domingo, 10 de fevereiro de 2019

O soneto a "Comunhão" de Antero de Quental: a dos Espíritos, do Bem e do Amor. Do corpo místico da Humanidade.

O soneto Comunhão, de Antero de Quental, como o seu nome indica, remete-nos seja para uma vivência comum interior, o ter, sentir ou viver algo em comum com outro ser ou objecto (tal a hóstia católica e mediatamente Jesus), seja para um alargamento consciencial mais vasto, como está implícito no denominado corpo místico da humanidade ou de Cristo, ou seja, a comunhão com os seres afins: pessoas, antepassados, santas e santos, mestres, anjos e arcanjos e o Ser Divino...
Esta comunhão de sentimentos, ideias e energias entre pessoas, vivas na dimensão física da Terra ou nos mundos subtis, é a manifestação de um veio persistente, tanto Universal como da Tradição Espiritual Portuguesa, a qual implica ou se alarga no conhecimento de haver uma continuidade consciencial de vida após a morte do corpo físico, a qual podemos sentir, comungar  e cultivar enquanto vivemos na Terra, nomeadamente pela acção abnegada, o amor, o despertar consciencial e o intensificar espiritual, tal como quando oramos, no fundo por um modo de viver mais profundo e harmonioso, preparando-nos para entrarmos um dia no além, ou nas dimensões subtis, mais luminosos e conscientes...
                               
Antero de Quental escreveu o soneto Comunhão em Junho de 1884 e envia-o por essa altura para Joaquim Oliveira Martins sem qualquer apresentação. Antero atravessava a sua fase mais serena, a década dourada de Vila Conde (1881-1891), no dizer da sua especialista Ana Maria Almeida Martins, e a sua poesia perdera, como ele confessava, algo do seu ar lúgubre e consciência niilista e começava a lançar-se em voos reveladores da luz vital do panpsiquismo, ou seja, da sua sensibilidade à alma do mundo, à inteligência universal ou Logos, ao magnetismo unificante e à vida divina que tudo permeia e que em todos aspira a manifestar-se mais plenamente.
Estava também no findar da sua missão de partilhar na poesia a sua odisseia nos mundos psíquicos, filosóficos, éticos e indirectamente espirituais em que se embrenhara e, dois anos depois, em 1886, concluiu-a com a publicação da sua edição dos Sonetos Completos, onde este soneto Comunhão vem dedicado a João Lobo de Moura, amigo próximo e que contribuiu para o In-Memoriam de Antero. Oiçamos então Comunhão:
 «Reprimirei meu pranto!... Considera
Quantos, minh'alma, antes de nós vagaram,
Quantos as mãos incertas levantaram
Sob este mesmo céu de luz austera!...

- Luz morta! amarga a própria primavera! -
Mas seus pacientes corações lutaram,
Crentes só por instinto, e se apoiaram
Na obscura e heróica fé, que os retempera...

E sou eu mais do que eles? Igual fado
Me prende à lei de ignotas multidões. -
Seguirei meu caminho confiado,

Entre esses vultos mudos, mas amigos,
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na comunhão dos nossos pais antigos!»

Neste soneto Comunhão, que se relaciona mais intimamente com alguns outros (tal Com os Mortos e o Solemnia Verba), Antero afirma a sua conformidade com a Tradição cultural e espiritual portuguesa, com o sentir-pensar dos antepassados, numa comunhão afectiva com eles. Não é de modo algum um soneto niilista pois sente e partilha a  comunhão com os espíritos que já passaram na Terra e que, vivendo nos mundos espirituais, de modos subtis podem comunicar-se connosco.
Embora algo triste, por se basear apenas numa fé (seja de crença seja de vontade ou querer) heróica e não por ter já uma experiência interior do espírito e mesmo vislumbre da vida no além, o soneto contém aspectos valiosos de serem melhor discernidos.
                               
1º: Antero de Quental desdobra-se entre ele, eu, espírito, animus, vontade, e a sua alma, anima, sensibilidade, e fala-lhe, dando-lhe forças, para que ela não chore diante das incertezas do caminho sob um céu que não se mostra expansivamente luminoso, mas antes austero, pois a luz é  sentida como morta, não acesa, não plena de amor, e sob esta percepção até a época mais juvenil e alegre, a Primavera, se torna ou pode tornar amarga.
Face a tal incompletude de vida, conclui que apenas o instinto da vida e uma crença e fé do coração paciente e até heróico ajudarão as pessoas a avançar no Caminho.
Não deve haver então desânimos ou desalentos mas confiança no nosso querer face ao destino, num percurso e caminho que nos levará em comunhão com os antepassados e amigos ou seja, na comunhão com o que eles acreditaram e demandaram quanto ao Bem, à imortalidade e à Divindade.
Antero de Quental não é muito explícito ou claro quanto aos aspectos obscuros dessa fé comungada, embora os possamos intuir já que ele partilha algo da sua visão do ser humano, e do Eu e do  Caminho para ele, em algumas cartas, tal a escrita uns meses depois a João Machado de Faria e Maia, a propósito da morte da mulher deste seu grande amigo:
                                       
