sexta-feira, 31 de maio de 2019

António Fogaça. "Versos da Mocidade". 1887. Um poeta de Barcelos, anteriano e do Amor. E com um poema de António Nobre a António Fogaça. E a assinatura do poeta.

                                    
António Fogaça deu à luz em Coimbra na Typografia de M. C. da Silva, em 1887, os seus Versos da Mocidade (1883 a 1887) e, pelo estilo, conteúdo e riqueza estética, simbólica, amorosa e de amadurecimento de visão do mundo, poderíamos pensar que teria um percurso grande tanto para trás como para a frente, mas tal assim não sucedera pois nascera (de pai cirurgião, o Dr. Martinho António Gomes e de Maria José do Carmo Machado de Miranda Fogaça) apenas há 24 anos, a 11-V-1863, em Vila Frescainha de S. Martinho, Barcelos, e partiria da Terra, mal-grado todo o seu amor e esperança, apenas um ano depois, a 27-XI-1888, levado pela febre tifóide, em Coimbra, onde se encontrava a cursar o 3º ano de Direito. 
À parte a colaboração em alguns jornais e revistas, este é o seu único livro e nele manifesta tendências ou características românticas e naturalistas, simbolistas, parnasianas e até saudosistas, tendo convivido com  Trindade Coelho (1861-1908) e António Nobre (1867-1900), o qual lhe dedicou um triste, ou não fosse ele também uma vítima precoce da Parca,   e belo desafiante poema À Memória de António Fogaça, incluído nos Primeiros Versos 1882-1889, escrito em Coimbra em 25.III.1889, uns dias após a sua partida:
 
«Andas de luto pesado,
Alva irmã das cotovias!
Quem te morreu? O meu Amado:
Enterrou-se há oito dias...
 
-Mas (bem sei que o mundo zomba)
Negra irmã das violetas!
Antes te vistas de pomba...
- Mas também há pombas pretas...?»
 
 Ora pelo livro sabemos que lera e admirava Jules Michelet e Antero de Quental, deste tendo certamente  lido a edição completa dos Sonetos, de 1886. Na vasta correspondência preservada de Antero de Quental  não há porém menção ao jovem António Fogaça.
                                  
Embora vinte anos mais novo que Antero de Quental, acabará por partir mais cedo para o Além do que esse seu "inspirador", citado na epigrafe invocatória no começo da 2ª parte da obra, a mais filosófica, ainda que sempre subordinada ao seu imenso e intenso amor pela mulher e pela amada, provavelmente resguardada ou oculta nas iniciais T. J. F. Aliás, invocara, na 1ª parte do livro Jules Michelet, "J'ai fini et mon coeur n'a pas fini!", um verso cheio de fé na imortalidade do coração como sede e metáfora do espírito, e na 2ª parte, Guerra Junqueiro, "Lancei o meu olhar pelo horizonte" e,  por fim, de Antero de Quental, "Passam à vezes uma vagas luzes", verso de um poema À História, contido nas Odes Modernas, o qual, agora e aqui é um pouco mais transcrito:
 
«Passam às vezes umas luzes vagas
No meio d’esta noite tenebrosa...
Na longa praia, entre o rugir das vagas,
Transparece uma forma luminosa... 
 
A alma inclina-se, então, por sobre as fragas,
A espreitar essa aurora duvidosa..
Se é d’um mundo melhor a profecia,
Ou apenas das ondas a ardência.»
 
                                                      
Versos da Mocidade está dividido em dois livros, o primeiro, Orações de Amor, contém quarenta orações ou poemas de amor à amada, real e ideal, e o segundo, Mágoa e Risos, bem mais extenso, com sessenta poemas, dedicado à sua mãe e seus irmãos, está dividido em duas partes. São sonetos intensos de amor, desilusão, riso e mágoa,  aceitação e visão, muitos dedicados aos seus companheiros de estudos, sonhos e esperanças, e que de algum modo, poderemos imaginar, não o conseguiram manter na terra por mais tempo, e não sabemos desses citados quem mais o chorou e acompanhou no findar da sua passagem: a sua mãe e irmãos, Machado de Almeida, Júlio Soller, Julião Felix Machado, José de Lemos e Nápoles, Manuel Monteiro, José Luís Sardinha, Fialho de Almeida, Santos Mello, A. A. Cardoso Pinto, Alberto Osório de Castro, João de Menezes, Miguel Pereira da Silva, Mário Pinheiro das Chagas, Ernesto Leite de Vasconcelos, Francisco de Melo e Alvelos, Duarte Borges Coutinho de Medeiros, Silvestre Falcão, Trindade Coelho, Porfírio da Silva, Silva Cordeiro, Velloso Armelim, José Novaes, José da Cunha e Costa, Dr. Francisco Martins, José Luís de Carvalho, António Augusto Gonçalves, Dr. António de Vasconcelos, Dr. J. A. Ribeiro Guimarães e Rodrigues Braga, a este o soneto final dedicando, intitulado Indiferente, que termina com um belo desprendido e calmo terceto":«Sempre ante mim um cárcere pequeno;/ sempre a noite sem mágoas, sem cuidado;/sempre o luar do espírito sereno», e que bem nos pode inspirar a sermos mais luar sereno...
A maior parte dos poemas estão tingidos pelo imenso amor que António Fogaça, um jovem de vinte e poucos anos, sentia e  partilhava em formas e ritmos e em imagens e metáforas valiosos sentimentos e ideias, intuições lidas na natureza e nas almas, força, conhecimento, esperança, expansões de consciência e por fim a certeza da imortalidade, que tal estado afectivo e anímico - o fogo do Amor - lhe provocava e inspirava... 
Oitenta anos depois,  João de Castro Osório, em 1957, na sua Ordenação crítica dos Autores & obras essenciais da Literatura portuguesa, escrevera que, levado precocemente da Terra, António Fogaça foi «um dos mais puros poetas de amor»
Aproximemo-nos então do poema inicial, Prelúdio, onde ele mostra bem a sua sensibilidade profunda para com a natureza, e a sua esperança no amor...
                                 
