Mostrar mensagens com a etiqueta Antero de Quental espiritual. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Antero de Quental espiritual. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Antero de Quental e o soneto "Na mão de Deus", com que conclui os "Sonetos completos", 1886.

                                                            «Na mão de Deus
                         (À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O[liveira] M[artins].)

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!»

A escolha  de se concluir a edição dos Sonetos Completos, de Antero de Quental,  com um soneto que não é dos finais, mas sim escrito em 1882, deve ter obedecido a um intuito moralizador ou mesmo catolicizante, fazendo mais explicitamente terminar a bem, ou na entrega a Deus, o atribulado percurso filosófico, poético, religioso e anímico de Antero de Quental, muito espelhado e transmitido neste livro, ordenado cronologicamente de 1860 a 1884. Pode ter sido uma decisão de Antero, ou mais provavelmente conjunta com Oliveira Martins, já que este foi o co-organizador e prefaciador.
Neste poema, profundo e complexo, certamente bastante auto-biográfico,
vemos o autor renunciar aos movimentos anímicos antigos, considerados agora como infantis, ilusórios, passionais, e entregar-se definitivamente a Deus, através do coração, símbolo da sua afectividade e alma, a quem ele "ordena" ou sugere que vá dormir na mão direita, a benéfica ou misericordiosa de Deus, segundo a simbologia tradicional de muitos povos, nomeadamente os gregos e romanos, e numa visão humana ou antropomórfica da Divindade. Mas que Antero de Quental logo que redigiu o soneto explicou em cartas para os amigos que, por serem menos religiosos poderiam ficar mais surpreendidos, a palavra Deus era apenas "um símbolo de uma coisa". Veremos que a coisificação (para usar a linguagem de Leonardo Coimbra, autor dum valioso estudo sobre Antero) do Ser Divino ou da Fonte Primordial, ou talvez mais em Antero o Absoluto, numa segunda carta a um poeta religioso, João de Deus, no qual aponta as razões da sua génese, e se alegra por escrever um soneto que para João de Deus não é só perfeito na forma mas também já na ideia religiosa, e faz
por fim uma auto-crítica salutar.
Na primeira carta enviada a Alberto Sampaio,
provavelmente em Maio de 1882, diz:«Fiz, depois que aqui estiveste, mais um Soneto, que aqui vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro modo não caberia em verso. Pura liberdade poética». Na segunda, dirigida a João de Deus, em 20 Julho de 1882, escreve: «E agora aí vai um Soneto. Será talvez o primeiro de que gostes por mais de alguma coisa do que só pela forma. O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da natureza. Reconheci que andar por toda a parte proclamar, com voz lúgubre, que o mundo é vão, era ainda uma última vaidade...»

                                                     João de Deus, de S.Bartolomeu de Messines ao Panteão Nacional - RTP Ensina

Sabemos que João de Deus apreciou bastante o soneto e o queria divulgar, pois em Novembro de 1882, Antero de Quental responde-lhe em carta, dando-lhe conselhos acerca do local onde deveria começar a sua cruzada pelos novos métodos de leitura e ensino, Vila Real, e replica: «O soneto em questão não se pode publicar porque o ofereci a uma Senhora da minha  amizade [D. Vitória de Oliveira Martins], mas tão modesta e recolhida que tenho a certeza levaria a mal que eu imprimisse o nome, e por outro lado, não o quero publicar sem aquele oferecimento, de sorte que ficará indefinidamente inédito».
Todavia, já em 1883, em 17 de Junho, envia o Na Mão de Deus a mais
um amigo próximo, Joaquim de Araújo, dando outra justificação do secretismo: «Adiante transcrevo o Soneto que ofereci à D. Vitória. Em tendo vagar lhe mandarei mais algum. Nem este nem os outros são para mostrar a indiscretos. A razão deste mistério não é um capricho de misantropo; é que eu tenho projectado publicar mais tarde, quando de todo se me tiver esgotado a veia do Soneto, que já declina sensivelmente, a colecção dos meus Sonetos Completos. Como quero que o livreco leve alguma coisa inédita, resolvi não publicar nem deixar 
publicar quanto tenho feito nestes últimos tempos».
Ora no soneto,
apesar do seu carácter de crença e de paz, há ideias-imagens algo passivas e derrotistas. Por exemplo, a recomendação para a alma adormecer e dormir não pareceria muito de Antero de Quental, um ser com uma aspiração muito forte à Verdade, embora com um dinamismo sujeito a alternâncias, nomeadamente após a sua doença. Contudo, o desgaste do sistema nervoso, o cansaço da busca metafísica, a desilusão sentimental e social e até uma certa abertura maior a uma crença num Ser Eterno, poderiam gerar a vontade de se entregar ao adormecimento ou descanso na mão divina, ou seja, na paz de Deus. E será que algo deste soneto lhe passou pela alma, na hora  insatisfeita, ou então plenamente desprendida, em que se suicidará anos mais tarde, em 1891, na sua ilha natal de S. Miguel? Mistério grande...

