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Antero de Quental, espírito imortal, em luz azulada... |
Se
é no seu rico epistolário que encontramos os ensinamentos
espirituais e éticos, filosóficos e morais, políticos e revolucionários que Antero mais quis transmitir aos seus amigos e leitores, certamente que na sua poesia e prosa os encontramos
também, e desse todo desabrocham os sinais e indicações que nos ajudam a sentir as
dúvidas e as lutas em que esteve envolvido, as realizações e as
intuições conseguidas e a aperfeiçoarmos a nossa demanda de unificação e plenitude anímico-espiritual.
Nos
seus Sonetos, a obra mais completada ou aperfeiçoada, consultando o exemplar onde
uma arejada, elegante e espraiada letra reza «ao seu querido amigo
António de Azevedo Castello Branco off. o autor», encontramos
constantemente os sinais dessas batalhas e demandas de Verdade que
caracterizam Antero, desde os que mostram a sua ânsia e esperança
de amor, beleza e sensibilidade, até aos que partilham o seu enleio num certo desânimo, vazio e morte...
Relembremos a sua grande desilusão nos últimos meses de vida, aquando do Ultimato e da Liga Patriótica do Norte, com o país, os partidos e o governo que abafaram a reacção popular, deixando escrito, em carta de 22-VI-1890: "O que se passou durante este Inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos candidatos do Governo, Governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião estava lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas!" males que se foram repetindo ao longo dos tempos e até aos nossos dias...
Mas onde, em que aspectos,
é que Antero de Quental poderia ter ido mais longe, seja em si ou por si, seja em acção grupal? Onde
é que Antero é mais hoje um mestre a ser pensado, ou seja, alguém com
ensinamentos dignos de serem lidos e meditados, aprofundados e vividos? Que
sugestões e impulsões nos pode dar ou suscitar? Em
que aspectos mais importantes se insere na Tradição Espiritual
Portuguesa?
Tais questões são bem vastas e tentaremos apenas apresentar duas ou três linhas de força bem patentes.
É significativo ser natural duma ilha dos Açores e da família do Padre Bartolomeu de Quental, um escritor e moralista de grande fama, com alguma atracção pela mística e que
andou a educar com santas histórias e exempla centenas e milhares de
pessoas, sobretudo nas reedições dos seus best-sellers, terminando, contudo ou assim, os últimos anos mentalmente como
uma criança. E era neto do poeta e ousado pensador André da Ponte do Quental e Câmara, o «amável amigo» de Bocage que lhe dedicou uma ode e uma quadra que Antero leu e da qual certos ensinamentos colheu e que de algum modo parafraseou numa das suas poesia iniciais...
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Antero jovem, querendo vencer os atavismos nacionais |
Será
tendo em conta essa rica vis hereditária que Antero lançará e se embrenhará corajosamente pelas vias românticas e amorosas e depois revolucionárias e socialistas seguindo-se as espectrais e
fabulosas do negativo, do inconsciente, do não-ser e do Budismo, por fim transformados tanto num Helenismo coroado pelo Budismo como num panpsiquismo eo «mais completo espiritualismo» de ordem sobretudo ética e moral e de coincidência entre o saber e o ser, como atesta a sua última obra Tendências Gerais do Pensamento Filosófico na segunda metade do séc. XIX.
Cortou contudo voluntariamente os seus sofrimentos psicosomáticos e os conflitos da desadaptação a
uma sociedade dominada por uma predominância egoísta e
insensível, ao extinguir voluntariamente em 11 de Setembro de 1891, tal como um samurai, o seu corpo-alma bastante depauperado, envelhecido e desiludido, embora super-sensível, aliás esta
última faceta intimamente ligada com a sua alma-espírito...
Mas
como estaria ela no momento da morte, e para onde foi projectada e
com que consciência, será sempre um mistério...
Passados
estes anos poderemos pensar e intuir onde e como estará este
filósofo idealista da Justiça e místico pesquisador da Verdade e que era também quase um santo, como foi chamado por dois ou três dos seus seres mais íntimos, pelo seu amor e o altruísmo?
