sexta-feira, 17 de março de 2017

"Contemplação", soneto de Antero Quental, do ciclo final de 1880-1884, comentado.

Antero de Quental, na fotografia de que mais gostava..
Contemplação é o título dum poema do ciclo final da estrutura organizativa dos Sonetos de Antero de Quental, estando portanto incluído, embora não datado, nos que foram escritos entre 1880 e 1884, em Vila de Conde, e dedicado ao seu conterrâneo, companheiro em Coimbra e grande amigo Francisco Machado de Faria e Maia (1841-1923).
O soneto, com um título elevado e difícil em termos de realização espiritual efectiva, pois podemos dizer metodologicamente que primeiro há a concentração (focalização de atenção mental em algo), depois a meditação (continuidade desse fluxo unitivo) e por fim a contemplação (visão da essência, unidade de quem vê com o que é visto), acaba contudo por revelar-se como fruto mais de uma sensibilidade desiludida e de uma visão intelectual da vida senão pessimista pelo menos triste e vazia, e assim contrastar com a ideia repetida de que os seus últimos sonetos (de 1883, 1884) seriam já uma antevisão de unidade entre espírito e matéria, unidade que ele continuaria a cogitar e a demandar, e mesmo a demonstrar melhor apenas no penúltimo ano de vida, no seu seminal texto Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, publicado em 1890 na Revista de Portugal.
Na ordenação dos sonetos da edição de 1886 realizada por Oliveira Martins, mas a ela anuindo Antero (saindo mesmo uma segunda edição, enriquecida de várias traduções, em vida do poeta),  este soneto é o quarto da série final, seguindo-se a um primeiro, Transcendentalismo, onde anuncia um "espírito impassível" que terá avistado acima do bem e do mal terrenos; e a um segundo soneto, Evolução, onde afirma a sua crença na metempsicose dos seres através dos vários reinos da Natureza, até se chegar ao estado em que o ser ergue os braços e aspira só à Liberdade;  e a um terceiro poema, o longo Elogio da Morte, composto de seis sonetos, nos quais (muito sumariamente resumidos aqui por mim) sente e poetiza a sua imaginação-visão da Morte como uma amada Beatriz (a amada e guia de Dante na Divina Comédia), de mão gélida mas consoladora e que no seu nível mais elevado simbolizaria  a Paz universal e o regresso ao Não-Ser, o qual seria o único Ser Absoluto, como ele afirmou ou pensava então.
Estamos a ver que as forças psico-espirituais convocadas ou trabalhadas para entrar no elevado nível da contemplação não eram as melhores: Antero de Quental, no término dos seus esforços, vai apenas, e já foi muito na época e pela demanda filosófica e social em que se embrenhou, conseguir aspirar a, e intuir, um nível psico-espiritual do Universo impassível e libertador, que é no fundo semelhante ao estado da morte,  e que fora apontado pelos textos budistas que lera e pelos filósofos do Inconsciente, embora de modos  vagos ou superficiais em relação, por exemplo, aos níveis de consciência mais elevados ou subtis conhecidos dos místicos ocidentais e dos mestres espirituais orientais e admitidos e estudados hoje  pela psicologia moderna transpessoal e outras.
Com a morte, acontece para ele,  um regresso ao Não-Ser, estado este que tem uma avatarização (da palavra sânscrita avatar, descida divina à manifestação), formalmente cristã no soneto final da ordenação do livro, mas que de facto foi escrito em 1882, Na Mão de Deus, devendo esta expressão e imagem ser vista dentro da realização por Antero de Quental de Deus  como Justiça, Libertação e Paz, e não tanto referindo um Ser divino pessoal (Deus), como ele aliás explica em duas cartas, a primeira a Alberto Sampaio, de Maio de 1882: «Fiz depois que aqui estiveste mais um Soneto, que aí vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo para exprimir uma certa coisa, que doutro feitio não caberia num verso. Pura liberdade poética.» E segunda a João de Deus, a 20-VII-1882: «E agora aí vai um Soneto. Será talvez o primeiro de que gostes por mais alguma coisa do que só pela forma. O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da boa natureza. Reconheci que andar por toda a parte a proclamar, com voz lúgubre, que o mundo é vão, era ainda uma última vaidade...».
Muito significativo este afirmar do abandono de uma visão niilista, pessimista ou mesmo "oriental" do mundo como ilusão, e a valorização, no meio de uma natureza boa (Vila do Conde, o oceano, a praia, a maresia),  de um certo tipo de contemplação, ou seja, de unidade sentida da alma tanto com o Cosmos como com um ambiente que se lhe revelava muito benéfico, saudável mesmo, como alguns dos seus amigos que o visitaram afirmavam em cartas...
Foi pena ter de abandonar Vila de Conde, onde esteve dez anos bem harmonizadores e até contemplativos,  com as últimas desilusões: a da falta de reacção política ao levantamento popular nortenho que ele liderara contra o imperialismo inglês, com o Ultimatum de 1890, e a da falta de perspectivas afectivas, ambas a contribuirem para afunilarem o seu percurso para uma trágica morte voluntária, entregando-se a esse misterioso Não-Ser no qual anteveria a paz, tanto mais que a sua ideia de ter cumprido a sua missão, ou melhor, de que pouco mais teria para fazer, com os seus desgastados nervos, para tal o inclinavam.
Oiçamos então o soneto Contemplação, que se segue ao Elogio da Morte, e que significativamente foi um dos dois escolhidos para adornar o excelente busto realizado por Canto Maia, para o jardim Antero de Quental em Ponta Delgada...
«Sonho de olhos abertos, caminhando 
Não entre as formas já e as aparências, 
Mas vendo a face imóvel das essências, 
Entre ideias e espíritos pairando... 

