"O universo tem pois como lei suprema o bem, essência do espírito." |
É
a 14 de Maio de 1887 que Antero de Quental escreve a sua famosa carta autobiográfica a Wilhelm
Storck (1829-1905), o qual já lhe enviara traduções em alemão de alguns dos seus sonetos, publicados na sua edição completa dos Sonetos, de 1886.
Saltando no tempo, poderemos dizer que esta carta será provavelmente semente causal do testamento autobiográfico de Fernando
Pessoa, escrito em 30-III-1935, seis meses antes de deixar a terra. Antero de Quental está
ainda a quatro anos de tal e fá-lo mais para responder à intenção de
poder ser apresentado melhor ao público alemão, conforme lhe pedia Wilhelm Storck.
Muito valiosa toda ela é (e nesse sentido este pequeno excerto e comentário é um convite a lê-la, tanto mais que está on-line), pois Antero de Quental patenteia uma visão retrospectiva
bem conscienciosa (ao modo já proposto pitagórico) da sua vida e obra, e vamos destacar uma parte segmento pelo que nos
mostra da sua evolução filosófico-espiritual, ou mesmo, se quisermos, da
complexa relação da filósofo e do místico (pois afirma ter chegado à «profundidade de compreensão do homem interior a que os místicos chegaram», ou ainda do ser espiritual, que ele no fundo sempre foi, ainda que bem activo socialmente em momentos que o chamaram como ardoroso e carismático estudante, revolucionário socializante, pensador ético e figura íntegra que é chamada a liderar a fugaz Liga Patriótica do Norte. Diz-nos então Antero:
«O
naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o dum Goethe
ou dum Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência
suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer.
A sua religiosidade é falsa, e só aparente; no fundo não é mais do que
um paganismo intelectual e requintado. Ora eu debatia-me
desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual nascera
para a inteligência e me desenvolvera. Era a minha atmosfera, e todavia
sentia-me asfixiar dentro dela. O naturalismo, na sua forma empírica e
científica, é o struggle for life, o horror duma luta universal no meio
da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialéctica gelada
e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me
criara, da minha alma-mater, agora que a interrogava com a seriedade e a
energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao mundo.
A reacção das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me
do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência
moral não pode ser a única voz sem significação no meio das vozes
inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava,
quer nas doutrinas, quer na história, a confirmação deste ponto de
vista. Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond
e, indo às origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais
os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos a Teologia
Germânica e os livros budistas. Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento
psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma
extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas.
O
Naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas,
mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a
fenomenologia do Ser. No Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade
Moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só
do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos seus momentos físicos
elementares. A monadologia de Leibnitz, convenientemente reformada,
presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo
naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo de realidade: a
natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um
símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O universo tem pois como lei
suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do
determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível
e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um
cárcere: ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo
interprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo».
Detenhamo-nos um pouco e adaptemos ou interpretemos a ideia de Antero: o Bem, é essência do Espírito, ou se quisermos mesmo, da Divindade, que é o Espírito primordial, e que é a fonte dos espíritos individuais O ser que medita, procura e manifesta o bem vence os determinismos psicológicos e sociais, desenvolve mais a acção livre e libertadora, manifestando assim o livre arbítrio, e nesta actividade luminosa consegue libertar-se dos encadeamentos e prisões e sentir e realizar o fim último da humanidade que é o da sua reintegração no Bem, no ser Divino. Ora estes seres que se esforçam, e se dão mais ao Bem, pelo bem e no Bem, são chamados por alguns "santos", e nessa sequência de conceitos Antero de Quental, foi chamado de Santo Antero, apesar de ter sido bastante revolucionário e de se ter suicidado. Quando a serem eles os intérpretes supremos do Universo devemos entender que são quem consegue interpretar, decifrar e realizar os fins elevados e últimos dos seres e do universo. Quando a sermos senhores do mundo é uma afirmação complexa, e discutível mesmo será a de que só os humanos teriam a auto-consciência e relizariam o fim do Universo, pois se esta tomada de auto-consciência é fundamental para uma identificação maior nossa com o espírito, também outros seres a manifestarão.
Antero apela em especial a que não sejamos egoístas e encarcerados nas teias sociais, mas seres mais puros, desprendidos dos interesses egoístas e antes trabalhando amorosa e sabiamente pelo Bem.
Leiamos novo uma das frases mais valiosas, pelo que tanto nos apela a
libertar-nos das manipulações e alienações sociais, nomeadamente a lavagem cerebral dos média, como a meditá-la valiosamente, pois a unidade do
Bem-Espírito-Verdade-Liberdade afirmada por Antero de Quental insere-o até não tanto numa linha religiosa ou filosófica, nem num nirvana do absoluto ou num Deus transcendente, mas numa tão moderna concepção e visão post-materialista, a que valoriza a componente psico-espiritual do ser humano como base do auto-conhecimento e da religação libertadora divina: "No Psiquismo, isto é, no Bem e na
Liberdade Moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de
tudo."
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