                                                     

Talvez possamos compreender melhor o soneto se considerarmos Antero como que a pensar e a dizer: «- Eu já não tenho um coração iludido, mas sim como ser espiritual que sou, liberto dos palácios da ilusão, digo ao coração,  algo criança ingénua e fatigada da caminhada, dorme em Deus, descansa.»
Certamente poderemos ainda conjecturar, que poderia ser apenas por algum tempo, a fim de se recompor, e não numa ideia de descanso eterno a que este poema pode remeter, pela associação com a terminologia da visão católica da morte e do além, tão frequentemente usada nas orações ou missas pelos que morrem: "Descansai em paz, adormecei no Senhor", quando o que se deveria recomendar, pelo menos para muitos casos, seria: - "- Despertem, avancem para o mundo espiritual e para a Divindade, imanente e transcendente".
Realcemos que no começo
do soneto foi empregue uma expressão verbal do passado: "descansou" e que no fim está  um presente imperativo, pois é dito ao coração: "dorme", e assim no princípio há já todo um passado, abrindo-nos para a ideia da vivência árdua trilhada interiormente por Antero de Quental, e nesse sentido ele emprega até uma imagem muito real e tradicional, a da escada que liga os mundos, os níveis, as idades, com certa originalidade no chamar-lhe estreita, e percorrida só no sentido descendente: "- Desci passo a passo a escada estreita".   o que nos remete para observarmos a descrição da sua vida, a partir de dado momento de maturidade, como uma descida ou diminuição das grandes esperanças e capacidades, das quais nomeia o Ideal e a Paixão, que sintetizam de certo modo as suas capacidades intelectuais e afectivas, para o humilde recolher-se e entregar-se a Deus...

                                                           

Se a palavra "Ideal" está perfeitamente de acordo com a filosofia e o ambiente cultural e revolucionário da época, e nela ressoam implicitamente muitos escritores e filósofos com os quais dialogou nas  leituras e  conversas com os amigos (embora só se tenha encontrado, anónima e humildemente, com Jules Michelet, em Paris), já a "Paixão" é menos esperada.
Poderíamos pensar na palavra e conceito, sentimento e realidade do "Amor", mas Antero de Quental preferiu por certas razões escolher a "Paixão" e não vamos pensar que as escolhas foram apenas por questões de rimas, ainda que possam em certos 
casos terem sido os sinónimos encontrados mais próximos.
Se fosse o Amor intenso, talvez absolutizante, divinizante, tal como o de
Dante por Beatriz (humana e simbólica), então Antero de Quental se inseriria plenamente nos Fiéis do Amor. Mas das paixões, sobretudo amorosas, de Antero ficaram conhecidas, dada a sua reserva ou pudor amoroso, apenas zonas esbatidas, íntimas, quase angélicas, juvenis: a Beatriz, uma senhora de Coimbra, e a Pepa, a Mariana Porto Carrero embora por fim, já com mais idade, vemos a baronesa Clotilde, divorciada, que estava em hidroterapias como ele nas termas de Bellevue nos arredores de Paris, e que é a sua última paixão conhecida e da qual provavelmente se gerou magnífico soneto Mors-Amor, encontro passional que Oliveira Martins, exageradamente, diz ter feito não só sofrer muito Antero como quase o levado ao suicídio. 