Que é o mundo ante mim? Fumo ondeando, 
Visões sem ser, fragmentos de existências... 
Uma névoa de enganos e impotências… 
Sobre vácuo insondável rastejando... 

E dentre a névoa e a sombra universais 
Só me chega um murmúrio, feito de ais... 
É a queixa, o profundíssimo gemido 

Das coisas, que procuram cegamente 
Na sua noite e dolorosamente 
Outra luz, outro fim só pressentido...» 

Realçaremos numa hermenêutica simples e espiritual, a rica expressão inicial de sonhar de olhos abertos e ir caminhando, já não por entre as formas materiais mas por entre essências, ideias e espíritos.
Este "sonhar de olhos abertos" tanto aponta para o sonhar no qual estamos conscientes ou mesmo bem lúcidos do que sonhamos ou vemos, como ainda para um acto imaginativo, no qual, de olhos abertos ele sonha, visualiza-se ou sente-se, caminhando por entre ideias e espíritos, ou seja entre vibrações, entidades psíquicas e seres. 

Poderia ainda referir-se ao olho espiritual aberto, o denominado 3º olho, mas não cremos que ele estivesse tão consciente de tal, embora certamente a sua capacidade visionária e imaginal possa ao longo da vida ter-lhe dado intuições, imagens ou fulgores rápidos de visão subtil...
Antero de Quental tem a franqueza de não dizer que é uma visão verdadeiramente clarividente e assim podemos deduzir que a sua descrição corresponderá em grande parte ao que ele sobretudo sente e pensa, e assim dá-nos uma visão de abertura ao mundo subtil intensa e sentida mas na qual, embora com uma alma ou psique bondosa e de compaixão e aberta ao universal e ao infinito, não consegue ver senão um umbral subtil do universo material transitório e perecível, sem alcançar o nível espiritual dele, pois não conseguira gerar e desenvolver em si vibrações e órgãos subtis correspondentes ou afins dos planos espirituais elevados.
Deste modo a descrição dada do Além e do mundo subtil e espiritual tem as suas limitações, deriva das suas leituras e tendências, experiências e configuração psico-corporal e portanto do seu difícil e doloroso caminho e demanda.
A visão que nos oferece é então por um lado niilista e pessimista, pois tem por base um vácuo insondável, um tipo de vazio correspondente ao Não-Ser, ao qual sobrepõe um mundo de névoas e sombras transitórias, donde só lhe chegam os gemidos das coisas e seres que contudo ainda assim, diz-nos ele, procuram outra luz e outro fim.

Há aqui a admissão, e é o lado luminoso deste poema, de que a Natureza procura a Luz e um fim perene, divino ou de Bem, algo que ele no início do soneto afirmou de certo modo para si mesmo quando disse: contempla, as faces imóveis das essências, por entre ideias e espíritos pairando, fechando com este final de aspiração à luz o círculo do soneto.
                                 
