terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Iconologia, 2º texto. Imagens, Catolicismo e Protestantismo, Livros de Horas, Emblemata, Gravuras, Registos e Santinhos: evolução, instrução, devoção e contemplação.

Certamente a 1ª imagem de S. Vicente em livros impressos: Liber Chronicarum, ou Crónica de Nuremberg, publicada por Anton Koberger, 1493. Continha cerca de 1800 imagens, muitíssimas de santos e santas...
Embora o culto religioso através de imagens fosse uma das vítimas da revolução ou reforma Protestante do séc. XVI, e muitas obras de arte que adornavam ou enriqueciam as catedrais e igrejas fossem queimadas na Alemanha de então (como nos conta, por exemplo, Erasmo na sua correspondência, testemunhando-a mesmo em Basileia), para não falarmos da destruição de preciosos manuscritos iluminados na Inglaterra dos astutos Henrique VIII e Cromwell (com a dissolução dos Mosteiros entre 1536-1541), todavia as imagens de livros ou gravuras não sofreram tanto essa fúria iconoclasta (expressão que remete para a Querela de Imagens, no mundo bizantino, entre 730 e 843) e continuaram a proporcionar aos crentes e fiéis apoios na visualização e na devoção (bastante menos nas zonas que aderiram à Reforma), pois as imagens são poderosas tanto em mover e comover as pessoas como em aquietá-las e concentrá-las, predispondo-as à contemplação, à paz e até a uma eventual comunhão com os santos (algo também atacado e negado pelos protestantes), pela osmose e unidade que proporcionam ao leitor com o que se representa, seja pessoa, símbolo ou estado consciencial.A
Apear e despedaçar de imagens de santos numa catedral alemã...
Face à "opressão" religiosa Protestante, que certamente teve aspectos libertadores em relação à exploração das indulgências do Papado, o Concílio de Trento, a partir de 1545, liderou de Roma as medidas doutrinárias e eclesiais de combate à disseminação do Protestantismo anti-piedoso, gerando um culto de honra ou veneração aos Santos e à Eucaristia, e de adoração a Deus Uno e Trino, através de imagens comedidas, piedosas, sofredoras e austeras, dentro do movimento ideológico da Contra-Reforma, as quais com o tempo e com o estilo Barroco se foram emocionalizando, dulcificando e democratizando, devendo-se realçar os livros de imagens com cenas ou passos da Bíblia e os livros de Emblemas religiosos, que tanta fortuna tiveram desde o séc. XVI, sobretudo nos Países Baixos, Holanda e Bélgica, onde a luta entre protestantes e católicos foi mais intensa, sendo no rescaldo do Concílio de Trento a obra de Ioannes Molanus, De Historia SS Imaginum et Picturarum (1ª edição 1570, 2ª, bem alargada, 1594, e em 1996 o Traité des saintes Images), a primeira e mais importante e convincente defesa do valor das imagens, enquadrando o seu uso correcto e criticando desvios e abusos.
Emblema acerca da força do Amor. Alciato, Emblemata, Lyon, 1561.
Se a tradição dos livros de Emblemas provinha sobretudo da Renascença humanista italiana apoiada na sabedoria greco-romana, e os pioneiros e melhores foram os de Alciato (1531), Guillaume de la Pérrière (1539), Claude Paradin (1550), Achille Bochi (1555), e se destinavam à educação tanto dos príncipes e governantes como das pessoas em geral, sendo no fundo obras de moral, de ética, de sabedoria prática e amorosa e até de crítica social, baseadas em adágios, fábulas, ditos e vidas de grandes seres, ora míticos ora filósofos e religiosos, já com os livros de emblemas completamente religiosos procurou-se sobretudo intensificar a conversão, edificação, devoção, coração e ligação religiosa pessoal, em algum tipo deles juntando-se citações de filósofos da antiguidade e, por vezes, até com coragem quando a autoridade aduzida, por exemplo nos comentários das imagens era um pensador e escritor proibido pelo Índice Inquisitorial. O fundo imagético era amplo e podemos observar tanto fontes pagãs, como cristãs, e de alquimia e ciência natural, cm gravadores mais ou menos perfeitos nos seus desenhos inspiradores,
Uma das muitas edições dos Desejos Piedosos, que mesmo em Portugal foram editados
Serão sobretudo os jesuítas, desde 1594, com Hyeronimus Natalis, Ioannis Davi, Bartholomaeu Riccius, Thomas Saillius, Anthonius Sucquet, Ioannes Bourgesius e o mais divulgado entre nós Herman Hugo (1588-1629, o autor da mimosa e tão reeditada e glosada Pia Desideria, em 1624), com os beneditinos, franciscanos e dominicanos, os que mais publicarão obras devocionais de imagens ou emblemas religiosos, tanto  de cenas dos Evangelhos ou de vidas de santos, como já imaginativos emblemas originais de diálogo entre a alma e o mestre Jesus, ou entre a alma e o seu anjo da Guarda, ou ainda entre a alma e a Divindade. 
Podemos  chamar-lhes Emblemata amorosa sagrada, por ser muito o amor ao divino que elas exalam e até em contraposição ou complementarização com a Emblemata amorosa profana ou humana, desenvolvida sobretudo na Holanda a partir do sábio Daniel Heinsius (1580-1655), que escreve o 1º em 1601, intitulado Quaeris quid sit Amor? Perguntas o que seja o Amor?, e em 1607 publicado já com o título Emblemata amatoria, Emblemas de amor, a que se seguirão vários outros numa certa pedagogia iniciática a uma vida amorosa e marital feliz.
Página de rosto da obra de Heinsius, de 1601: O cupido é o desejo amoroso para a mulher
 Outros aspectos importantes da evolução das imagens  foram a passagem dos Livros de Horas, manuscritos em pergaminho e fabulosamente iluminados, nascidos por volta de 1337, feitos para pouquíssima gente e que continham as orações principais do ciclo litúrgico anual, para os já impressos tipograficamente nos sécs. XV e XVI sobre papel e apenas com as capitulares coloridas (e às vezes desenhadas) à mão.
