sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Arte Japonesa em Portugal, a colecção de Paul Ugo Thiran, no Museu Anastácio Gonçalves.

Uma mulher cristã japonesa, com um discreto rosário e cruz ao peito, sorrindo no vento da eternidade...

A exposição Imagens de um Mundo Flutuante, constituída pelos tão delicadas estampas, sós ou em álbuns,  coleccionadas paulatinamente ao longo de cerca de quarenta anos por Paul Ugo Thiran encontra-se patente ao público, na Casa Museu Anastácio Gonçalves, em Lisboa, desde o dia 27 de Novembro de 2014.
São cerca de sessenta imagens de um mundo mutável, flutuante, sensível e efémero que se dão a nós, graças a Paul Ugo Thiran, à sua mulher e aos que se empenharam em concretizar o desejo e projecto de exposição que o próprio Paul lançara mas que a sua partida deste mundo terrestre (1936-2009) impediria de ver concretizada. Assim, na inauguração, a família esteve presente, vinda mesma do estrangeiro, pela sua ascendência belga, e as lúcidas e belas palavras da mulher de Paul Ugo Thrian foram longamente aplaudidas.

Ainda conheci e falei duas vezes com Paul Thiran, no departamento de livros da leiloeira Correio Velho onde eu trabalhava, acerca das estampas sobre madeira e a arte Japonesa, e a sua afabilidade e conhecimento tocaram-me e é pois com gratidão que partilho as suas preciosidades bem como tudo aquilo para o qual elas nos remetem ou reenviam, certo que no além Paul Thiran se alegrará com tudo o que seja divulgar o mundo flutuante e em parte desaparecido da tão subtil alma nipónica e que nestas imagens fotográficas que partilharemos das suas queridas estampas ou gravuras se deixa captar, sentir e adivinhar.
Paul Thiran, de 1968 a 2009, quarenta anos de travessia dos desertos e vales da vida orientado pelo inextinguível brilho do mono no aware o shiru, a empatia ou sensibilidade às sensações e energias subtis, princípio regente da arte e alma nipónica..
Esta xilogravura do famoso Hokusai, as Cerejeiras em flor junto ao monte Yushiro, com um Jinja (santuário) e um Torii (pórtico sagrado) foi a primeira estampa alcançada por Paul  Thiran, na Rodésia, em 1969 e abriu-lhe atractiva e amorosamente as portas da arte e da alma subtil do Japão...
E talvez as palavras do português que mais conheceu e amou o Japão possam aqui ser bem evocadas, ainda que escritas no começo do seu relacionamento nipónico: «A majestade dos quadros não se encontra no Japão; o grandioso não é daqui; mas sim um encanto de contrastes a sucederem-se sem fim, de decorações em miniatura, de adoráveis pieguices da natureza que fazem do misterioso Nippon um país de quimeras, um país fantasmagórico, onde o inverosímil alcança foros de real, como se houvéramos deixado a terra-mãe e invadíssemos os arcanos dum outro planeta»... Wenceslau de Moraes. Traços do Extremo Oriente, Lisboa, 1895.
De Utagawa Hiroshige (1797-1858). O anoitecer em Kamazu. A Lua Cheia vai-se erguendo sobre as vias percorridas pelos peregrinos, um deles carregando, provavelmente para um festival religioso (matsuri)  uma máscara de Tengu (etimologicamente, cão celestial), com o seu grande nariz, e que representaria tanto os espíritos da natureza das grandes árvores e duendes como um Kami ou Deus que, por exemplo, fazia partidas ou extirpava defeitos como o da vaidade. 
Foram os Yamabushis, os ascetas e peregrinos das montanhas, do Shugendo (uma forma de religião que unia o Shintoísmo e o Budismo), e são - porque ainda os encontrei em duas montanhas sagradas do Japão -, quem o cultuam mais. Esta belíssima imagem faz parte da famosa série das 53 Estações do caminho de TokaidoTokaido gojusan tsugi no uchi.
A Lua  cheia vai subindo por entre as árvores e abre, ilumina  e expande a nossa alma e a de toda a Natureza
Full Moon is always a magic time, sometimes even an ichi go ici e, a unic moment, illuminating our soul,  creating in us a sense of wonder and unity with Nature...
De Utagawa Yoshiku (1833-1904) esta bela xilogravura (nishiki-e), de 1865, deixa transparecer um pouco dos famosos banhos públicos, os onsen, onde estive apenas duas vezes, mas que continuam a ser muito cultivados. Em subtítulo, Utagawa, indicando que sentiu ou viu  as ancas estreitas delas como os salgueiros pejados de neve... 
A família Imperial, já depois da abertura dos portos do Japão ao Ocidente. De destacar no cimo da cabeça da Imperatriz uma representação solar, provavelmente ligada a Amaterasu omikami, a deidade solar, e a mais importante no panteão Shintoísta...
   