Neste soneto, que conclui portanto a obra prima do poeta-filósofo, os Sonetos Completos, quem sabe se por escolha do seu grande amigo Oliveira Martins e a que Antero aquiesceu, e seria magnífico conhecermos os diálogo parturienses que terão travado, deparamo-nos de certo modo com as duas colunas do Palácio da Ilusão, palavra que na tradição indiana é denominada Maya, e que é tanto o que se pode medir e quantificar e constitui o mundo, como o poder dinâmico da criação de formas e da manifestação da Divindade,  cultuada como a Shakti, a Deusa e energia cósmica (por contraposição ao deus Shiva, o espírito-consciência), e que se manifesta em nós com a energia ou dinamismo interno presente na coluna vertebral subtil dos plexos nervosos e da medula espinal, e que circula ainda segundo os yogis por dois canais de polaridades complementares que que se vão cruzando ao longo da coluna.
Este "palácio encantado da Ilusão", ou como Antero lhe chama noutro soneto o Palácio da Ventura, isto é, o local dos bens que hão de vir, também poderia ser chamado, no seu nível mais elevado,  como o Templo da Divindade, com as suas duas colunas e canais, a do Ideal do intelecto, razão, mente e a da Paixão e Amor do coração, ou seja, o masculino e feminino que temos de equilibrar ou complementar dentro e fora de nós para se realizar o milagre ou a obra alquímica da harmonia dos opostos, e vencerem-se ou controlarem-se os instintos, conflitos e frustrações, e assim irmos unificando-nos psiquicamente, ou individuando-nos na linguagem psicológica que Carl Gustav Jung desenvolveu.
Antero de Quental sente e reconhece corporal e animicamente que se distanciou dos grandes sonhos juvenis revolucionários filosóficos bem como dos movimentos passionais afectivos, e que deve libertar-se do que são ainda conceptualizações e formas transitórias. E aspirando ou almejando ao Divino, ao Absoluto, ao Eterno e Perfeito, acaba por se entregar por fim, num abandono de confiança, na imagem da fé de uma criança que vai agasalhada ao colo da cansada ou já trôpega mãe  na jornada tão  complexa, e por vezes tão agreste ou sofrida, como foi a sua, da vida individual na  Terra e no vasto e misterioso cosmos, visível e invisível.
É numa posição de humildade, de ser abaixado como o húmus da terra, que Antero de Quental se confessa perante o mistério do Universo, entregando o seu coração nas mãos da Divindade para que Nela repouse.
Diria que a minha discordância ou reticências quanto às palavras e estados psíquicos que se evolam deste soneto, como já assinalei de certo modo, está no "dormir" e sobretudo no final "eternamente", que sabe um pouco a campa romântica do séc. XIX mas que pode ser redimida ou redimensionada se consideramos que o dormir tem a sua utilização figurada ou simbólica no sentido de se estar em íntima e confiante paz, repouso e entrega, algo que ele certamente necessitava e que desejaremos tanto para Antero como para todos nós, e não só para depois da morte mas no aqui e agora, de ser a Hora, esta a de nos podermos ligar, em silêncio e em paz, mais forte e confiantemente à Divindade, ao Bem, ao Amor, à Sabedoria, qualidades divinas aliás pelas quais A merecemos, e com Ela nos podemos ligar dinamicamente, ou seja, manifestando-A dentro dos nos nossos limites na escola, na casa, com os amigos, no trabalho, na aventura e na ventura...
Ou seja, podemos discernir neste soneto a elevada mensagem que o nosso coração se ligue, entregue ou abra a Deus e que as suas agitações, ilusões e atracções pelas formas transitórias e imperfeitas materiais, estejam como suspensas, adormecidas ou ultrapassadas e que nele vibre sobretudo a Luz e o Amor do Espírito e da Divindade, mistério dos mistérios, entrega plena que as crianças por vezes vivenciam com as mães, gerando-se no aperto de mãos confiantes e nos corpos e almas juntos um circuito de energias vivas de amor que apoiam e  impulsionam fortalecedoramente no Caminho.
Estaremos mais na mão de Deus, ou de mão dada com Ele, ou seja com a sua presença ou bênção mais em nós, quando vivemos justa, abnegada, bem, bela, corajosa e verdadeiramente.  E quando confiamos na Providência divina e nos seus mensageiros e guias para avançarmos na peregrinação da Vida, num desenvolvimento crescente das nossas capacidades, num melhor ligação íntima com a tão subtil Divindade, inserindo-nos assim melhor  no plano ou missão que nos compete no Cosmos e neste mundo e sociedade.
Entregar o coração na mão luminosa ou dourada da Divindade é o mesmo que entregar a estrela do nosso espírito na Divindade, é crer Nela e querer unir-nos a Ela, com todo o corpo, alma e espírito, dos quais o coração é como o vaso ou graal. Neste sentido o soneto é de um simbolismo universal e perene. Por fim, anote-se que este poema, como um viático ou encaminhamento de boa morte,  foi ao longo tempo recitado no momento da desincarnação, seja por quem partia, seja por quem o acompanhava, em alguns seres amigos de Antero e muito recentemente pelo investigador e livreiro José Teixeira da Mota.

