domingo, 24 de janeiro de 2016

Antero de Quental. "O Palácio da Ventura", soneto de um cavaleiro andante.

                         
Este soneto de Antero de Quental, aqui fotografado na 1ª edição e com uma pequena vinheta florida no canto, escolhida pelo próprio Antero com o seu impressor Costa Carregal,  é muito citado, ainda que por vezes lhe chamem Palácio da Aventura... 
Antero é nele um cavaleiro andante do Amor, vagabundo e deserdado que, após longa e trabalhosa vida ou viagem estelar, consegue chegar ao portal do futuro demandado ou do santuário desejado mas onde, quando as portas finalmente se abrem, só vê a escuridão e o silêncio...
Talvez possamos dizer, face a este dramático soneto-sonho-imaginação, do qual não se conhece nem manuscrito nem data mas que foi inserido no ciclo dos sonetos escritos entre 1862 e 1866, que está tingido por uma certa desilusão e tristeza sentimental e também pelo pessimismo filosófico-literário da época e a que Antero aderiu bastante cedo, pois andava na casa dos 20 e poucos, mostrando assim algumas sementes negativizantes que Antero em plena época de grande vitalidade e dinamismo acolheu e encerrava em si e que com o tempo se acentuarão obrigando-o aos trabalhos de Hércules da sua vida de revolucionário e poeta, filósofo e espiritualista.
                                         
Teria sido bom que o cavaleiro do Amor (ou do indomato amore, como lhe chama o seu notável estudioso Joaquim de Carvalho) Antero de Quental, chegado a tão alto e formoso lugar, se sentasse e meditasse pois muito provavelmente aprofundaria o som do silêncio, tão harmonizador, e talvez sentisse ou ouvisse mesmo a Voz interior, a Voz da Consciência e de certo modo da Divindade escondida em nós, que ele em tantas cartas viria a recomendar aos amigos escutarem. Talvez então o "Eu sou" que sentiria em si, e que afirmaria, já não fosse só o vagabundo e deserdado, mas o Eu sou que ecoa ou afirma o espírito individual próprio, luminoso.  
Como especulou no seu livro Atlântidas, um dos bons estudiosos anterianos, Sant'Anna Dionísio, o discípulo principal de Leonardo Coimbra, outro autor que admirou Antero consagrando-lhe um valioso livrinho O Pensamento Filosófico de Antero de Quental, teria faltado algo a Antero: «O valor inapreciável dos grandes educadores (...) consiste precisamente em revelar depressa, e a tempo, a missão mais alta e adequada a um aprendiz. Antero, infelizmente, não teve a sorte de encontrar um revelador dessa natureza. Por essa razão, andou tanto tempo perdido, entregue a uma espécie de cavalaria andante de Espírito». Entenda-se aqui Antero como cavaleiro "andante" ou seja errante, não decidido e determinado na sua rota ou demanda, algo que nos nossos dias de tanta informação e solicitação pode enfraquecer ou dispersar muito qualquer pessoa, esteja ela numa demanda mais profunda ou não.
Se tivesse entrado mais certeiramente no caminho filosófico e espiritual, provavelmente poderia na vida, e logo neste soneto, imaginar, ou mesmo ver e contemplar a Luz a que tanto almejava e que já no caminho  tanto inspira e anima os que a buscam e meditam. 
Eis algo que  deveremos ter mais presente em relação ao desenvolvimento das nossas potencialidades, seja em geral, seja no dia a dia, e com a necessária aspiração e resiliência forte nos momentos mais difíceis, para não sermos cavaleiros andantes perdidos mas verdadeiramente Cavaleiros de Amor, uma tradição aliás que na Idade Média e no Renascimento brilhou na consciência de vários seres e escritores, tais como entre nós Damião de Goes, D. João de Castro, Luís de Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, D. Luís de Ataíde, etc.
                                
                                  O PALÁCIO DA VENTURA

"Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!"