De Utagawa Kunisada II (1823-1868), cenas da famosa novela do séc. X-XI, Genji, de Murasaki Shikibu e que contém 44 capítulos acerca de Genji, o radioso,  filho do Imperador, e sobre os amores de Kaoru e Ukifune. Xilogravuras datadas do ano da Serpente, 1857.
         
Cenas do Genji, de To No Shikibu, posteriormente conhecida como Murasaki Shikibu, a genial novelista dos sécs. X-XI.
 Uji é tanto o nome duma zona famosa de chá não distante de Kyoto, como a designação de melancolia. Nas suas peregrinações pelo Japão Wenceslau de  Moraes visitou-a e refere por exemplo os cantos tradicionais ouvidos das mulheres que cultivavam os campos de chá, nos seus livros O Culto do Chá e Serões do Japão
As garças, que nos parecem saudar, que celebram elas senão o voo livre, o Amor e a Unidade Divina que devem emergir mais na nossa consciência, na existência ilusória?
              De Toyohara Kunichika (1835-1900). Homem e mulher, cena de capítulos do Genji. 1865.
De Utagawa Hiroshige II (1829-1869).  Da série das 36 vistas da capital oriental, Edo. 1862. Contemplando as folhas outonais do Acer, à borda do rio impetuoso e sob uma latada de bambu, com o convivial chá verde quente.
Qual peregrino que passa para a outra margem iluminativa, ou seja, os que se intensificam espiritualmenete e realizam o Gate, Gate, Parangate, Parasangate, Bodhi swa. Enquanto do lado de cá a chaleira ferve e as almas sentadas contemplam a beleza das cores outonais dos Acer e a pureza avassaladora do rio cantando através do seu leito...
Cerimónias congratulatórias na corte imperial, no palácio de Kamakura, em 1861. Nishiki-e ou xilogravura, num tríptico de Utagawa Yoshitsuya (1822-1866).
Um pequeno vídeo de algumas das xilogravuras...
De Utagawa Hiroshige (1797-1858), da série Toto Meisho, gozando-se  a fresca da noite na ponte de Ryogoku... Ainda hoje há muitas actividades peregrinantes parecidas que encantam os Japoneses de todas as idades, tais como ir ver ou contemplar as cerejeiras em flor (Sakurai),  as folhas outonais, sobretudo dos Acer (Momijii), os pirilampos e finalmente peregrinar os santuários, templos e montanhas.
De Aikawa Minwa, princípio do séc. XIX, pardais e cravo, xilogravura colorida da série Korin Gashiki.
De Utagawa Hiroshige (1797-1858) uma visão, em dia chuvoso, do trabalho nos campos de arroz junto à montanha sagrada de Oyama, em cujo topo se encontra o santuário - Jinja -  shintoísta de Afuri, peregrinado há séculos e muito concorrido no começo de cada ano.
Do álbum de Hiroshige I e Utagawa Hiroshige II (1829-1869), paisagem montanhosa e lírios junto ao rio Kinoshita. 
Sob o manto cintilante da neve, a aldeia de Yamanaka, as árvores e os habitantes curvam-se e adaptam-se respeitosamente. Xilogravura de Utagawa Hiroshige (1797-1858), impressa em 1855 e que é a 38ª das 53 Estações do caminho de Tokaido  Gojusan-tsugi meisho zue.
Do muito famoso desenhador Okusai (1760-1849), forte nevão no sagrado monte Fuji, do álbum 100 vistas do Monte Fuji, numa impressão posterior.
Por vezes as ondas e energias nos mares exteriores e interiores são tão gigantescas que mesmo o monte Fuji parece pequeno, quase que afogado por elas. Assim também nós saibamos resistir às vagas alterosas e manter-nos-te firmes e elevados como o Fuji sagrado...