                                                      
Que na Humanidade, no nosso íntimo e no de Antero de Quental o fogo do Amor e a Divindade ardam e brilhem mais... Demos graças.... Amen, Aum...

sábado, 3 de maio de 2014

Antero de Quental. "As Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc.XIX". Excertos e Reflexões...

                                              
«Eu tenho por certo os pressentimentos. Agora como, isso não sei e penso que ninguém sabe». 1886.
                                             
Reflexão sobre a primeira das três partes das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX.

A demanda filosófica e espiritual de Antero de Quental teve na publicação, em Janeiro de 1890 e nos dois meses seguintes, no seio da Revista Portugal, do ensaio Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, o seu momento culminante, concluído o qual Antero pode partir rumo à ilha utópica dos seus ideais que, naturalmente, não existindo em parte alguma do exterior, só podia esperar (e resta-nos saber o que ele antevia...) encontrar nos mundos subtis do além e do Espírito, onde apressada ou samuraicamente ingressou, sentado num banco dum jardim sob o símbolo da Esperança...
                                                  
           Antero de Quental, numa fotografia da qual gostava e pouco conhecida...

Nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX Antero de Quental presenteia-nos com várias deduções, conclusões e intuições de grande qualidade que ainda hoje são valiosas e úteis, das quais apresentamos algumas, de acordo com a nossa visão. Este ensaio, e viram-no bem tanto Leonardo Coimbra como Sant'Anna Dionísio, é verdadeiramente o seu "testamento filosófico" e, embora bem analisado ou debatido filosoficamente por muitos pensadores portugueses e em especial anterianos, tem sido ainda insuficientemente compreendido ou acolhido espiritualmente...
Oiçamo-lo dentro desta perspectiva ou assunção mais espiritual, em alguns passos do seu texto, já comentados ou parafraseados por nós:
Se o descobrir "a directriz da força íntima inicial", ou a nossa própria, é a base da via do conhecimento, seja pessoal seja geral, constantemente devemos retemperar-nos e redescobrirmo-nos, ou melhor ainda recentrar-nos, enraizar-nos na nossa essência para enfrentarmos "a acção mais ou menos perturbadora das forças que lhe condicionam a expansão" e que desequilibram o corpo, as emoções e a psique envolventes.
Esta busca do "misterioso princípio ideal" que tenta manifestar-se em nós e na Humanidade faz-nos consciencializar da sua "potência infinita" e da expressão ou "acto limitado" que vamos conseguindo conceptualizar ou realizar.
Infelizmente poucos de nós sondamos ou visualizamos esse potencial nosso e assim deixamo-nos vulgarizar, diminuir, oprimir...
Desta limitação humana e da sua capacidade expressão resulta que a Verdade tem de ser para nós simbólica pois "não é o Absoluto mas participa da natureza do Absoluto e tem em si, como diz o poeta, parte alguma do infinito".
Quem é então o Filósofo ou o que é a Filosofia: "`é a equação do pensamento e da realidade", ou "equilíbrio momentâneo entre a reflexão e a experiência: a adaptação possível em cada momento histórico...".
O que Antero de Quental nos pede é então coerência, verdade, sinceridade entre o que conhecemos e cremos, sentimos e pensamos e logo vivemos. Certamente na medida do possível, num fazer-se incessante, no desenvolvimento da nossa própria especificidade, equilibrando, diremos nós, por exemplo, a contemplação e a acção, ou os nossos anseios e uma certa aura constante de aceitação transformante dos condicionalismos inevitáveis.
Este é o trabalho do amante da Sabedoria, o "Filo Logos", que é também aquele que ama a Inteligência ou a Razão, o Espírito ou o Ser...
                                         
Antero de Quental em vários aspectos deste valioso ensaio foi bastante clarividente e espiritual e, na compreensão que apesar dos vários sistemas filosóficos serem irredutíveis entre si há algo de comum, afirma: "O espírito da época penetra-os a todos: o génio da raça e da civilização, que os viu nascer, imprimiu em todos igualmente o seu cunho indelével", intuindo que: "haverá em cada época em cada civilização, uma metafísica latente, mais profunda que a que se formula nos diversos sistemas e tão profunda que a todos escapa, mas que influa insentida em todos e de que cada um murmure muito confusamente um eco?"