Certamente, mas apenas em experiências interiores que dificilmente se podem comunicar ou publicitar e talvez no estoicismo e sobriedade de vida...
Que duas ou três linhas de força deveremos então realçar dele e dos seus ensinamentos e vida, que
sejam utéis à nossa evolução e à da Humanidade, à nossa passagem pelo plano
terrestre e continuidade no além?
Entre os muitos aspectos e pensamentos, e é um trabalho que ainda muitos frutos têm a dar, pois muitos dos que o comentaram fizeram-no debaixo de perspectivas materialistas, meramente psicológicas e católicas, sem terem em conta a sua qualidade de ser espiritual, relembraria primeiro um
aspecto valioso e que para a maior parte das pessoas e até anterianos é
de somenos importância, sendo quase desconhecido: a Ordem dos
Mateiros, a ordem de contemplativos vivendo numa mata ou bosques, a
sua ordem espiritual ideal, o seu “eremitério de S. Columbano”, que Eça de Queirós refere (desenvolvidamente e donde retiramos por um extracto) no seu contributo para o In-Memoriam de Antero, «Antero pensava que uma forte reacção espiritualista e afectiva se seguiria à materialidade deste duro século utilitário e mercenário; - e, rindo, relembrou a sua antiga ideia, a fundação da Ordem dos Mateiros. Estes monges do idealismo, teriam por missão reconstituir , em toda a sua beleza e dignidades primitivas, a vida rural, a mais elevada, porque imolando toda a civilização sumptuária, e portanto todos os apetites, e paixões e necessidades falsas que dela derivam, e reclamando a cada bocado de terra o seu bocado de pão, conquista socialmente a verdadeira liberdade, e através dela se prepara a atingir espiritualmente a verdadeira perfeição»...
Por Antero, da Ordem dos Mateiros, só ficou uma referência expressa, numa carta de Vila de Conde, não datada, mas provavelmente após 1886, a Joaquim Gonçalves:«Mas os versos que eu quisera fazer só se farão daqui a duzentos ou trezentos anos, nalgum convento da Ordem dos Mateiros, que alguém mais feliz que eu conseguirá fundar».
Um
sonho de forças anímicas portuguesas bem agrupadas e que passou depois a Fernando
Pessoa mas não foi realizado (ficando várias fragmentos com tais projectos), e que perpassou ainda nos diálogos do genial Leonardo Coimbra, nos quais participaram entre outros Sant'Anna Dionísio, Álvaro Ribeiro e Agostinho da
Silva, este por fim dando-lhe de novo forte impulso mas que não foi consolidado, alargado e cumprido como se antevia, devido a intervenções exteriores, nomeadamente do então ministro da Educação Roberto Carneiro, que desviou e acabou com o seu Fundo do Bem Comum del Rei Dom Dinis que se destinava exactamente a apoiar experiências comunitárias ou conventos do Bem Comum.
Hoje em dia este psicomorfismo de um grupo ou ordem espiritual encontra-se
visível em certos aspectos em algumas comunidades, associações, tertúlias e ordens, ora culturais ora esotéricas, muitas vezes porém demasiado superficiais ou comerciais, e raramente implementando bem a harmonia entre a Terra e o Céu, o discurso e a Verdade, a multiplicidade e a Unidade, a partir de uma realização espiritual interior e de uma vida harmoniosa, justa e corajosa.
Certamente que tais ordens ou pequenos cosmos mais harmoniosos houve-os e os há também dentro das religiões, em especial na Índia
e no Extremo Oriente, com os seus ashrams
e viharas, mosteiros e jinjas, Oriente este do qual aliás o próprio Antero não andou distante não só pelo seu grande interesse pelos Vedas, a literatura Persa e o Budismo, mas também porque admitira até numa carta de 1886:
“Para
onde irei? Ignoro; talvez daqui até lá, indague dum emprego para a
Índia, para Goa ou Macau, países onde a vida moderna não deve
ostentar-se em muito excessivo luxo de seu vermelho sangue burguês e
gordura de banalidade, como acontece nesta Europa soesmente
comodista, esta Cartago sem Moloch - mas com muitos mercenários”,
descrição talvez ainda hoje mais verdadeira...
