Apresentação do livro Modo de Orar a Deus, de Erasmo, traduzido do latim por Álvaro Mendes e Pedro Teixeira da Mota, e contextualizado e comentado por mim. Foi editado no Porto, pelas Publicações Maitreya, em 2008 e entra agora na Internet para melhor divulgação de algumas partes, aqui a inicial, após as dedicatórias...
«Eis-nos
com Desiderius Erasmus Roterodamus, Desidério Erasmo de
Roterdão, o principal líder intelectual da Europa no século XVI, o
crítico das instituições e costumes, o renovador da educação e
do ensino, o pioneiro do estudo científico dos textos sagrados e da
complementaridade das letras humanas e das divinas, o unificador dos
campos opostos religiosos, o apologista da tolerância, do pacifismo
e da concórdia, o ressuscitador da filosofia de Cristo viva e da
piedade íntima, sábia e livre. «Homem por si» há quinhentos anos
e ainda hoje a inflamar corações acima da ignorância e das
facções, e a apurar almas na realização da verdade, do espírito
e da Divindade.
Uma
vida de viagens, estudos, traduções, comentários e escritos,
sobretudo textos educativos, filosóficos e religiosos, mas também
muitas lutas, incompreensões, polémicas e uma imensa
correspondência, de grande impacto na vida intelectual e religiosa
do século XVI, mas correndo íntima e subterraneamente pelos séculos
a dentro como fermento de renovação anti-supersticiosa,
anti-facciosa, anti-totalitária, libertadora.
Traduzir,
apresentar, anotar e ler Erasmo no séc. XXI, num dos seus tratados
espirituais, é uma honra e um privilégio, pois vamos aprofundar e
amadurecer com ele alguns dos mistérios da vida, compartilhar a sua
lúcida compreensão dos modos de orar, pela quais nos ligamos mais a
Deus e fazemos descer as suas bênçãos.
Quis
Erasmo chamar os seres humanos às fontes antigas da Sabedoria, tanto
a tradição sapiencial greco-romana como sobretudo a derivada de
Jesus e do seu ensinamento, a philosophia christi, a
filosofia de Cristo, ou seja, o amor da sabedoria em Jesus Cristo,
presente nos Evangelhos, e dentro dos seus intérpretes, em especial
S. Paulo, Orígenes (190-253), Ambrósio (339-397), Jerónimo
(347-419) e Agostinho (354-430), assim citados no seu primeiro e
famoso Manual do cavaleiro cristão, o Enchiridion,
como aqueles cuja «interpretação é mais acomodada aos sagrados
mistérios», e que em 1520, na Ratio verae theologiae, o
Método da verdadeira teologia, serão reordenados, por ordem
descendente de valor: Orígenes, Basílio, Nazianzo, Atanásio,
Cirilo, Crisóstomo, Jerónimo, Ambrósio, Hilário e Agostinho,
cujas obras publicou e comentou, numa tarefa ciclópica de génio e
de studium, hoje em dia quase impossível, então
caracterizadora de alguns dos mestres do Renascimento como Pico della
Mirandola, Leon Battista Alberti, Marsilio Ficino, Leonardo da Vinci,
Luca Pacioli ou Michelangelo Buonarroti.
Mas
a esse estudo das letras humanas e divinas, desde Orfeu e Homero,
Platão e Horácio aos pais ou fundadores ortodoxos, como chamava aos
místicos e gnósticos padres da Igreja antiga, as fontes mais
próximas de Jesus e do Evangelho, acrescentava Erasmo tanto a
importância de uma vida racional, ética e dialogante, como também
(já livre do cerimonialismo desnecessário, da hipocrisia, corrupção
ou superstição) a piedade douta, ou seja, a boa (fundamentada,
esclarecida) e profunda relação interior com Deus e exterior com os
humanos.
O
que propõe então é o amar ou adorar a Deus em espírito e em
verdade, reflectindo-se num ânimo justo, bom e piedoso e na vida
como oração luminosa contínua, concretizada no serviço e
clarificação (a glória) do bem comum, do próximo, da verdade e de
Deus. Certamente, com esforço ou plena atenção: o studium...
Para
Erasmo a verdadeira teologia ensinada por Cristo é assim viver pura,
simples e virtuosamente, pela força interior divina que nos chama a
aperfeiçoar-nos na fé, na esperança e na caridade, pois o Espírito
habita no coração das pessoas piedosas.