Esta ideia da existência de uma metafisica comum tanto pode ser vista como a Anima mundi, da Antiguidade e do Renascimento, como também a de uma aura psico-espiritual, e neste sentido se encaminhou C. G. Jung com o seu inconsciente colectivo, certamente um aperfeiçoamento das noções que vinham do séc. XIX, nomeadamente de Hartman e que Antero tão bem conhecera, e também com a ideia de sincronicidade, por exemplo, quando vemos diversos autores murmurarem um eco dessa comunicação subtil do que do mundo dos arquétipos está mais próximo e afim da humanidade numa determinada época e que chega até às suas mentes mais prescrutantes ou às suas almas mais sensíveis e receptivas.
Seria interessante estarmos mais conscientes, por exemplo, dos esforços (e resultados...) meditativos e contemplativos de Antero para captar os ecos ou reflexos de tais arquétipos, princípios, leis, formas geométricas e ideias do mundo intermediário intelectual e causal entre a Divindade ou o Absoluto e a mente racional humana, a Humanidade, não só na poesia e nos Sonetos como no seu esforço ingente filosófico e metafísico. Ou seja, onde, mais do que espraiar o que lera ou pensava, captou intuitivamente dos mundos subtis e espirituais algo que nos transmite e impressiona, seja pela beleza, a concisão, a clareza, a novidade, a hipótese possível arrojadamente lançada.
Da complementaridade dos sistemas e visões resulta que "sem o quererem, completam-se uns aos outros, e é só no conjunto deles que o espírito que anima a idade, o ciclo humano que os produziu, se encontra inteiro e pode ser bem estudado e compreendido. A expressão completa deste espírito seria pois um teoria geral do Universo, que formulasse superiormente, reduzindo-os à sua unidade, todos aqueles pontos de vista parciais, aqueles momentos limitados de compreensão, que cada sistema representa isolada e divergentemente"
Neste aspecto, a procura contemporânea da compreensão, comprovação e exposição de uma teoria do campo unificado de energia-consciência do Universo, e vemos de novo a actualidade de Antero que além de ter intuído que já no que se designava como magnetismo se encontrava essa força orgânica unitária (conforme a Carta a Cirilo Machado, de 1886, tratada num artigo neste blogue) considera que, na impossibilidade de um síntese perfeita dos diferentes pontos de vista, doutrinas e sistemas "um ecletismo ou um sincretismo mais ou menos sistemático" é o "possível sucedâneo daquela síntese irrealizável".
Este é um dos aspectos mais valiosos de Antero, que por vezes ele aponta ou aspira ou intui nalguns dos seus psicomorfismos ou ideias forças, tal a da comunhão com os mortos queridos ou com as grandes ideias e ideais da Humanidade.
Antero adianta então que na história da Humanidade algo disso se conseguiu na época ou período de Alexandria «quando Pitagóricos, Platónicos, Estóicos e até Peripatéticos se uniram» e no declinar da Idade Média, quando Thomas de Aquino formulou na «gigantesca Summa, senão uma verdadeira síntese, pelo menos a redução a uma unidade sistemática das tendências das várias correntes do espírito medieval, mais ou menos confundidas ou harmonizadas no seu sábio ecletismo.
«Hoje, ao cabo de quatro séculos de elaboração do pensamento moderno, parece dar-se alguma coisa semelhante... A hora do joeiramento das verdades adquiridas, da crítica e coordenação dos diversos pontos de vista e da conciliação dos sistemas parece ter soado para a filosofia moderna... O adepto de uma escola, segundo os velhos moldes, absoluto e intransigente, faz-nos hoje muito proximamente o efeito de uma inteligência acanhada, às vezes quase de um extravagante. Um largo criticismo vai substituindo o antigo dogmatismo. Por este lado ainda, tudo indica que somos entrados no que se pode chamar o período alexandrino do pensamento moderno", algo que nos nossos dias de globalização e da instrumentalidade da Internet amplificou poderosamente, permitindo recolhas de informação e sínteses cada vez mais abrangentes das múltiplas esferas e fontes do conhecimento.
Antero vai então destacar no substrato do pensamento geral actual quatro noções capitais, "quatro palavras que representam em amplitude como em profundeza, a maior revolução intelectual da humanidade": força (a essência comum da matéria e o espírito), lei ("as leis do espírito são as leis do universo"), imanência ("o espírito é o ser tipo, medida de todos os seres, revelação da sua mais íntima natureza") ou espontaneidade, e desenvolvimento ("a força manifesta-se em actos que alargam a esfera da acção").
                                           