O
dito “o meu reino não é deste mundo”, que ele glossava e viveu de certo modo nas suas peregrinações e experiências, é cada vez mais real, pois a Idade de Ouro ou V
Império sonhado por alguns é claramente
uma utopia impossível exteriormente, apenas contando e surgindo como realização individual interior, partilhada, vivida ou sentida por uns
poucos ou pequenos grupos, dentro da linha expressa aliás por Jesus quando afirmou «onde dois ou três se reunirem em meu nome, eu (o Espírito) estarei
no meio deles», certamente podendo eles sentirem então mais naturalmente o mundo espiritual e divino que a todos perpassa...
Ordem
dos Mateiros da qual se falará pouco, umas linhas aqui e acolá, nas
referências leves de alguns comentadores posteriores, como Faria e Maia, Jaime de Magalhães Lima e Fidelino de Figueiredo (neste mais desenvolvidamente, sugerindo três virtudes nos que militassem na Ordem dos Mateiros: "firmeza, paciência e esquecimento, colunas do convívio pacífico dos homens"), mas que continua a ser uma
seta iluminada, um arquétipo de sábios em estudo e diálogo, como ele conseguira por vezes
nas conversas peripatéticas na Natureza ou junto à orla do Oceano, com alguns dos seus amigos, e nas
cartas em que dava conta dos seus esforços na descoberta do
paradigma filosófico espiritual a que tanto aspirava mas para o qual
já poucas forças realizadoras sentia para descrevê-lo sistematizadamente.
E em segundo lugar ou linha de força, a realização interior espiritual, concomitante à descoberta da doutrina
mística definitiva, dentro da realidade e com sólidos alicerces,
numa síntese que conciliaria o naturalismo científico e a metafísica,
afirmando por exemplo que “se pode pela aprofundação da natureza
humana (e por analogia invencível, de toda a natureza) chegar ao
mais completo espiritualismo, a um panpsiquismo que se acomoda
perfeitamente, ou antes harmoniza necessariamente, com o
materialismo, e ainda o materialismo das ciências naturais... chegar
teoricamente até aquela profundidade de compreensão do “Homem
interior,” como eles diziam, a que os místicos chegaram”.
"Homem
interior", que já vinha dos Persas e Gregos mas era aqui referência sobretudo dos místicos
do norte da Europa medievais e que Antero lia e apreciava, nomeadamente essa obrazinha intitulada Theologia Germanica que ele possuía na cabeceira e lia.
Ora
há muitos sinais que Antero de Quental intuiu e sentiu esse Homem Interior, essa voz de
consciência, essa iluminação, e que a pressentiu e a realizou
mesmo de quando em quando.
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Tentando ver e sentir para além do bem e do mal... |
Oiçamo-lo
então em algumas cartas falando da realização espiritual: a Ferreira Deusdado, de 7-IX-1888, escrita em Vila do Conde, é bem
valiosa, pois após realçar "a aliança do Kantismo com o
espiritualismo", afirma: " O espírito humano não é
um fragmento truncado e incompreensível ou uma coisa à parte
isolada no meio do Universo, mas sim um elemento fundamental dele e a
mais alta potência e expressão da sua essência (...)
A metafísica e o espiritualismo só poderão ser
destruídos quando ao mesmo tempo forem abolidos a razão e a consciência
humana. Em conclusão, dou-lhe parabéns pela lúcida direcção do seu
pensamento, tal qual o seu livro, pela prudência e segurança do seu
método, e, finalmente, pela simplicidade desprentiosa da sua exposição.