«Muita gente te dirá que te distraias. Eu, pelo contrário, dir-te-ei que te não distraias, mas trates de ser pelo pensamento superior à sorte e à dor. Mas estará o teu pensamento no verdadeiro caminho, e compreenderás tu plenamente que a realidade é mera aparência e só existe verdadeiramente como símbolo e veículo da vida moral? 
Se sim, fico descansado a teu respeito. A dor será para ti transparente e luminosa, não opaca e soturna como o é para os homens só naturais; e o dever, perdendo o que para esses tem de amargo e como que falsa e inexpressivo, aparecer-te-á como o mel mais fino e a essência da vida moral. Nele encontrarás mais do que consolações: serenidade e plenitude - quanta cabe em limites humanos. A nossa vida, meu João, verdadeiramente, é só a vida da nossa alma, do misterioso e sublime eu que somos no fundo: ora esse eu ou essa alma tem a sua esfera na região do impessoal: o seu mundo é o da abnegação, da pureza, da paciência, do contentamento: na renúncia do indivíduo natural e de tudo quanto o limita, algema e obscurece é que consiste a sua misteriosa individualidade.»
Este conselho de Antero tem grande aplicação no caminho espiritual, pois constantemente nos deixamos de identificar com o eu superficial e entramos em desejos egóicos, em sentir-nos frustrados por isto ou por aquilo, quando devemos trilhar essa passagem da alma desnorteada ou dispersa para a unificada em si mesma, como individualidade, no fundo, o espírito. E este alinhamento e sintonização concretiza-se constantemente pela auto-consciência e o discernimento se o que vamos fazer é apenas da instintividade natural ou se nos religa ao Bem, ao espírito.
 A causa da paciência e da abnegação  nomeadas neste  soneto Comunhão é porque os vultos da comunhão ou inspiração são mudos,  Antero não consegue ouvi-los ou no fundo intuí-los. Afirma porém que avança confiante na "comunhão dos nossos pais antigos", o que pode ser interpretado em dois sentidos: avança comungando no que os seus amigos e antepassados ou pais acreditaram. Ou que avança comungando com eles, sentindo mesmo tal corpo ou plano  místico da Humanidade, chamado na igreja Católica, também Comunhão do Santos e Santas, hoje denominado ainda como o Emaranhamento das Mentes, ou Campo Unificado de consciência energia informação, algo sobre o qual Antero de Quental especulou a partir das suas experiências, como podemos observar na sua carta a Carlos Cirilo de Machado,  e que considerava Antero como o mestre da época.
Sobre o que ele entendia pela fé e a comunhão dos antigos,  encontramos várias afirmações na sua obra que reflectem a sua crença ou mesmo conhecimento intuitivo de que a comunhão das almas amigas perdura para além da morte do corpo físico, tal como a comunhão do Bem e do Amor, este último caso bem assinalado no soneto Solemnia Verba, no qual o mesmo diálogo socrático ou maiêutico consigo próprio na sua pluridimensionalidade, aí iniciado com: "Disse ao meu coração", conclui ou tem a síntese dialéctica final com o: "Desta altura vejo o Amor!" que poderemos correlacionar na Divina Comédia com a passagem do Purgatório ao Paraíso.
Um dos últimos sonetos da sua vida, Com os Mortos, de 1885, esclarece-nos ainda mais e de uma forma bem afirmativa e bela:
À interrogação inicial «Os que amei, onde estão?» e ao espanto de ver «espuma lívida, em cachões, E entre ela, aqui e ali, vultos submersos», tenta e acontece a meditação, da qual confessa a dificuldade, que é dele e de todos nós, "se consigo Fechar os olhos" pela qual há o sentir interior  iluminante, clarificante, intuitivo:

«Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.»

Este terceto final é dos mais belos e sublimes de Antero, e com ele elevamo-nos bem alto no conceito anteriano de comunhão, que como vimos foi bastante dedilhado pelo filósofo e poeta,  lembrando que estes versos, como homenagem ou em comunhão com ele, podem ser mesmo decorados e repetidos como uma oração ou mantra, por nós, a sós, em grupo ou com o ser mais amado, ou mesmo em uníssono com a alma peregrina de Antero de Quental:

«Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem

1 comentário:

Anónimo disse...

🌻