Ao comparar o que até então se pensara e o que se começava a compreender, realça que "se, para o pensamento antigo, a realidade aparecia como uma emanação do ser em si absoluto e só verdadeiramente existente, para o pensamento moderno é a realidade o fieri incessante de um ser em si só potencialmente existente e que só realizando-se atinge a plenitude...", acrescentando ainda que "segundo o pensamento moderno matéria e forma são indissolúveis, fundem-se na natureza autónoma dos seres cujo princípio de energia lhes é próprio, ou antes, constitui a sua mesma essência" e que hoje em dia se "vê na realidade o acto único de uma substância omnímoda, por virtude da qual todos os seres, momentos e modalidades dela, comunicam continuamente entre si, influenciando-se mutuamente, opondo-se e, por essa constante e universal oposição, realizando, não a recíproca anulação, mas a integração de todos os momentos na unidade, cujas diversas potências manifestam."
Isto é algo que a ciência moderna vai confirmando, nomeadamente com a sua noção do emaranhamento da mente que, por exemplo o cientista Dean Radin tem exposto e comprovado, ou que muitos de nós vão sentindo em diversos tipos de telepatia e pressentimentos, estes referidos por Antero em 1886: «eu tenho por certo os pressentimentos. Agora como, isso não sei e penso que ninguém sabe».
Realcemos então neste excerto a posição de síntese ecléctica de Antero, as quatro palavras que para ele eram as ideias-forças mais importantes, que nós hoje devemos reactualizar e aprofundar com os dados da física quântica e das neuro-ciências, e por fim a sua dinâmica visão do Ser, que em nós é a energia própria e íntima, a nossa essência, e que na "identidade do ser e do saber" vive em ampla unidade comunicativa com todo o Universo.
                                               
