderes da alquimia, que conhecia bem, tendo trabalhado por exemplo em 1529 com o alquimista Bartolomeu Schobinger, no laboratório do castelo de Horn, em St. Gallen. E nos poderes de certos remédios preparados a partir do partes do corpo humano e animal, e sobretudo de minerais, de que nos chegaram várias receitas, por vezes algo estrambólicas, nas linhas da alquimia, espagíria, astrologia e magia operativa, sob o céu das ideias filosóficas pitagóricas, neoplatónicas e herméticas que circulavam no Renascimento e que ele procurou experimentar e sintetizar quase que enciclopedicamente. Foi amigo do grande impressor Froben, e  dos humanistas Erasmo (e sobreviveu correspondência),  Oekolampad, os irmãos Amerbach, e Vadianus, tendo tratado mesmo os dois primeiros.

Erasmo, pintado por Quentin Massys, num altar lisboeta.
Talvez o bom e profícuo relacionamento com o teólogo e místico profundo Sebastian Frank, que o acolheu no ano de 1529, possibilitando-lhe bons escritos teológicos e onde especulou com bastante originalidade, tenha contribuído para se intitular professor ou  "Doutor das santas Escrituras", algo que contudo só pode manifestar a escassas almas ou pequenos grupos de espirituais que ia encontrando ou atraindo, em especial nos Alpes e em Meran no Tirol em dificultosas e fabulosas satsangas itinerantes, hoje quase ignoradas mas na época vividas com grande fervor e provavelmente íntima eficácia na clarificação curativa e espiritual, que o iluminado Paracelso, pelo seu astra, ou espírito santo próprio, sob a graça divina, transmitia.
Em 15
37 e 1538 convidado por Johann von Leipnick, marechal da Boémia e ser espiritual, esteve em Kromau, de novo com bons diálogos, meditações e escritos filosóficos e teológicos, tais como a Astrologia Magna, a Philosophia Sagax, que inclui o Tratado das Ninfas, silfos, gnomos, salamandras e outros seres e os Escritos de Caríntia, Caríntia onde esteve até 1540, seguindo depois para Salzburg, o seu último abrigo terreno.

Gravura de Paracelso, por Romeyn de Hooghe, para a valiosa História da Igreja apartidária e  dos Hereges, de Gottfried Arnold, 170o.
Do seus ensinamentos, escolheremos brevemente um, tendo em conta que, estudando e investigando bastante as ligações entre corpo, a  alma  e a alma Universal, a partir duma visão em geral tripartida do ser humano como corpo, alma e espírito (nous), e face ao saber antigo livresco, valorizou muito a vivência, o experimentalismo, a  magia tradicional popular milenária,  segundo as quais a imaginação, a fé e a vontade exercem efeitos fortes nos corpos e no mundo: «O ser humano tem uma oficina visível que é o seu corpo e outra invisível que é a imaginação. O Sol emite uma luz que ainda que impalpável e não agarrável, pode por concentração [dos seus raios] aquecer ao ponto de acender um fogo; de igual modo, a imaginação exerce os seus efeitos sobre a esfera que lhe é própria e faz germinar, e depois desenvolver, formas tiradas dos elementos invisíveis. Assim como o mundo é apenas um produto da imaginação da alma universal, assim a imaginação do ser humano pode criar formas invisíveis e estas materializarem-se. Quando um mulher grávida imagina algo fortemente, a criança que nascerá pode manifestar algum traço disso. A imaginação extrai toda a sua força do desejo. (...) A imaginação das mulheres é mais forte que a dos homens e pode, durante o sono, levá-las para outros lugares, onde pessoas no estado vibratório semelhante as podem ver. Elas  posteriormente podem lembrar-se do que viram, se bem que o seu corpo não se tenha sequer  movido na cama.» De Virtute imaginativa.

