sábado, 2 de dezembro de 2017

O enigma da morte de Antero de Quental. Diálogos e reflexões. Dezembro de 2017...

   Quando Antero de Quental resolve morrer fisicamente, quando renuncia à sua vida e ego no corpo terreno, poderemos nós pensar que estamos diante de um sacrifício, de um fazer sacro, de um entregar-se a Deus, de um assumir doloroso de uma morte-renascimento voluntária e abrupta?
Como não sabemos bem a quem se estava a dar, a entregar Antero : se à desistência, se à morte endeusada, se à morte redentora, se à Divindade, se ao Não-Ser ou se, simplesmente ao simples descanso e paz, ou quem sabe ainda se a uma mão divina ou à substância infinita e omnipresente divina, ficamos na dúvida.
Para complicar a solução temos de confessar que não temos  meios de saber qual o pensamento ou os pensamentos e sentimentos que o animavam, ou impulsionaram, no momento de premir o gatilho, ao que consta duas vezes, tal  como ele terá confirmado com os dedos,  sentado naquele banco de jardim pintado de verde e sob o signo da âncora e da Esperança, num dos anoiteceres mais trágicos da ilha açoriana.
Havia ainda hesitações, ou cogitara e decidira que chegara mesmo a hora naquela  tarde pois não tinha condições para continuar a viver na Terra e já concluíra a sua missão?
Face ao seu trajecto de líder da geração intelectual mais notável do seu tempo, como não pensarmos na morte de Sócrates, mestre da juventude de Atenas, tendo de tomar a cicuta pelas suas mãos calmamente, ou na do mestre Jesus repudiado por judeus e romanos e mesmo assim entregando-se a Deus sem rancores, ou a do sufi Hallaj quando não se retratou, e por isso foi morto, de ter proferido o herético ana al-haqq, ou seja, que Deus nele afirmava ser ele Deus?
Vários aspectos da vida de Antero parecem convergir, após uma juventude fulgurante, para o não-ser, para o não-existir, para o não encontrar o seu lugar e plenitude na Terra e assim, retraída a plenitude  criadora nele e com a sua doença psicosomática, as forças da passagem para o outro mundo e portanto da morte, internas e externas, cresceram. 
E como sempre cultivara não só o destemor perante a morte como o desprendimento em relação ao amor da vida, intrinsecamente corajoso e desde jovem líder no dar o passo inicial revolucionário,  também o passo fatal voluntário de cruzar o umbral  e ver o que resultaria surgiu-lhe como apetecível, natural, consequente, inevitável, não sabemos se nocturna e sombriamente, se numa subtil tonalidade de amanhecer e de se libertar das sombras terrenas que provavelmente o apoquentavam... 
Deve ter sentido, porém, que faria sofrer algumas almas, em especial as suas duas jovens pupilas Beatriz e Ermelinda, bem como um ou dois amigos e isso poderá ter sido o mais doloroso nessa sua ingenta via sacra, quantos metros até chegar ao banco, quantos minutos até desfechar do revólver a sentença de fim de vida...
                                             Indis)Pensáveis: 11 de Setembro de 1891 - O último passeio de Antero
Possivelmente não estava ressentido com as pessoas (e uma seria a irmã) ou ambientes que o encarreiraram e apressaram nessa vereda estreita que o levava a tal acto de abandono samuraico da vida terrena. 
A última representação iconográfica de Antero, uma pintura feita pelo seu primo Sebastião d'Arruda.
 Morria assim simplesmente em sincronia com uma desadaptação geral derivada da sua própria evolução psicosomática de envelhecimento e desagregação, que pouca harmonia realizava com o seu Eu superior e com o meio ambiente e que já era incompatível para o seu eu lúcido mas desgastado  face à constante insuficiência dos nervos, da digestão, do sono e da qual resultava a vida no corpo físico se ter tornado um purgatório de certo modo inútil.
Poderemos interrogar ainda o outro lado do enigma:  quando ele sai do corpo físico para que níveis ou planos invisíveis vai, que cores e densidade de alma ou do corpo psico-espiritual leva, que tipo de sentimentos-pensamentos o envolverão durante mais ou menos tempo, o que pensaria ele de tal voo? 
Quem estava por perto? Quem foi o primeiro ser a apoiá-lo? A sua mãe, o Anjo da Guarda, Germano Meireles?
E o que se passou na sua psique? Apenas a perda de consciência, o entrar num adormecimento? Ou o choque violento do tiro estilhaçaria tal possibilidade e um tipo de dilaceramento psíquico surgiu como contraparte do rasgar de artérias, nervos e tecidos cerebrais pelas duas balas?
Respostas difíceis...
E hoje, após tantos anos de pensamentos e escritos sobre a sua vida e obra, e certamente muitas orações por ele, como está e onde se encontra a alma espiritual de Antero de Quental? 
 
 Na atmosfera da Terra, nos mundo subtis e ainda com um corpo subtil próximo do terreno, lentamente ganhando ainda forças de Luz e de Amor, para se elevar mais? 
Ou, sacrificialmente, com esse acto e pelas forças psíquicas e de consciência altamente desenvolvidas na sua vida, obra e epistolário, tornou-se um ser que se conserva nos planos invisíveis próximos da Humanidade e que nos vai interpelando, inspirando, sobretudo enquanto leitores e pensadores da sua vida e obra?
E quantos dos nossos escritos, pensamentos e sentimentos, orações e meditações, sorrisos e chamas chegarão até ele numa certa medida de utilidade ao seu caminho ascensional? 
                                    
O que lhe faltou mais na vida e que deve ser uma lição para nós? Amar, encontrar e viver com a amada? Ou também amar mais a Divindade interna, meditando-a, invocando-a e pressentindo-a no amor que lhe dedicamos e na felicidade que sentimos?
Que trabalhos e investigações na sua obra ele mais desejaria que prossigamos? O que melhor nos faça e torne, na verdadeira religião da Humanidade,  seres mais harmoniosos e livres?
Que valores núcleos mais altos ou significativos considerará  presentes na sua obra, podendo  fortificar-nos e impulsionar no caminho de uma Humanidade mais harmoniosa e luminosa?
O amor, a liberdade, a aspiração ao bem, a sinceridade, a coerência, o ser-se justo, o dinamismo psíquico transformador, a fraternidade, a Divindade, o espírito em nós?
Mistérios e desafios criativos....  Lux Dei!
 ***
Texto dedicado a Eduardo Lourenço e à Ana Maria Almeida Martins, dois anterianos, já que há dois dias debatemos este tema na casa dele, estando ainda presentes a sua irmã e a sobrinha Isabel Fraga, tendo uma pequena parte do diálogo sido gravada e disponibilizada para o youtube: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/12/na-partida-de-eduardo-lourenco-breve.html

Sem comentários: