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Certamente a 1ª imagem de S. Vicente em livros impressos: Liber Chronicarum, ou Crónica de Nuremberg, publicada por Anton Koberger, 1493. Continha cerca de 1800 imagens, muitíssimas de santos e santas... |
Embora o culto religioso através de imagens fosse uma das vítimas da revolução ou reforma Protestante do séc. XVI, e muitas obras de arte que adornavam ou enriqueciam as catedrais e igrejas fossem queimadas na Alemanha de então (como nos conta, por exemplo, Erasmo na sua correspondência, testemunhando-a mesmo em Basileia), para não falarmos da destruição de preciosos manuscritos iluminados na Inglaterra dos astutos Henrique VIII e Cromwell (com a dissolução dos Mosteiros entre 1536-1541), todavia as imagens de livros ou gravuras não sofreram tanto essa fúria iconoclasta (expressão que remete para a Querela de Imagens, no mundo bizantino, entre 730 e 843) e continuaram a proporcionar aos crentes e fiéis apoios na visualização e na devoção (bastante menos nas zonas que aderiram à Reforma), pois as imagens são poderosas tanto em mover e comover as pessoas como em aquietá-las e concentrá-las, predispondo-as à contemplação, à paz e até a uma eventual comunhão com os santos (algo também atacado e negado pelos protestantes), pela osmose e unidade que proporcionam ao leitor com o que se representa, seja pessoa, símbolo ou estado consciencial.A
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Apear e despedaçar de imagens de santos numa catedral alemã...
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Face à "opressão" religiosa Protestante, que certamente teve aspectos libertadores em relação à exploração das indulgências do Papado, o Concílio de Trento, a partir de 1545, liderou de Roma as medidas doutrinárias e eclesiais de combate à disseminação do Protestantismo anti-piedoso, gerando um culto de honra ou veneração aos Santos e à Eucaristia, e de adoração a Deus Uno e Trino, através de imagens comedidas, piedosas, sofredoras e austeras, dentro do movimento ideológico da Contra-Reforma, as quais com o tempo e com o estilo Barroco se foram emocionalizando, dulcificando e democratizando, devendo-se realçar os livros de imagens com cenas ou passos da Bíblia e os livros de Emblemas religiosos, que tanta fortuna tiveram desde o séc. XVI, sobretudo nos Países Baixos, Holanda e Bélgica, onde a luta entre protestantes e católicos foi mais intensa, sendo no rescaldo do Concílio de Trento a obra de Ioannes Molanus, De Historia SS Imaginum et Picturarum (1ª edição 1570, 2ª, bem alargada, 1594, e em 1996 o Traité des saintes Images), a primeira e mais importante e convincente defesa do valor das imagens, enquadrando o seu uso correcto e criticando desvios e abusos.
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Emblema acerca da força do Amor. Alciato, Emblemata, Lyon, 1561. |
Se a tradição dos livros de Emblemas provinha sobretudo da Renascença humanista italiana apoiada na sabedoria greco-romana, e os pioneiros e melhores foram os de Alciato (1531), Guillaume de la Pérrière (1539), Claude Paradin (1550), Achille Bochi (1555), e se destinavam à educação tanto dos príncipes e governantes como das pessoas em geral, sendo no fundo obras de moral, de ética, de sabedoria prática e amorosa e até de crítica social, baseadas em adágios, fábulas, ditos e vidas de grandes seres, ora míticos ora filósofos e religiosos, já com os livros de emblemas completamente religiosos procurou-se sobretudo intensificar a conversão, edificação, devoção, coração e ligação religiosa pessoal, em algum tipo deles juntando-se citações de filósofos da antiguidade e, por vezes, até com coragem quando a autoridade aduzida, por exemplo nos comentários das imagens era um pensador e escritor proibido pelo Índice Inquisitorial. O fundo imagético era amplo e podemos observar tanto fontes pagãs, como cristãs, e de alquimia e ciência natural, cm gravadores mais ou menos perfeitos nos seus desenhos inspiradores,
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Uma das muitas edições dos Desejos Piedosos, que mesmo em Portugal foram editados
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Serão sobretudo os jesuítas, desde 1594, com Hyeronimus Natalis, Ioannis Davi, Bartholomaeu Riccius, Thomas Saillius, Anthonius Sucquet, Ioannes Bourgesius e o mais divulgado entre nós Herman Hugo (1588-1629, o autor da mimosa e tão reeditada e glosada Pia Desideria, em 1624), com os beneditinos, franciscanos e dominicanos, os que mais publicarão obras devocionais de imagens ou emblemas religiosos, tanto de cenas dos Evangelhos ou de vidas de santos, como já imaginativos emblemas originais de diálogo entre a alma e o mestre Jesus, ou entre a alma e o seu anjo da Guarda, ou ainda entre a alma e a Divindade. Podemos chamar-lhes Emblemata amorosa sagrada, por ser muito o amor ao divino que elas exalam e até em contraposição ou complementarização com a Emblemata amorosa profana ou humana, desenvolvida sobretudo na Holanda a partir do sábio Daniel Heinsius (1580-1655), que escreve o 1º em 1601, intitulado Quaeris quid sit Amor? Perguntas o que seja o Amor?, e em 1607 publicado já com o título Emblemata amatoria, Emblemas de amor, a que se seguirão vários outros numa certa pedagogia iniciática a uma vida amorosa e marital feliz.
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Página de rosto da obra de Heinsius, de 1601: O cupido é o desejo amoroso para a mulher
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Outros aspectos importantes da evolução das imagens foram a passagem dos Livros de Horas, manuscritos em pergaminho e fabulosamente iluminados, nascidos por volta de 1337, feitos para pouquíssima gente e que continham as orações principais do ciclo litúrgico anual, para os já impressos tipograficamente nos sécs. XV e XVI sobre papel e apenas com as capitulares coloridas (e às vezes desenhadas) à mão.
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S. António, com o Divino no peito ou coração, pintura de um artista sábio. Iluminura em pergaminho do Livro de Horas quinhentista de D. Manuel I. (MNAA) |
A autonomização das imagens religiosas, gravadas toscamente sob pressão em madeira nos finais do séc. XIV e impressas a partir de meados do séc. XV, vai crescer exponencialmente a partir de 1568 com a impressão do Breviário Romano, com o ciclo litúrgico para os religiosos, e os missais pequenos e mimosos, nos séc. XVII e XVIII e sobretudo no XIX, muito destes já dirigidos para as crianças e acolhidos com grande enlevo devocional. É curioso constatarmos socialmente no séc. XIX um forte movimento anti-clerical em simultâneo com o acesso generalizado das crianças à posse e manuseio de fontes de devoção...
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Folha de Livro de Horas, francês, do séc. XVI, capitulares e letrinhas coloridas manualmente. |
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Livrinho da missa de Domingo, para jovens, de finais do séc. XIX.
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A devoção popular através das imagens fora de facto sustentada ou intensificada desde o séc. XIV, mesmo antes da descoberta da tipografia, pelas xilogravuras (impressão sobre madeira e perdurando até ao séc. XVIII) e se no começo do XVI começavam as gravuras finas gravadas sobre cobre, tais as das obras de Dürer, Rembrandt, ou as religiosas em livros dos três irmãos Wierix, será nos séculos XVII e XVIII que tal atingirá uma produção autónoma solta prodigiosa, sobretudo na Flandres mas também em Paris (nomeadamente com o flamengo Thomas de Leu), donde se exportavam para todo o mundo, ora sobre papel ora por vezes em pergaminho, permitindo uma devoção pessoal cristã bem alargada.
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Uma das cenas dos Evangelhos gravada pelo Hyeronimus Wierix: o Anjo e o Graal... |
Por exemplo, em 1657, em Paris, Pierre Mariette I, ao morrer, deixava 100.000 imagens e em 1666 e 1676 os fundos inventariados de duas famílias de gravadores (que findavam) em Anvers chegavam às 80.000 imagens cada uma.
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S. Lúcia, em gravura de Cornelis van Merlen(1654-1723) |
Em Portugal devemos mencionar as gravuras abertas em madeira que adornaram os primeiros livros portugueses, as gravuras sobre metal dos sécs. XVII e XVIII e, finalmente, realçar os registos, gravurinhas religiosas com uma imagem e uma legenda, estampadas tanto em papel como em pano e que se vendiam em igrejas, capelas, confrarias e lojas e que eram consagrados a um santo ou a uma nossa Senhora e que os devotos levavam ora para suas casas ora nos bolsos para protecção e devoção, algumas garantindo 100 dias de indulgência, se cumprissem certas exigência. Muitas delas eram emolduradas em cartão e vidro, com formas especiais, e com belas tarjas coloridas ou douradas. Outras constituíam os escapulários, pendurados ao peito, entre nós muito frequentes os de Nossa Senhora do Carmo, como o que vemos:
Foi a partir do reinado de D. João V que se desenvolveram mais, a partir do apoio dado pelo rei magnânimo à escultura, pintura e gravura, nomeadamente ao ensino na Real Academia de Belas Artes, donde brotaram bons artistas e seus seguidores ou popularizadores, nomeadamente em gravuras de livros (capitulares, vinhetas e de página inteira) e em estampas religiosas.
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Sagrados corações, pela princesa Maria Benedita, filha de D. João V. |
São estes os antecessores dos santinhos, as pequenas pagelas religiosas que começam a surgir nos princípios do séc. XIX e que vão multiplicar-se com os avanços tecnológicos da impressão, sobretudo a partir de 1830, juntando a dado momento as cores e enriquecendo ainda as imagens com finos rendilhados, que tinham começado por ser feitos à mão, a canivete e pintadas manualmente.
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Ad astra per aspera. Para chegarmos aos cimos e céus temos de desenvolver forças... |
Com efeito o século XIX é certamente o da grande explosão de litografias religiosas,
revistas e jornais, para isso contribuindo a revolução industrial e o
crescente alargamento da população que lia e discutia, ou procurava a sua salvação. Longe ia já a
época dos clérigos e de alguns outros intelectuais e quase em cada rua da
grandes capitais europeias havia uma ou mais tipografias, editoras e
livrarias. A censura religiosa dava os seus últimos estertores e tudo
confluía para a democracia, a república, o livre pensamento, a evolução
das consciências. Se na Europa a Revolução Francesa em 1789 atacara
bastante a religião, cedo houvera uma reacção ao laicismo e as imagens
piedosas e os santinhos no séc. XIX vão tomar um grande papel na devoção quotidiana e
festiva das pessoas, já que assinalavam datas importantes das suas
vidas religiosas, desde a 1ª comunhão a retiros, e associando-se a
santos, locais de peregrinação, confrarias e irmandades, etc.
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«Eduardo Marques quer e ardentemente deseja ser participante de todas as orações, que se fazem nesta Associação...» Archiconfraria do Santíssimo e Imaculado Coração, em Louriçal do Campo. |
É muito rica, quase que diríamos fabulosa a energia, a história, as ideias, as doutrinas, os interesses, os afectos que estão presentes em tais imagens e santinhos, reflectindo um mundo de mentalidades em constante mutação mas que mesmo hoje no séc. XXI nos tocam e transmitem encantos e forças, certamente subjectivas e difíceis de caracterizar e muito menos quantificar.
Mas tanto o aspecto estético, como o cultural, o artístico, o tipográfico, o doutrinário, o místico, que se desprendem deles ou os impregnam são históricos, sobretudo quando estão assinados ou com marginália significativa de conselhos e amor, esperança e sabedoria.
Devemos olhar para estas imagens de piedade ou religiosas como devoções passadas, relíquias, documentos mortos, ou devemos antes sorrir e encantar-nos ora com a beleza e sabedoria ora com a ingenuidade, inocência e piedade e, com atenção e discernimento, aprendermos com elas, trabalhando-as com receptividade e criatividade, adaptando-as até aos nossos dias do culto da imagem, ainda que mais virtual ou nos suportes digitais, trazendo as qualidades e potencialidades latentes, duma tradição artística que toca ou aflora o belo, o espiritual, o perene, e que pela consideração ou contemplação mais demorada nos harmoniza e predispõe para a meditação, a oração?
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Na cruz da matéria espiralada, as flores da alma desabrochadas... |
Creio que esta última resposta ou opção é a via sábia e criativa para as contemplarmos, compreendermos ou até recriarmos, sobretudo tendo em conta estarmos cada vez mais numa sociedade de imagens virtuais e frequentemente manipuladoras. E assim abordaremos ou cingiremos algumas dessas imagens piedosas, gravuras, registos e santinhos num próximo texto de Iconologia, o terceiro, acerca do coração, sede do Amor...
1 comentário:
Muitas graças, Pedro pela descrição profunda e elucidativa sobre as imagens religiosas.
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