É
pela disposição anímica de seguir correctamente o Cristo («que é
caridade, simplicidade, paciência, pureza, ou seja, tudo o que ele
ensinou»), que o crente em Deus e nos seus mestres e santos avança
na vida e no aperfeiçoamento, para se tornar também um Cristo, que
significa um ungido: «todos os que renasceram em Cristo, são
Cristos» (Da Amável concórdia na Igreja).
Esta realização salvífica não
está garantida pelos doutoramentos teológicos, cerimónias,
peregrinações, votos religiosos ou vida monástica, de que aliás
em muitos aspectos Erasmo é crítico, como em alguns dos seus
famosos Colóquios que o tornaram tanto admirado por muitos,
como detestado pelos «bárbaros ignorantes», que recusavam o estudo
das línguas, culturas e tradições antigas, ou seja, a
universalidade do conhecimento, presente na retórica, na poesia, nas
ciências, na exegese livre da religião, e cujo cultivo e divulgação
só faria bem à humanidade.
Uma
das razões do grande sucesso na época da filosofia de Cristo,
designação antiga mas desenvolvida por Erasmo a partir da sua
meditação e do seu trabalho para uma versão mais fidedigna do Novo
Testamento, e depois desenvolvida nos comentários livres aos
Evangelhos, as Paráfrases, está na intuição e vivência em
si de Cristo (palavra grega que traduz o Messias hebraico, o Ungido
ou ligado a Deus, e que é também, sobretudo com S. João, Logos,
ou seja Palavra, Verbo, Sabedoria, Razão, ou discurso certo), em
parte nascida da realização da presença divina (logóica,
diríamos) nos textos sagrados, onde ela respira e vive mais
plenamente.
Tal
permite a Erasmo tanto recomendar incessantemente a leitura sagrada,
ou a oração a partir de palavras dos Evangelhos, como sobretudo
tornar vivos os ensinamentos e parábolas de Jesus Cristo, primeiro
ao saber estabelecê-los filologicamente mais correctos na versão
que fez, magistralmente anotada, do Novo Testamento e, depois,
nas Paráfrases, ao passar constantemente do sentido literal
para o espiritual, do passado para o presente e o eterno, trazendo ao
de cima a riqueza de sentidos transformadores de muitas passagens que
pareceriam destituídas de relação eficaz e luminosa com a nossa
mente e vida de hoje.
Um
tão arguto observador, que tanto viajara e conhecera de pessoas e
sociedades, com as suas limitações animais mas também aspirações
e exigências de dignidade e espiritualidade, estava preparado tanto
para a ironia esperançosa como para a compaixão piedosa e por isso
as suas obras ora castigam rindo, ora inspiram desejos de
fraternidade e caridade, impulsionando consciencializações ou mesmo
voos espirituais.
Para
Erasmo a vida é uma luta pela ligação divina, sob o perigo
constante do enfraquecimento ou mesmo da morte da alma, quando a
dignidade, a racionalidade ou domínio das atracções e repulsões,
ou mesmo o desejo de solidariedade moral e de vida espiritual,
falham. Com efeito, dirá no Enchiridion, o Manual do
cavaleiro cristão: «quando os olhos do coração estão
obscurecidos para que não vejas a luz evidentíssima que é a
verdade, quando não captas com teus ouvidos interiores a Voz divina,
quando careces completamente do sentido do absoluto, pensas que a tua
alma estará viva? (...) Se o teu próximo é mal tratado, porque é
que a tua alma não sente nada?»
Duas
são as armas ou as asas principais a utilizar, o conhecimento e a
oração. Conhecimento das letras humanas que naturalmente apoiam as
divinas, ou ainda, conhecimento da sabedoria perene, da tradição
cultural e espiritual de todos os povos e tempos; gnose de si próprio
de quem não é só corpo animal e genético, nem subjectiva e
complexa personalidade ou alma, mas na essência espírito,
dotado de autoconsciência e lucidez, livre-arbítrio e amor, capaz
portanto de conhecer e amar a verdade, a unidade, a Divindade.
Quanto
à asa da oração, a procura do florescimento unificador do amor, o
diálogo e a coincidência da mente e da vontade com Deus Pai e com o
todo, deixemos Erasmo iniciar-nos com este pequeno tratado, o Modus
Orandi Deum, publicado pela primeira vez pelo sábio impressor
Johann Froben, em Outubro de 1524, em Basileia, com sucesso pois
surgem doze edições até ao fim do ano da graça de 1525 graças a
laboriosos impressores de Estraburgo, Colónia, Nuremberga, Basileia,
Cracóvia, Veneza, Antuérpia, se bem que a sexta edição, que é
uma versão bastante acrescentada e corrigida por Erasmo, impressa de
novo por Froben, em Março de 1525, nunca será tomada em conta pelos
editores posteriores, algo misteriosamente...