De Hokusai, do álbum das 100 vistas do Monte Fuji...
Quando chove, faz frio ou há sofrimento, sabe acompanhar quem precisa de ti, e assim como Kawase Hasui (1883-1957) pintou o amor que em Shinagaya, Tóquio, unia dois seres, assim não desiludas nem seja infrutífero, mas antes ajuda os seres a passarem as pontes e sê tu mesmo alma construtora de pontes e ligações entre o céu e a terra, a água e o ar, o outro e tu, eles e nós, ardentemente no Amor, na invocação Divina, na Unidade...
Álbum colorido de gravuras em madeira (ou xilogravura) de Imao Keinen (ou Kagetoshi (1845-1924) acerca das Flores e Pássaros das Quatro Estações...
By the rain thou shall cross boundaries and limitations and your umbrella will be the fire of the Spirit in you...
Atravessaremos as pontes e chuvas protegidos pela nossa irradiação do espírito ardente que em nós habita...
De Kasamatsu Shiro (1898-1992), no Lago de Shinobazu, a chuva cai de noite, 1939, mas os sinais da luz permanecem...
De Utagawa Kunisada II (1823-1890), ilustrações para o Genji Monogatari, O conto de Genji, o famoso romance do séc. XI, de Morasaki Shikibu (? 973-1014)
 Senhor  Peregrino (Henro), por favor, venha ver... 
Do Genji: talvez caligrafando poemas ou cartas de amor, sob um dragão (ryu) de papel...
Certamente, a par da pintura da japonesa cristã com que abrimos este texto da exposição, este álbum feito por dois pintores, um para as paisagens e outro para as pessoas, embora um só assinando, é o mais raro de toda a  colecção, como nos contou a mulher de Paul Ugo Thiran, tendo sido adquirido ao livreiro antiquário olisiponense José Teixeira da Mota. [Acrescento em Outubro de 2024: Recentemente partido para o mundo espiritual, conforme:  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/06/in-memoriam-de-jose-teixeira-da-mota-e.html]
De Utagawa Hiroshigue (1797-1858) atravessando o rio Rokugo para Kawasaki, da série das 56 estações do caminho para Tokaido. O barqueiro, quem sabe "sidhartico", as grandes árvores, o Fuji distante, tudo envolvendo harmoniosamente as pessoas que unem a terra, o rio, o ar e o céu num vai e vem ora simplesmente flutuante e efémero ora com momentos de ichi go ichi e, os tais momentos únicos ou uma vez na vida...
O Fuji é o mais elevado santuário e templo natural do Japão, tendo também um santuário bem no cimo da sua mítica ascensão, onde  vivem ou se podem manifestar ou deixar ver os Kamis, os antepassados, os espíritos da natureza e os deuses nipónicos...
Wabi, princípio estético nipónico: encontrar graça ou apreciar o tosco, o fragmento, o incompleto, o semi-destruído. Neste caso no fragmento fotográfico tremido por mim da primeira estampa obtida pelo nosso amigo Paulo Ugo Thiran, com a avenida arborizada que conduz ao santuário Shintoísta e o Torii, portal ou anta, a marcar a  proximidade do local habitado pelos Kami, espíritos ou deuses...
Que eles nos abençoem...
Avancemos na jornada e caminho, que também é feito dentro de nós, de verdade e de amor, de sabedoria e ecologia, de abertura às bênçãos dos Kami e da Divindade...
Mujo Reiho Shinto Kaji.....

Sem comentários: