Esta fotografia dos anos 30 na Europa, que nos chega às mãos graças à Sónia Gabriel, parecerá hoje quase arqueológica, pois a moderna vulgarização e desvalorização do livro, devida à crescente utilização dos telemóveis, computadores e mesmo e-livros, tornaria tal actividade pouco remunerada em função do tempo passado com a casa de livros às costas e os tostões amealhados no acto de emprestar por um tempo, tal como seria o caso, ou eventualmente de os vender.
Todavia, o amor aos livros e a sua concomitante irmã que é a biblioterapia bem poderão transformar um documento do passado numa realidade dinâmica e harmonizadora actual, pelo menos num ensaio a ser lido e quem sabe a frutificar.
É um desafio que certos livros, objectos ou fotografias nos lançam e somos então atraídos para uma indagação maior da suas almas e assim dos efeitos luminosos delas nas nossas.
Esta fotografia de uma estante de livros na rua merece-o. Não é que não haja uma oferta enorme de livros na rua, que embora não estejam às costas podem aparecer em carros ou, sobretudo, em bancas ao ar livre, mas esta tão original e quase que íntima forma de divulgar livros e fomentar ou apoiar a leitura é de se admirar e de se aprofundar no mistério dos seus protagonistas.
Há fotografias que não se desvendam tanto na sua verdade histórica quanto criam ainda mais interrogações sobre as possíveis mensagens nelas contidas.
Desafiam pois a nossa sensibilidade e inteligência para conseguirmos penetrar o manto semidiáfano da superfície do aparente e entrarmos na alma dos seres e dos acontecimentos. Esta fotografia europeia dos anos 30 é uma delas.
Quem é esta mulher que é vista não de frente com a sua face e identidade bem desvendadas porém de costas, com uma leve e curta silhueta de um perfil calmo, doce e ponderado, ou com outras características, pois quanto de nós não projectamos nas leituras e apreciações que imaginamos nos outros?
O que está bem de frente para nós é uma estante de duas prateleiras, à escala corporal, e contendo cerca de 30 livros cujos títulos nas lombadas em tela não nos são acessíveis.
Algum espaço entre eles revela-nos que provavelmente algumas obras já saíram dos seus lugares originais, seja porque foram alugadas ou vendidas, cumprindo-se assim o objectivo principal deste acto pouco corrente que é levar-se a casa às costas cheia de livros.
Mas quem é a jovem que partilha assim os seus livros?
Qual o conteúdo deles? São os seus livros preferidos, ou serão os que as pessoas na época poderiam gostar mais?
Os livros são mesmo dela, ou foi um livreiro que os disponibilizou os livros bem como a estante, pagando-lhe um tanto, seja por percentagem, seja à jorna?
Se os livros são seus, se foi ela que realmente teve a coragem de sair à rua com a alma e o corpo à vista para se dar e derramar bibliográfica, bibliófila e biblioterapeuticamente, que espírito luminoso a habita ou ela é?
Esta questão não pode ser facilmente respondida, embora a fotografia providencie alguns pontos psicossomáticos que facilitam a uma certa aproximação à personalidade e ser da enigmática mulher que oferece os livros: os tornozelos finos, a perna elegante, a curva do nariz e dos olhos, a testa sensível, desperta, atenta, quem sabe amorosa e, no cimo um penteado sóbrio mas com fios de fantasia nas leves madeixas ao vento, sinal talvez, bandeira mesmo, de uma irradiação psíquica corajosa:
- Eu amo a leitura e o livro e quero partilhar convosco, daqueles autores e obras que mais aprecio e sinto terem melhores efeitos psicomórficos sobre vós, e que podeis escolher ao compulsarem-me...
Nunca poderemos saber ou intuir o que sentia a jovem transmissora de livros numa rua europeia dos anos 30, quando alguém começava a mexer nas suas costas de livros. Fechava os olhos e tentava adivinhar qual seria o escolhido, ou entabulava uma conversa inquirindo dos gostos ou recomendando este ou aquele, ou sentia apenas intimamente um arrepio na espinha ou na pele, e alegrava-se e sorria?
Se mesmo os títulos dos livros nos são quase impossíveis de decifrar quanto mais os pensamentos ou mesmo as palavras que nasciam no seio da jovem mulher nesse momento de maior contacto com alguém, no acto do amor aos livros.