Na
península ibérica surgirá, embora só em 1546, uma impressão
espanhola na tipografia sevilhana de Andrés de Burgos, intitulada
Tratado de la oracion y forma que todo christiano deve seguir,
pois de facto a península estava muito desperta para a
experiência da oração tanto vocal como interior e mística,
nomeadamente pelas influências mais remotas do sufismo (pela confraria shadhili)
e mais próximas dos franciscanos (tal como Francisco de Ossuna e o
seu Abecedario), dos recolhidos e dos alumbrados (ou
dejados, abandonados ao amor de Deus) e do movimento de retorno
às fontes bíblicas, impulsionado pela acção do cardeal Francisco
Jiménes de Cisneros (1436-1517), confessor da rainha Isabel a
Católica, arcebispo de Toledo, impulsionador de uma religiosidade
mais esclarecida e espiritual (embora pouco aberta à islâmica, da
qual fez queimar muitos livros), reformador das
ordens religiosas, patrocinador de vários livros de
contemplação, fundador (1ª pedra 1498, 1ª aula 1508) da
Universidade de Alcalá de Henares (Complutum), e director da
pioneira tradução da Bíblia, a Poliglota Complutense, em
oito grandes volumes, ali realizada entre 1514 e 1517, embora só
impressa em 1520, já depois do Novum Instrumentum, de Erasmo,
vir à luz na tipografia “rival” de Froben...
Para
além disso, preparando-se o príncipe Carlos para se tornar o
imperador do Sacro Império Romano (de origem alemã e unindo cerca
de 300 estados da França à Polónia, governados sobretudo por sete
príncipes eleitores), rei de Castela (pela morte da rainha Isabel I,
e da sua filha Joana, a Louca, casada com seu pai o Filipe, o Belo,
de Borgonha) e de Aragão (pela morte de Fernando II de Aragão, o
marido de Isabel, que não teve filhos do seu segundo casamento), e
sendo Erasmus um dos seus conselheiros,
havia mais receptividade aos seus livros, pelo que logo em 1516,
ainda ao tempo do cardeal Cisneros (saía em Sevilha a primeira
tradução, por Diego de Alcocer, de uma obra de Erasmo, o Tratado
ó sermon del Niño Jesús y en loor del estado de la Niñez. E,
em 1517, o cardeal Cisneros, que exerceu então o cargo de regente de
Espanha, até à chegada do príncipe Carlos em Setembro, convidaria
por mais de uma vez a vir até Espanha Erasmo que, embora não vindo,
viu serem editadas ou traduzidas muitas das suas obras (vinte e três
edições entre 1516 e 1527).
A
fortuna pública deste Modo de Orar a Deus, ainda que grande
pelo número das sucessivas reimpressões, encontrou contudo uma má
madrasta pelo caminho, a oposição da Universidade parisiense, a
Sorbonne, naquela época dominada pelos teólogos, numa «caverna de
bandidos», reduto de alguns fanáticos da escolástica, «formados
no ódio às boas letras e à tranquilidade pública», inimigos
constantes da livre investigação e divulgação do ensinamento de
Cristo e, portanto, de Erasmo, sendo os principais nos «furores»,
Noël Béda, o chefe da censura durante quinze anos, e Pierre
Cousturier (ou Sutor), retratados ironicamente por Erasmo nos
colóquios Sínodo dos gramáticos e A Refeição de peixe.
Como
já tinham encontrado mais de cem proposições condenáveis no seu
Novo Testamento anotado e nas Paráfrases aos Evangelhos
(nomeadamente, o querer traduzir as santas escrituras em todas as
línguas...), também teria de ser atalhada ou dificultada a nova
incursão de Erasmo na messe do Senhor, baseada num ardente sentido
de justiça e de piedade e num rigor da exegese filológica e
conceptual dos textos sagrados, ensinando a todos os cristãos orarem
de modo sábio, consciente e livre, e apelando, justificadamente, a
tornarem-se mesmo profetas e sacerdotes pelo ungimento do Espírito,
e portanto os verdadeiros adoradores de Deus em espírito e em
verdade.