E termino agradecendo a oferta e o proveito que me proporcionou com
aquela leitura, e a consolação que senti ao ver que no meio do
deplorável amesquinhamento, a que assistimos "há ainda perfumes em
Galaad"»
Oiçamos ainda o que ele nos diz numa carta enviada ao poeta e peregrino, natural da Índia, Fernando Leal, seu grande amigo:
"É
bom, é até necessário passar pelo Pessimismo, mas não se deve
ficar nele por muito tempo. O Pessimismo não é um ponto de chegada,
mas um caminho. É a síntese das negações na esfera da
natureza, a luz implacável caída sobre o acervo de ilusões das
coisas naturais. Mas, para além da natureza, ou, se quiser,
escondido, envolvido no mais íntimo dela, está o mundo moral, que é
o verdadeiro mundo, ao qual a harmonia, a liberdade e o optimismo são
tão inerentes como ao outro a luta cega, a fatalidade e o
pessimismo. Afinal, não vivemos verdadeiramente senão na proporção
do que partilhamos desse mundo íntimo e perfeito, ou, mais
exactamente, da parte dele que
desentranhamos de nós mesmos e fixamos nos nossos pensamentos, nos
nossos sentimentos e nos nossos actos. Já vê que a existência tem
um fim, uma razão de ser, e o Fernando, embora diga sinceramente o
contrário, no fundo não o crê. Lá no fundo do seu coração há
uma voz humilde, mas que nada faz calar, a protestar, a dizer-lhe que
há alguma
coisa porque se
existe e porque vale a pena existir. Escute essa voz: provoque-a,
familiarize-se com ela,e verá como cada vez mais se lhe torna
perceptível, cada vez fala mais alto, ao ponto de não a ouvir senão
a ela e de o rumor do mundo, por ela abafado, não lhe chegar já
senão como um zumbido, um murmúrio, de que até se duvida se terá
verdadeira realidade. Essa, meu amigo, é a verdadeira revelação, é
o Evangelho
eterno, porque é a
expressão da essência pura e última do homem, e até de todas as
coisas, mas só no homem tornada consciente e dotada de voz. Ouça
essa voz e não se entristeça.
E,
para terminar imitando o delenda Carthago de Catão,
repetir-lhe-ei: saia de Lisboa, e, se puder, case."
Anote-se,
para finalizar, que Fernando Leal seguiu o conselho desta
carta de Antero, enviada da tebaida de Vila de Conde em 1886, e regressou a
Goa, casando-se com Maria Guiomar de Noronha, irmã da minha bisavó
e que quase o adorava, embora a diferença de idades fosse de trinta
anos. E que a expressão Evangelho Eterno remete para o conhecimento de Joaquim de Fiora, que lançou esta expressão e visão dinâmica da história e da possibilidade de constantes novas páginas de "anúncios de boas novas", Evangelho), inspiradas pelo Espírito santo, ou seja, a presença divina e criativa no ser humano.
Terminemos com a carta de 26-VIII-1899 a António Molarinho (1860-1890), e que se tornou prefácio do seu livro póstumo (1921) Lira Romântica, organizado por Adelaide Molarinho e Aristides Mendes (e que já desenvolvemos num artigo do blog), contém mais achegas para a compreensão do alto nível de espiritualidade, suprapessoal e ética, a que Antero de Quental intuía: «Creio que a virtude pode mais e é mais que a arte. E dura mais também: dura eternamente. As obras do bem, ligadas indissoluvelmente à substância do Universo, absorvidas, desde o momento da sua produção, para nunca mais saírem dele, vinculadas, pela cadeia duma casualidade superior, a todas as suas evoluções através dos tempos, dos espaços, dos mundos, vão aumentar o tesouro da energia espiritual das coisas fecundá-las nos seus mais íntimos recessos e, sempre presentes, sempre activas, eternizam, nessa sua perene influência, a alma donde uma vez saíram. O Universo só dura pelo bem que nele se produz. Esse bem é às vezes poesia e arte. Outras vezes é outra coisa. Mas no fundo é sempre o bem e tanto basta".
"A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
Só se revela aos homens e às nações
No céu incorruptível da Consciência". Saudemos Antero de Quental e, onde quer que a sua alma esteja, que o seu Espírito divino brilhe e irradie cada vez mais.