Terá Antero procurado, e trabalhado, em toda a sua vida o Palácio da Ventura, etimologicamente o que há-de vir, como idealista peregrino, tendo-o por fim encontrado vazio, vazio este que continua hoje aceite ou em moda pelas perspectivas budistas e niilistas,  porque  não conseguira chegar aos elevados níveis de conhecimento filosófico, gnóstico e de realização interior, não meramente intelectual mas espiritual, nomeadamente os do conhecimento do Espírito, da Verdade, do Amor e da Divindade, que sonhara ou idealizara sob a imagem simbólica do Palácio da Ventura? 
Ou este soneto e na sua idade tão jovem representa mais a cosmovisão pessimista e  niilista tão em voga na segunda metade do século XIX e que ele lia e trabalhava imaginativamente na altura, certamente com afinidades interiores, mas que para idade tão juvenil eram bastante perigosas e enfraquecedoras, tanto mais que duraram por muitos anos e sonetos? 
Na realidade, o que virá no futuro (ventura), a revelação da busca da Verdade, a visão de Deus ou do Absoluto, ou o estado Nirvânico, que serão analogias do Palácio da Ventura, desse estado final de busca de um cavaleiro andante, e que deveria ser de felicidade e comunhão ao que de melhor aspirara e intuíra,  e onde pensara entrar como lutador, amante e sábio, revelava-se bem mais inacessível, e as portas que por fora eram douradas por dentro, ou franqueadas, só revelam silêncio e trevas, deixando-o mergulhado em dor.
Este poema embora literário, imaginado, corresponde também de certo modo a uma realidade vivenciada por ele, seja nesse momento seja ao longo da vida: a de que a busca da luz, seja a interior espiritual visível no 3º olho, seja a da verdade, na harmonia da ciência e da filosofia, seja a da justiça, no socialismo nascente, seja a do Amor, à amada, ao todo ou à Divindade, era bem difícil e pouco resultara ainda no seu interior de jovem... 
Com o decorrer dos anos o seu desalento, niilismo, vazio, condicionados ou agravados pela doença psico-somática sentida a partir de 1874, perpassam ainda mais em tantos dos seus sonetos, embora ele contraponha bem o seu sentido ou vivenciado panpsiquismo, essa comunhão com a natureza ou o Todo (pan) onde sente ou intui a  aspiração de luz em todas as coisas, animais e seres, e  o seu estoicismo, que desde novo manifestou como força e valentia, ascese e recolhimento e que nos últimos anos de novo sente.
Talvez seja a este estoicismo que se refere Oliveira Martins, no prefácio dos Sonetos, a propósito deste soneto, mas que António Sérgio, um dos bons comentadores  dos Sonetos (mas menos afim espiritualmente de Antero que, por exemplo, Joaquim de Carvalho), na "sua edição" (já que alterou até a ordem de apresentação dos sonetos)   não compreende, escrevendo nessa edição de 1956, ao concluir o seu breve comentário ao Palácio da Ventura: «Não sabemos que seja a semente de abstracção que, segundo Oliveira Martins, se descobre neste soneto».
Ora Oliveira Martins, no seu prefácio extenso e valioso embora discutível em vários aspectos e que o próprio Antero considerava fraco, diz que Antero não soçobrou na ironia, sarcasmo, orgia, abatimento e atonia, como sucedera «a Heine e Espronceda, Nerval e Baudelaire», por não  «conseguirem estrangular os monstros que defendem os áditos do templo da Sabedoria», pois «não havia em nenhum desses homens a semente de abstracção que se descobre no Palácio da Ventura:  
 
Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão, - e nada mais!
 
Os românticos, mais ou menos satanistas ou satanizados,  ficavam-se por aqui. Achando apenas silêncio e escuridão onde tinham sonhado venturas, ou davam em bêbados como Espronceda, ou suicidavam-se como Nerval, ou faziam-se cínicos, à maneira de Baudelaire, cultivando com amor as Flores do Mal».
  Embora tal moda europeia e sobretudo de França tocasse ao de leve os jovens irónicos e irreverentes Eça de Queirós e Antero de Quental, tal não se prolongara ou entranhara realmente com Antero, que gera mesmo por fim, na década dourada de Vila do Conde (1880-1890), por uma capacidade de abstracção e estoicismo, alguns sonetos mais infundidos  pela luz, a comunhão invisível e a paz que conseguira fazer desabrochar, tanto pela sua natural bondade e amadurecimento interior, seja pelos seus esforços filosóficos, estes bem patentes nesse seu testamento de 1890 que é o ensaio sobre As Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, no qual a união da Ciência Natural e do Espiritualismo, e até de certo modo do Ocidente e do Oriente,  brilhava e que já algo arrojadamente previa, com alguma ingenuidade optimista, em Novembro de 1887 na carta autobiográfica a Wilhelm Storck: «O Ocidente produzirá, pois, por seu turno, o seu Budismo, a sua doutrina mística definitiva, mas com mais sólidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições que o Oriente».
Este desejo e aspiração de Antero de Quental a um Templo de Sabedoria ou Palácio da Ventura, ou seja, a um futuro mais justo e verdadeiro da Humanidade, é um ideal certamente valioso e desafiante perene, embora  no séc. XXI ainda muito distante do comum das pessoas  pois os vários níveis de realização idealista dos seres estão ainda pouco conseguidos e bastante oprimidos pelas condições de vida económicas e sociais. E mesmo dentro da espiritualidade abundam superficializações globalizantes, frequentemente demasiado mercantis, realçando-se, por exemplo, excessivamente as sessões de magnetismo ou reiki, as práticas de Yoga  malabarista e sem realização interior, as igrejas emocionais e de auto-sugestão, o ritualismo externo, a crença absurda que alguém fala com Deus ou Jesus, ou canaliza altas entidades, em vez de se aprofundar a harmonia de vida, a auto-consciência crescente e a ligação ao espírito, ao amor, ao bem, ao divino.
Todavia, em alguns seres, a conjunção da justiça social ou vida harmoniosa, da ciência e da religiosidade-espiritualidade está a acontecer, com respeito  dos níveis e metodologias próprias  de tais aproximações à realidade e verdade multidimensional, externa e interna, hoje bem vista por alguns cientistas e filósofos sob a designação do Campo unificado gravitacional de energia, informação, consciência que une e engloba todos os seres e que se manifesta nas comunhões da consciência, vistas como afloramentos do panpsiquismo, nomeadamente nas sincronias e espécies de telepatia, algo que já na época Antero de Quental conheceu e demandou, na altura denominando-se magnetismo, como ele tão bem referiu na carta ao seu admirador, e mais tarde general, Carlos Cirilo Machado, desenvolvida em dois outros artigos deste blogue. https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/04/antero-de-quental-o-magnetismo-e.html.  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2018/01/a-casa-do-coracao-de-antero-de-quental.html
 