                                 
E embora por vezes se aproxime da morte, da desilusão, do inconsciente, a sua poesia é na tónica bastante mais o Antero de Quental das Primaveras Românticas, tão incendiadas de amor, do que o da profundidade metafísica, dramática e do não-ser  dos Sonetos, embora em alguns dos sonetos ou poemas se sintam também as influências supra-terrenas e nirvânicas de Antero, tal como no que transcrevemos em seguida, Enquanto ela dorme, onde os sonetos de Antero Num Sonho todo feito incerteza, dedicado à Virgem Santíssima e Na Mão de Deus logo acorrem ou se constelam  à nossa memória associativa verbal e imaginal.
                  
 
"Ó formosa Visão, por quem eu ponho
mais fé que sobre a pedra dos altares;
ó branca irmã dos brancos nenúfares,
alma pura e suave - olhar tristonho;

que sublime entreabrir dum céu risonho
entre ilusões te levará nos ares?
- peito em ondas de espuma como os mares,
que sonho em flor te esquecerá meu sonho?...

Ser que eu venero, ó sol meio escondido,
meu lírio virginal entumecido
de amorosos e íntimos desejos,

Descansa! dorme assim, Visão piedosa,
dorme sempre, que a noite é silenciosa
e eu preciso morrer desfeito em beijos!..."

 Para além da sua grande capacidade de sentir a osmose de correspondências entre o ser humano e a natureza, da qual realçarei a intuição do «peito em ondas de espuma como os mares», António Fogaça, na linha de Jules Michelet e de Antero de Quental, também gerou belos sonetos mais metafísicos, embora ou sempre acerca do amor, ou em amor, admitindo,  uma unidade bipolar primordial do ser humano no seio da Divindade, conforme o soneto intitulado Divino Ser, que nos desafia a aspirarmos e a lutarmos por tal amor verdadeiro, reunificador, divino, tão confundido e caricaturado nas recentes transformações dos conceitos e visões do Amor, dos géneros, da Unidade e da Divindade.

«Este eterno sorriso, este desejo
à flor dos nossos lábios sempre unidos,
assim como juntos os sentidos
fossem cristalizados num só beijo...

este vagos encantos, tanto ensejo...
tanta luz, tanto amor, dias perdidos,
meus olhos e os teus sonhos reflectidos,
teu doce olhar, onde meus sonhos vejo;
tudo me leva a crer, tudo me leva
a jurar pelo céu, pela inocência,
que muito longe deste mundos de Eva,
tiveram numa olímpica vertigem...
aos pés do criador, na mesma essência,
a minha alma e a tua a mesma origem.»

Destaquemos a intuição dos mundos espirituais acima do terreno, a da olímpica vertigem ou queda de tais mundos a este físico e animal, e a de que as almas eram gémeas ou faziam parte da mesma essência criada ou emanada da Divindade, e que tal pode ser reconquistado em vida física, ou já no post-mortem, acerca do qual em vários poemas António Fogaça se afirma confiante, quem sabe se por intuição de que cedo partiria e reencontraria essa alma gémea que poderia ser eventualmente a  T. (ou Teresa) J. F.
Desejamos que se possam ter reencontrado e no Amor avançado!
     Certamente que há muitos outros poemas valiosos, tal como o Eterno Amor, dedicado à misteriosa  T. J. F., cheio de consciência da perenidade unitiva do amor, que começa: «Dizem-me que tu morreste...», com o qual termina a primeira parte do Segundo Livro, datando-o de 17-X-1885, mas para já estes foram uma amostra de convite à sua leitura e memória luminosa..  
 
Já recentemente consegui encontrar um exemplar dos Versos da Mocidade, encadernado,  contendo a assinatura forte do poeta, dedicando-o ao jornal Correio da Manhã. Quem o terá recebido, lido, encadernado, apreciado?   

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