Gravura de 1503, por Albrecht Dürer, na obra Prognosticationem des Stabius, Nuremberg, representando a Anima mundi, a Alma universal, a grande Deusa.
Era o reconhecimento do psicosomatismo, da unidade do corpo, alma e espirito, do poder metamorfoseador da psique humana, seja na sua capacidade, em corpo subtil (o evestrium, na sua linguagem),  de projectar-se para fora do corpo físico, seja na sua capacidade de visualizar e obter o que pede ou deseja, o que no séc. XX, por exemplo, mestres como Paramahamsa Yogananda, Peter Deunov, Omraam Aivanhov e Bô Yin Râ realçaram nos seus ensinamentos, denominando-se mesmo galvanoplastia à arte de modelar a forma da alma e corpo da criança nascitura,  de acordo com os ensinamentos sacralizadores do matrimónio e nascimento, nos quais a união corporal é acompanhada e dirigida pela imaginação visualizadora bela, a realização espiritual e a invocação divina. Para alguns espirituais, e que na época seriam considerados heréticos,  tendo por isso de disfarçar bastante, tal seria provavelmente a razão da narrativa evangélica simbólica da virgindade de Maria e da sua gestação  pelo Espírito santo, por José e pelo Anjo ou Arcanjo  Gabriel.
Vénus, um dos arquétipos da mulher e, como planeta, muito influente na vida humana. Gravura da Practica Teutsch aufs 1537. Jahr durch den hochgelerten Doctorem Paracelsum beschriben und gemacht. 
Paracelso, talvez levemente frustrado na sua aspiração ou mesmo ânsia de transmissor da Luz e curador, no dia 24 de Setembro de 1541, em Salzburg, na albergaria do Cavalo Branco, partia para o mundo celestial, apenas com 48 anos, intensos e muito fecundos e polémicos,  bem preparado, redigindo o seu testamento dos escassos bens que tinha a favor dos pobres e firme no corpo espiritual que tanto teorizara  e alquimizara na fornalha da sua vida que fora Caminho e Verdade...
Oswald Crolius, em 1609, incluía no canto inferior direito, do frontispício, da sua Basilica Chymica, Paracelso, com Hermes Trismegisto, Geber, Morienus Romanus, Raimundo Lúlio d Roger Bacon.
A sua fortuna com o tempo foi crescendo, não só cientificamente e como filósofo da Natureza e médico como sobretudo pelos seus aspectos ocultistas, alquímicos e espagíricos, atraindo sucessivos admiradores, discípulos e estudiosos importantes, dos quais mencionarei Jacques Gohory ou em latim Leo Suavius (1520-1576), Leonhard Thurneisser (1531-1596), Valentin Weigel (1533-1588), Giovanni Battista Della Porta (1535-1615, dando à luz em 1578  a célebre Phytognomonica), Petrus Severinus, isto é, o médico dinamarquês Peder Sørensen (1542–1602, com a valiosa Idea medicinae philosophicae), Heinrich Khunrath (1560-1605), Michael Maier (1568-1622), o iluminado místico e filósofo Jacob Böehme (1575-1624), J.B. Van Helmont (1580-1644), os autores rosicrucianos dos séc. XVII-XVIII, nomeadamente Valentin Andreae (1586-1654), Tobias Hess (1568-1614) e outros do círculo de Tübingen, bem como os rosicrucianos posteriores (de que fiz menção no livro no livro de inéditos de Fernando Pessoa, Rosea Cruz, que publiquei em 1989). O beneditino, alquimista e maçon D. Antoine-Joseph Pernety (1716-1796), no seu Dicionário Mito-Hermético, elogia bastante Paracelso e explica muitos dos termos misteriosos ou cifrados dos seus escritos   e, já no séc. XX,  Carl Gustav Jung, teceu três reflexões valiosas em 1934, 1941 e 1942, Paracelso, Paracelso como médico, e Paracelso como figura [erscheinung] espiritual, a mais longa e bastante psicanalítica (a falta da mãe, como fonte de intensa compaixão) e alquímica. Mais recente é o contributo valioso de Patrick Riviere, La Medicine de Paracelse, 1988. Dos críticos, um dos mais fortes foi Nikolaus Hunnius (1585-1643), que reconhecendo o seu valor como médico e aceitando a altura em que as pessoas o queriam elevar, critica fortemente os seus aspectos teológicos que estavam em desacordo com as Escrituras, tanto mais que Hunnius era um fervoroso luterano. Ora muito lúcido e independente, tal como o era  seu amigo Erasmo, Paracelso distanciara-se bastante da adesão às religiões, justificando-se mesmo:«Quer sejam papistas, luteranos, baptistas, ou zwinglianos, todos estão prontos a glorificarem-se de possuírem só eles o Espírito Santo, e cada um grita: Eu estou na verdade, a verdade está comigo». Sua era uma visão mais celestial, cósmica ou se quisermos mesmo panteísta, duma vida divina na Natureza, que dispensava os intermediários, tanto mais que pouca realização espiritual e macrocósmica tinham.
O  mote ou lema de Paracelso, o seu testamento anímico, tão lúcido e tão importante nos nossos dias de arregimentações e manipulações, e que sintetiza bem o seu Credo, foi, é e será : Alterius non sit, qui suus esse potest. "De outro não seja, quem seu pode ser".
A gravura mais antiga e fidedigna de Paracelso, desenhada por Augustin Hirschvogel, em 1538, com o seu famoso lema ou mote, "De outro não sejas se podes ser teu."