                                            
O seu magistério (do latim magister, mestre), tendo ocorrido pela poesia juvenil e pela liderança estudantil conimbricense, e depois literária e socialista e, finalmente pelos Sonetos (nos quais destacou os cerca de vinte derradeiros como os mais fiéis às suas últimas concepções, embora vários deles estejam ainda tingidos de treva e frustração frustração face ao solucionar luminosamente a sua busca da Verdade e do Divino), concluindo com as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, bem apresentadas  na sua compreensão dinâmica da inter-relação da matéria e do espírito, a que devemos acrescentar a valiosa Correspondência com os amigos, não tudo isso foi suficiente para se sentir mais realizado na demanda do Graal venturoso. 
Assim, tal fraqueza associada à pouca realização do amor afectivo, ao isolamento social e às dificuldades digestivas e nervosas (desde que em «1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente»), a sua desilusão e desprendimento da vida foram crescendo até que, por inesperadas condições adversas à sua afectividade (o afinal não poder nos Açores estar junto das duas filhas de Germano Meireles que educara), num momento  reflectido ou premeditado nesses últimos dias (quantas vezes o pensou?) mas tão condicionado pelo exterior, pôs termo à vida física corporal, que não a psico-espiritual, na qual certamente continuará a ser nos mundos subtis um peregrino da Verdade e, sobretudo, da Divindade a que infelizmente conseguiu abrir-se pouco enquanto na Terra...
Que a morte é o começo ou início de uma outra vida já afirmara ele, no começo de um dos seus sonetos, ao repetir o mote grego, «Morrer é ser iniciado», no qual se indica também que já em plena vida temos que saber aprender a morrer (o adormecer de noite já sendo algo disso) para o nosso ego e seus desejos e vaidades, o que por vezes é doloroso ou difícil, para se renascer depois, mais iniciados na identificação e realização como seres espirituais, criativos e lutadores. Quanto ao que se passará também forçosamente e para sempre no momento da morte, seja de fim de crescimentos seja de abertura de novas capacidades, só após a vivência dessa grande iniciadora e por Antero de Quental talvez demasiado cultivada ou evocada na sua poesia e alma, se poderá saber com certeza.
Anote-se por fim um outro tão importante soneto, o Mors-Amor, no qual Antero se afirma como cavaleiro do Amor e vencedor da morte e que de certo modo complementa, responde e esclarece este Palácio da Ventura. Nesta mesma linha está o Solemnia Verba, do qual transcrevemos os dois tercetos finais: 
  
 «Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.» 
 
  Pintura de Bô Yin Râ, dos mundos espirituais...
 
Estará Antero de Quental a ter acesso a Santuários ou Palácios de Ventura, sejam eles de substância astral ou já espiritual, entrando consciente e voluntário em tais palácios, santuários ou planos mais elevados, quer exteriormente em corpo espiritual quer apenas em visão interior da sua alma?  
Continuará a ser um peregrino do conhecimento, um dialogante com discípulos e mestres, um cavaleiro andante,  uma alma inspiradora dos que o lêem ou são seus amigos e fiéis do Amor?
                                    
                              Pintura de Bô Yin Râ, dos mundos espirituais
Já  terá  encontrado a sua Beatrice, amada e musa das suas poesias juvenis,   quem sabe a sua mítica (desde o Fedro, de Platão) ou misteriosa alma-gémea?
Estará assim já a sua consciência mais plena na multi-dimensionalidade de Espírito e participando até na evolução da Humanidade e de Portugal?
Saudações venturosas luminosas e amorosas a Antero de Quental!
Saibamos nós aperfeiçoar-nos e religar-nos mais, de modo a sermos cavaleiros e cavaleiras do Amor e podermos ajudar a Humanidade a criar  momentos e estados de harmonia, de paz e de luz venturosa, deste presente tão conturbado em que vivemos, para um futuro que estamos a gerar, e que está sempre a transformar-se, dependendo muito do nosso empenho e intenção, sabedoria e amor!
*** 
Realizei mais uma hermenêutica sobre a demanda, a 6.II.23:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2023/02/o-palacio-da-ventura-de-antero-de.html

2 comentários:

Maria Emilia Guedes disse...

Antero, grande Antero, quão semelhante, acho teu fado ao meu quando os cotejo...

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Sim, Mila, e em especial por estares a gerar um local da Ordem dos Mateiros, que era um dos seus sonhos...