Em
1526 e 1527 surgem as primeiras censuras
parisienses, às quais Erasmo responde quer justificando-se quer
demonstrando a ignorância e o ridículo de Béda e Sutor. Em
Valladolid, em 1527, reúne-se mesmo uma assembleia de teólogos
convocados pelo benigno Inquisidor Geral Alonso Manriques para
debaterem essas proposições ou doutrinas duvidosas, encontradas,
segundo alguns frades e teólogos, tanto no Novo Testamento
como no Modo de Orar a Deus, encontro que descreveremos mais à
frente. Regressado a Paris, um desses opositores de Erasmo, o teólogo
“sorbónico” Diogo de Gouveia (1471-1557, escreverá algo arrogantemente ao
rei D. João III em Setembro de 1527, dizendo que se «deram a
visitar os outros livros a saber anotações, enchiridion, de modo
orandi» e que se preparam para o condenar e que não sairá
vencedor: «será melhor que não escrevera em outra coisa senão em
histórias e crónicas de príncipes». Pobre Diogo Gouveia, um ultra-ortodoxo hoje engolido pela história, a querer subalternizar Erasmo...
Em
França, liberto já da terra Erasmo, nos primeiros catálogos de livros
proibidos pela Sorbonne, de 1543, 1544 e 1551, estava incluído o
piedoso Modus orandi Deum. Mas em 1547, no primeiro rol
português dos livros defesos ou proibidos, reproduzindo o que a
Universidade de Lovaina acabara de fazer (no ano em que, ao
contrário, na Inglaterra as Paráfrases aos Evangelhos se
tornavam obrigatórias, com a Bíblia, para todos os
sacerdotes e paróquias), só eram indicados o Elogio da Loucura,
o Modo de confessar e os Colóquios, tendo estes até
sido publicados, em 1546, com as aprovações de vários professores
e teólogos da universidade conimbricense, numa edição escolar (de
que se conhecem hoje só dois exemplares) da autoria do erasmiano
Juan Fernandez, professor de retórica na mesma Universidade, que a
realizara com suma mestria ao conciliar cortes de censura,
explicações amenizadoras e a tradução integral de vários
colóquios, com as ideias e críticas de Erasmo, então proibido como
autor perigoso e danado.
Todavia, em 1557, no segundo rol,
entre as treze obras de Erasmo visadas (de novo baseado no de Lovaina
mas com acrescentos portugueses), já aparecia o Modus orandi
Deum, tanto em latim, como em vulgar, neste caso a impressão
espanhola, que em 1546, na tipografia sevilhana de Andrés de Burgos,
saíra à luz intitulada Tratado de la oracion y forma que todo
christiano deve seguir, e que, dentro da ampla permeabilidade do
bilinguismo da época, terá circulado certamente nos meios piedosos
e cultos da sociedade portuguesa, justificando-se assim a sua
drástica quão absurda proibição portuguesa.
Passados
quinhentos anos, certamente não há razões para proibições, antes
pelo contrário, o valor religioso e cristão, para além de
pedagógico, científico e espiritual de Erasmo, está mais do que
reconhecido e, esta obra, na sua piedade (no sentido até
greco-latino, onde significava o estar em boa relação com o Divino)
e simplicidade (mas também profundidade para quem a começar a
sondar e viver), em verdade entusiasma a alma e estimula à oração
contínua, ao melhor conhecimento das letras divinas, bem como à
fraternidade, ao amor, ao aprofundamento da oração dialogante com a Divindade, através mesmo dos santos, dos mestres e dos Anjos e Arcanjos, capaz de induzir ou intensificar a
consciencialização do espírito, a quietude contemplativa, a
unificação amorosa e íntima com a Divindade.
Que
esta obra seja acolhido por corações jubilosos por poderem beber da fonte Divina, a que estas páginas tanto sabem, conduzem ou religam.
E
se sentirmos alguma vez a expressão intercessora «Magister
Erasme, ora pro nobis» ou «Magister Erasme, ora in nobis», «Mestre Erasmo, ora
por nós», Mestre Erasmo, ora connosco», tal será a expressão
do reconhecimento de um dos seres humanos que mais conheceu, se
aproximou e transmitiu o ensinamento e o espírito de Jesus, o
Cristo, ou ainda da ética e da Sabedoria perene, Divina.
2 comentários:
Grata!muito grata. Magnífico...
Muitas graças, também, Ana, pela sua apreciação. Tentarei rever e transcrever mais algumas partes. O Erasmo bem merece...
Enviar um comentário