sexta-feira, 20 de abril de 2018

Antero de Quental, um espiritual na demanda da liberdade e do Bem, na carta autobiográfica a Wilhelm Storck.

"O universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito."
É a 14 de Maio de 1887 que Antero de Quental escreve a sua famosa carta autobiográfica a Wilhelm Storck (1829-1905),  o qual já lhe enviara traduções em alemão de alguns dos seus sonetos, publicados na sua edição completa dos Sonetos, de 1886. Saltando no tempo, poderemos dizer que esta carta será provavelmente semente causal do testamento autobiográfico de Fernando Pessoa, escrito em 30-III-1935, seis meses antes de deixar a terra. Antero de Quental está ainda a quatro anos de tal e fá-lo mais para responder à intenção de poder ser apresentado melhor ao público alemão, conforme lhe pedia Wilhelm Storck. 
Muito valiosa toda ela é (e nesse sentido este pequeno excerto e comentário é um convite a lê-la, tanto mais que está on-line), pois Antero de Quental patenteia uma  visão retrospectiva bem conscienciosa (ao modo já proposto pitagórico) da sua vida e obra, e vamos destacar uma parte segmento pelo que nos mostra da sua evolução filosófico-espiritual, ou mesmo, se quisermos, da complexa relação da filósofo e do místico (pois afirma ter chegado à «profundidade de compreensão do homem interior a que os místicos chegaram», ou ainda do ser espiritual, que ele no fundo sempre foi, ainda que bem activo socialmente em momentos que o chamaram como ardoroso e carismático estudante, revolucionário socializante,  pensador ético e figura íntegra que é chamada a liderar a fugaz Liga Patriótica do Norte. Diz-nos então Antero:
 «O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o dum Goethe ou dum Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual nascera para a inteligência e me desenvolvera. Era a minha atmosfera, e todavia sentia-me asfixiar dentro dela. O naturalismo, na sua forma empírica e científica, é o struggle for life, o horror duma luta universal no meio da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialéctica gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me criara, da minha alma-mater, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao mundo.
A reacção das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem significação no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na história, a confirmação deste ponto de vista. Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo às origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos a Teologia Germânica e os livros budistas. Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas.
O Naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No  Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade Moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só  do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares. A monadologia de Leibnitz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo de realidade: a natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo interprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo».
 Detenhamo-nos um pouco e adaptemos ou interpretemos a ideia de Antero: o Bem, é  essência do Espírito, ou se quisermos mesmo, da Divindade, que é o Espírito primordial, e que é a fonte dos espíritos individuais O ser que medita, procura e manifesta o bem vence os determinismos psicológicos e sociais, desenvolve mais a acção livre e libertadora,  manifestando assim o livre arbítrio, e nesta actividade luminosa consegue libertar-se dos encadeamentos e prisões e sentir e realizar o fim último da humanidade que é o da sua reintegração no Bem, no ser Divino. Ora estes  seres que se esforçam, e se dão mais ao Bem, pelo bem e no Bem, são chamados por alguns "santos", e nessa sequência de conceitos  Antero de Quental, foi chamado de Santo Antero, apesar de ter sido bastante revolucionário e de se ter suicidado. Quando a serem eles os intérpretes supremos do Universo devemos entender que são quem consegue interpretar, decifrar e realizar os fins elevados e últimos dos seres e do universo. Quando a sermos senhores do mundo é uma afirmação complexa, e discutível mesmo será a de que só os humanos teriam a auto-consciência e relizariam o fim do Universo, pois se esta tomada de auto-consciência é fundamental para uma identificação maior nossa com o espírito, também outros seres a manifestarão.
Antero apela em especial a que não sejamos egoístas e encarcerados nas teias sociais, mas seres mais puros, desprendidos dos interesses egoístas e antes trabalhando amorosa e sabiamente pelo Bem.
  
"Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas."
  Quanto a outros tipos de consciência e formas de vida (que as humanas) também interpretarem e realizarem os fins do Universo, sem dúvida os espíritos celestiais, os seres angélicos, fazem-nos, numa história que nos escapa, apesar de mitologias biblicas e outras,  mas que é real, o mais importante sendo claramente o procurar desenvolver o discernimento e a prática do bem e da verdade em liberdade.
Leiamos novo uma das frases mais valiosas, pelo que tanto nos apela  a libertar-nos das manipulações e alienações sociais, nomeadamente a lavagem cerebral dos média, como a meditá-la valiosamente, pois a unidade do Bem-Espírito-Verdade-Liberdade  afirmada por Antero de Quental insere-o até não tanto numa linha religiosa ou filosófica, nem num nirvana do absoluto ou num Deus transcendente, mas numa tão moderna concepção e visão post-materialista, a que valoriza a componente psico-espiritual do ser humano como base do auto-conhecimento e da religação libertadora divina: "No Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade Moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo."

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