S. António, com o Divino no peito ou coração, pintura de um artista sábio. Iluminura em pergaminho do Livro de Horas quinhentista de D. Manuel I. (MNAA)
A autonomização das imagens religiosas, gravadas toscamente sob pressão em madeira nos finais do séc. XIV e impressas a partir de meados do séc. XV, vai crescer exponencialmente  a partir de 1568 com a impressão do Breviário Romano, com o ciclo litúrgico para os religiosos, e os missais pequenos e mimosos, nos séc. XVII e XVIII e sobretudo no XIX, muito destes já dirigidos para as crianças e acolhidos com grande enlevo devocional. É curioso constatarmos socialmente no séc. XIX um forte movimento anti-clerical em simultâneo com o acesso generalizado das crianças à posse e manuseio de fontes de devoção...
Folha de Livro de Horas, francês, do séc. XVI, capitulares e letrinhas coloridas manualmente.
Livrinho da missa de Domingo, para jovens, de finais do séc. XIX.
A devoção popular através das imagens fora de facto sustentada ou intensificada desde o séc. XIV, mesmo antes da descoberta da tipografia, pelas xilogravuras (impressão sobre madeira e perdurando até ao séc. XVIII) e se no começo do XVI começavam as gravuras finas gravadas sobre cobre, tais as das obras de Dürer, Rembrandt, ou as religiosas em livros dos três irmãos Wierix, será nos séculos XVII e XVIII que tal atingirá uma produção autónoma solta prodigiosa, sobretudo na Flandres mas também em Paris (nomeadamente com o flamengo Thomas de Leu), donde se exportavam para todo o mundo, ora sobre papel ora por vezes em  pergaminho, permitindo uma devoção pessoal cristã bem alargada. 
Uma das cenas dos Evangelhos gravada pelo Hyeronimus Wierix: o Anjo e o Graal...
Por exemplo, em 1657, em Paris, Pierre Mariette I, ao morrer, deixava 100.000 imagens e em 1666 e 1676 os fundos inventariados de duas famílias de gravadores (que findavam) em Anvers chegavam às 80.000 imagens cada uma.
S. Lúcia, em gravura de Cornelis van Merlen(1654-1723)
 Em Portugal devemos mencionar as gravuras abertas em madeira que adornaram os primeiros livros portugueses, as gravuras sobre metal dos sécs. XVII e XVIII e, finalmente, realçar os registos, gravurinhas religiosas com uma imagem e uma legenda, estampadas tanto em papel como em pano e que se vendiam em igrejas, capelas, confrarias e lojas e que eram consagrados a um santo ou a uma nossa Senhora e que os devotos levavam ora para suas casas ora nos bolsos para protecção e devoção, algumas garantindo 100 dias de indulgência, se cumprissem certas exigência. Muitas delas eram emolduradas em cartão e vidro, com formas especiais, e com belas tarjas coloridas ou douradas.  Outras constituíam os escapulários, pendurados ao peito, entre nós muito frequentes os de Nossa Senhora do Carmo, como o que vemos:
Foi a partir do reinado de D. João V que se desenvolveram mais, a partir do apoio dado pelo rei magnânimo à escultura, pintura e gravura, nomeadamente ao ensino na Real Academia de Belas Artes, donde brotaram bons artistas e seus seguidores ou popularizadores, nomeadamente em gravuras de livros (capitulares, vinhetas e de página inteira) e em estampas religiosas.                
Sagrados corações, pela princesa Maria Benedita, filha de D. João V.
São estes os antecessores dos santinhos, as pequenas pagelas religiosas que começam a surgir nos princípios do séc. XIX e que vão multiplicar-se com os avanços tecnológicos da impressão, sobretudo a partir de 1830, juntando a dado momento as cores e enriquecendo ainda as imagens com finos rendilhados, que tinham começado por ser feitos à mão, a canivete e pintadas manualmente.
Ad astra per aspera. Para chegarmos aos cimos e céus temos de desenvolver forças...
  Com efeito o século XIX é certamente o da grande explosão de litografias religiosas, revistas e jornais, para isso contribuindo a revolução industrial e o crescente alargamento da população que lia e discutia, ou procurava a sua salvação. Longe ia já a época dos clérigos e de alguns outros intelectuais e quase em cada rua da grandes capitais europeias havia uma ou mais tipografias, editoras e livrarias. A censura religiosa dava os seus últimos estertores e tudo confluía para a democracia, a república, o livre pensamento, a evolução das consciências. Se na Europa a Revolução Francesa em 1789 atacara bastante a religião, cedo houvera uma reacção ao laicismo e as imagens  piedosas e os santinhos no séc. XIX vão tomar um grande papel na devoção quotidiana e festiva das pessoas, já que assinalavam datas importantes das suas vidas religiosas, desde a 1ª comunhão a retiros, e associando-se a santos, locais de peregrinação, confrarias e irmandades, etc.
«Eduardo Marques quer e ardentemente deseja ser participante de todas as orações, que se fazem nesta Associação...» Archiconfraria do Santíssimo e Imaculado Coração, em Louriçal do Campo.
       É muito rica, quase que diríamos fabulosa a energia, a história, as ideias, as doutrinas, os interesses, os afectos que estão presentes em tais imagens e santinhos, reflectindo um mundo de mentalidades em constante mutação mas que mesmo hoje no séc. XXI nos tocam e transmitem encantos e forças, certamente subjectivas e difíceis de caracterizar e muito menos quantificar.
Mas tanto o aspecto estético, como o cultural, o artístico, o tipográfico, o doutrinário, o místico, que se desprendem deles ou os impregnam são históricos, sobretudo quando estão assinados ou com marginália significativa de conselhos e amor, esperança e sabedoria.