Podemos perguntar, que filosofias e autores, que leituras e conhecimentos estão por detrás desta tríade composta de ideias, essências e espíritos, que paira acima do vácuo e dos gemidos do mundo, e é certamente difícil de responder-se com segurança, embora possamos apontar o dedo aos filósofos gregos, nomeadamente Sócrates e Platão, ao Oriente e aos autores das suas leituras mais espirituais.
É valiosa esta tríade, com as essências vistas por Antero como imóveis e fixas (e que para outras visões não o serão), atribuindo depois o movimento de, ele, a sua alma ou a visão, pairarem por entre as ideias e os espíritos, aqui aludindo ao espaço onde elas têm a sua existência designado na Antiguidade como a Alma do Mundo, referida por vezes na sua obra e que de certo modo corresponde ao que é hoje denominado Campo Unificado de energia informação consciência. 
Antero de Quental também experiencialmente intuíra e deduzira tal das experiências de magnetismo e transmissão de pensamento em que participou ou que conheceu, tal como refere na conhecida carta a Carlos Cirilo Machado, enviada precisamente em 1886, de Vila de Conde, nomeadamente quando diz: «O magnetismo parece estabelecer uma unidade de consciência entre várias pessoas, ainda que separadas por grandes distâncias, de sorte que o que uma sabe, sabem-no as outras logo».
Talvez o verbo "pairar" aplicado às ideias e aos espíritos não seja o mais exacto, pois o dinamismo intrínseco (aliás bem valorizado nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX) dos espíritos individuais fora de corpos físicos não os reduz a pairarem, notando-se assim uma certa visão do Além fruto de uma justaposição ou compromisso entre a dissolução no Não-Ser e um provavelmente relativo pairar dos espíritos por algum tempo, não na fase post mortem que é vivida frequentemente semi-consciência, mas como maneira de se estar ou sentir na leveza do corpo subtil. 
Não é de excluir contudo em  tal pairar  alguma sugestão bíblica do Génesis de descida do "espírito que pairava sobre as águas", embora precisamente nos tercetos finais do 2º soneto do Redenção, encontremos de novo o pairar, mas no sentido bem ascensional da tradição neo-platónica e mesmo da metempsicose oriental, como transcreveremos mais extensamente no fim: «Almas ... E pairando, já puro pensamento»...
Não poderemos pois dizer que tenha sido muito elevada a visão contemplativa luminosa alcançada ou gerada por Antero de Quental, embora seja a sua, sofrida e ansiosamente vivida e demandada, quem sabe se mesmo sacrificialmente enquanto consequência do envolvimento empático com todas as aspirações e demandas de uma época de embates e crises.
Seria melhor outra contemplação do mundo espiritual, mais luminosa, interactiva e unitiva, na qual estivesse mais clarividente e com o coração flamejante, em comunhão maior e mais dialogante seja com os espíritos seja com as ideias arquétipas primordiais, certamente desprendido das formas ilusórias.
Assim a sua grande alma, plena de compaixão e de solidariedade, de aspiração à liberdade e à justiça e, logo, ao amor, ao bem e à felicidade, apenas vê, adivinha, intui ou pressente nas coisas ou seres «que procuram cegamente/ Na sua noite e dolorosamente/, Outra luz, outro fim só pressentido...»
Anote-se que os sonetos seguintes desta edição definitiva ou completa dos Sonetos de 1886 são todos bem significativos no tormentoso desvendamento da busca de Antero, estando intitulados Lacrimae rerum e Redenção (que em manuscrito se chamara Panpsiquismo), dedicados a Tommasso Cannizzaro e a Celeste Batalha Reis, e sendo a Contemplação e a Redenção por ele valorizados em carta a Carolina Michaelis, de 25.X.1886, já que esta  notara "concordância" da sua poesia com o Hino ao Sol de S. Francisco de Assis e as epístolas de S. Paulo, replicando Antero que embora tendo lido o Hino e algo das epístolas de S. Paulo, «a concordância que V. Ex.ª. encontrou não pode ser senão fortuita, ou antes filha de um estado análogo daqueles grandes místicos. Justamente aqueles dois sonetos (Redenção), juntos com o outro (Contemplação) representam em forma de imagem e sentimentalmente uma das ideias fundamentais da compreensão das coisas, a que cheguei e em que fiquei, e que espero ainda desenvolver em prosa e com rigor de exposição filosófica». 
Será na carta a Jaime de Magalhães Lima, de 15-X-1886 que ele explicitará melhor a sua síntese do naturalismo e da natureza humana de modo a chegar ao mais «completo espiritualismo, a um panpsiquismo»  que ele intuíra reger dinamicamente tanto os seres como a Natureza, e que os faz encaminhar para o Bem e a Liberdade moral. 
Ressalve-se contudo ser o Lacrimae rerum  de uma desolação grande na busca de certezas e que só os dois sonetos da Redempção, esses sim (sobretudo o último), numa sentida imaginação, a partir da ânsia que já haveria nas coisas pelo espírito universal, e sendo por isso almas cativas suas irmãs, concluem numa ascensionalidade elevada ou libertadora, panpsíquica, e com o tal pairar: 
"Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim o vosso tormento."

Será na importante carta auto-biográfica a Wilhelm Storck, de 14-V-1887, que Antero de Quental explicitará melhor a sua filosofia, e como o espírito ou pensamento moderno «não pode sair do naturalismo, cada vez mais em estado de bancarrota, senão por esta porta do psicodinamismo ou panpsiquismo».
Possamos nós em comunhão com Antero de Quental e com os demais espíritos luminosos demandarmos, menos inconscientemente, alienada ou limitadamente, e mais amorosa, sábia e clarividentemente, a Luz, a Divindade, o Bem, a Realidade e, no caso prático, tentando volta e meia contemplarmos com algum tempo e concentradamente uma paisagem, um cristal, uma flor, uma pintura, uma ideia, o espírito, o anjo, o mestre, a Divindade...
   
Visão dos mundo espirituais pintada por Bô Yin Râ (1876-1943).

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