Transcrevamos uma parte do significativo parágrafo em que Antero desenvolve a "sublime" ideia de desenvolvimento, ela:
 «é a consequência e o complemento natural das ideias de força e de imanência.... todo o ser tende para a afirmação de si mesmo, isto é, para a expansão e a realização da sua essência. Se essa essência, que exprime a sua mesma existência, lhe é imanente, a sua potência ou virtualidade de expansão e realização é necessariamente ilimitada, pois no momento em que encontrasse um limite absoluto a essência do ser estaria em contradição consigo mesmo: realizar-se, e realizar-se numa sucessão ilimitada de momentos, em que cada um abrange o anterior e por isso compreende mais do que ele, tal é a sua lei. Ainda por este lado chegamos à ideia de desenvolvimento. O Universo aparece-nos agora já não somente como o grande ser autónomo e eternamente activo, mas como ser de ilimitada e infinita expansão, tirando de si mesmo, da sua inesgotável virtualidade, de momento para momento, criações cada vez mais completas, mais ricas de energia, vida e expressão, envolvendo-se e desdobrando-se, em voltas cada vez mais largas e sinuosas, na espiral sem termo do seu maravilhoso desenvolvimento. Divino e real ao mesmo tempo, manifesta a si mesmo a sua essência prodigiosa, contempla-se numa infinidade de espelhos e em cada um sob um aspecto diverso, desenrolando a sua eterna existência numa série de panoramas, desde as forças elementares e puramente mecânicas, as mil afinidades da matéria bruta, até ao instinto que sonha, à inteligência que observa e compara, à razão que ordena, ao sentimento que fecunda, até à contemplação e à virtude dos sábios e dos santos».
É uma bela visão da evolução da Humanidade numa escala de virtude e sabedoria, rumo à sua perfeição...

Na parte final do último parágrafo da I parte das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, diz-nos ainda Antero:
" A nova filosofia fundada sobre a «identidade do ser e do saber» leva as ideias fundamentais do espírito moderno, as ideias de força, de imanência e de desenvolvimento, até ao máximo grau de condensação. Schelling e Hegel fundaram definitivamente a doutrina da evolução, e fundaram-na na mais alta região das ideias, donde ela domina todo o pensamento do nosso século. A evolução, vista dessa altura, não é somente o processo mecânico e obscuro da realidade [hoje bem menos...] : é o próprio processo dialéctico do ser, tem as suas raízes, comuns com as raízes da razão, na inconsciente [ou seremos nós que estamos inconscientes de tal?] mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano, a consciência de si mesmo, a plenitude do ser e a ideal perfeição. A lei suprema das coisas confunde-se com a sua finalidade e essa finalidade é espiritual. Com Schelling e Hegel a filosofia da natureza compenetra-se dos seus verdadeiros princípios metafísicos: o mecanismo dissolve-se no dinamismo, cujo tipo ultimo é o espírito. O universo, à luz do realismo transcendental dos dois grandes sucessores de Kant, transfigura-se: o seu movimento aparece como uma sucessão e encadeamento de ideias e a sua imanência define-se como a da alma infinita das coisas».
 
Realcemos esta intuição de Antero de que a nossa imanência mais íntima é a própria alma infinita e divina do Universo.
Sejamos pois mais nós próprios, realizando a nossa essência e expandindo-a num fazer incessante, mais conscientes da "substância omnímoda" viva e inter-dialogante, "alma infinita das coisas",  "na espiral sem termo do seu maravilhoso desenvolvimento, Divino e real ao mesmo tempo", na qual temos o nosso ser, e onde a Tradição Espiritual Portuguesa, de que Antero de Quental e nós fazemos parte, é um dos veios ou rios auríferos...