Devemos olhar para estas imagens de piedade ou religiosas como devoções passadas, relíquias,  documentos mortos, ou devemos antes sorrir e encantar-nos ora com a beleza e sabedoria ora com a ingenuidade, inocência e piedade e, com atenção e discernimento, aprendermos com elas, trabalhando-as com receptividade e  criatividade, adaptando-as até aos nossos dias do culto da imagem, ainda que mais virtual ou nos suportes digitais, trazendo as qualidades e potencialidades latentes, duma tradição artística que toca ou aflora o belo, o espiritual, o perene, e que pela consideração ou contemplação mais demorada nos harmoniza e predispõe para a meditação, a oração?
Na cruz da matéria espiralada, as flores da alma desabrochadas...
Creio que esta última resposta ou opção é a via sábia e criativa para as contemplarmos,  compreendermos ou até recriarmos, sobretudo tendo em conta estarmos  cada vez mais numa sociedade de imagens virtuais e frequentemente manipuladoras. E assim abordaremos ou cingiremos algumas dessas imagens piedosas, gravuras, registos e santinhos num próximo texto de Iconologia, o terceiro, acerca do coração, sede do Amor...

1 comentário:

Maria de Fátima Silva disse...

Muitas graças, Pedro pela descrição profunda e elucidativa sobre as imagens religiosas.