Provavelmente não haveria uma disposição rigorosa na colocação dos livros na prateleira inferior ou na superior, como também era por mera ornamentação estética que uma flor pentalobada se encontra ao nível do seu coração espiritual, no meio do peito, como que assinalando a sua qualidade de ser do coração, cavaleira fiel do Amor ou ainda de rosacruciana, ou seja de na cruz do peso do seu trabalho florir no coração a rosa do Amor e do Espírito, divino.
As roupas das pessoas indicam um dia com frio, talvez o começo da Primavera ou o fim do Outono, ou que seja o pino do Inverno, mas com o Sol a brilhar e a intensificar a alegria dos transeuntes e em especial de quem desfrutar da leitura.
Entremos agora no segundo mistério maior desta fotografia: a mulher a consultar ou a ler um dos livros da estante portátil.
Vamos admitir que o fotógrafo, certamente a terceira pessoa a ter em conta, e quem medirá a sua importância e valor ao ter preservado este momento valioso para a História do Livro, talvez consciente que era uma importante e bela fotografia, ao passar por acaso na rua deparou-se-lhe esta cena e, portanto, que ela não foi preparada.
Uns momentos para aprontar a máquina, de marca desconhecida, quem sabe se o tempo suficiente para a leitora deixar esboçar-se um sorriso de satisfação que fecha e coroa o triângulo energético livro, fronte-mente e boca, qual anel das Três Graças, uma que dá, outra que recebe e a terceira que exprime e retorna.
Está a haver leitura de um livro e da sua alma subtil, intangível. Tal informação propaga-se ao cérebro e ao coração e ela exprime então alegria, num sorriso intemporal, para a eternidade, para nós, portador de uma leveza e pureza que indicam claramente que ela está a gostar do que lê e que vai levá-lo emprestado para durante uns dias se deliciar com o contacto com o livro, a sua textura, conteúdo, grafismo, imagens, mensagem do autor ou da autora e as impressões subtis que anteriores leitores tenham deixado na aura do livro.
Todavia é muito difícil intuirmos que livro é lido por ela pois as mãos que o seguram estão cobertas por luvas quentes que como que abafam em parte o que poderia emanar de revelador do seu título e autor. É só na ampla testa branca, no olhar concentrado e no sorriso de comunhão compreensiva que algumas partículas da informação que recebia se encontram mais activas, mesmo para nós hoje, quase cem anos depois...
Quem sabe se estaria mesmo a pronunciar nos lábios e para o céu da boca os sons das palavras e verbos, dedilhando-os à luz do Sol...
Não nos parece livro de poesia, de religião, de ciência e pensamos num romance mas também este tipo de escrita parece sem força para em alguns segundos ou minutos de leitura gerar o sorriso forte mas discreto que partilha luminosamente para a rua, para o fotógrafo e a fotografia, ou seja, para a perenidade...
É possível então que seja uma biografia, talvez mesmo acerca, adivinhemos, dos pre-Rafaelitas, ou uma obra de William Morris, e o que lê esteja de acordo com ela e a sua alma reluz com o Sol que atravessa as nuvens e aquece corpos e almas.
A jovem que empresta ou cede os livros está atenta e é como se estivesse também a ler e a aconselhar. Imóvel, aguarda confiante que a leitora se decida.
O fotógrafo não quer influenciar, apenas regista, trazendo até nós mesmo no horizonte da livraria portátil a passagem decidida pelo meio da rua de duas matronas que não vão ler mas que olham ainda assim para ele ou para o triângulo das Três Graças presentes nas duas mulheres amantes de livros.
A luz mais intensa visível é claramente a que circula e esplende na face das duas protagonistas e a que banha o livro dado à luz, num ano desconhecido, e que está mais uma vez a partilhar a sua sabedoria, amor e inspiração unitiva.
A dimensão do coração e o estado de consciência espiritual dos participantes nesta fotografia e ritual de amor e de leitura do livro são certamente bem luminosos mas talvez só no mundo espiritual, se merecermos a graça de todos um dia nele nos reencontrarmos, é que saberemos os mistérios que esta fotografia deixa nas almas, projectando-as para uma maior cultura e realização do Bem, do Belo e do Verdadeiro e a Unidade perene, divina que nos apela mais luminosamente do livro, da luz, da flor e da fronte.
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