quarta-feira, 21 de março de 2018

"A Conferência dos Pássaros", de Attar, desenhada e pintada por José Pinto Antunes. E sua hermenêutica espiritual por Pedro Teixeira da Mota.

O belo poema metafórico de Attar, aliás Farïd al-dîn 'Attâr (1142-1221, em Nichapour, no Khorassan, Irão, e que foi um perfumador, ervanário, curador), intitulado Mantiq al-Tayr, o Colóquio ou Linguagem das Aves, ou ainda Conferência dos Pássaros, extenso nos seus mais de quatro mil e seiscentos versos, foi de todas as obras de Attar a que teve mais sucesso ao longo dos séculos, conhecendo-se algumas versões em diferentes línguas desde esses remotos tempos. No Ocidente, em França, houve traduções em 1819 e 1863, e no século XX e XXI alargaram-se.
Corre entre nós uma das versões, mas abreviada e má, da
obra, sob o nome de Conferência dos Pássaros, editada pela Cultrix, sendo uma tradução da versão inglesa de C. S. Nott, que traduziu da tradução francesa de Garcin de Tassy, de 1863, realizando nos USA em 1954 tal feito de retalhar e alterar substancialmente, retirando muito da espiritualidade da obra. Uma lástima. Hoje já há outras versões em português, de melhor qualidade.
Depois de ter sido um boticário de perfumes e ervas, impressionado pelo desprendimento e comando do corpo e alma de um dervishe, Attar foi iniciado na via espiritual pelo sheik Mudj al-din, de Bagdad, e da sua demanda restam-nos cerca de uma dúzia de obras das quais as mais valiosas são o Pand-Nama, Livro dos Conselhos, Asrar-Nama, O Livro dos Segredos (a sua última obra, e da qual há uma tradução comentada excelente de Christiane Tortel), Elahi-Nama, o Livro Divino e o Tadhkarat al-Auliya, Memórias dos Santos, esta contendo histórias e ensinamentos de 142 sufis do Irão, do Egipto e da Arábia, entre os quais Jafar Sadiq, a iraquiana Rabia Basri, Junayd, Hazrat Abdul Jilani, Mansur al-Hallaj, todos eles verdadeiramente entregues ardentemente ao Amor Divino.
O grande especialista de mística islâmica e persa Louis de Massignon foi um estudioso e admirador de Attar, e realçou
a afirmação do famoso Jalâl-ud dîn Rûmî: dois séculos depois da desencarnação de al-Hallâj a sua luz (nour), ou alma espiritual, manifestara-se em Farîd 'Attar, tornando-se o seu mestre espiritual.  
Não sabemos ao certo se assim terá sido, mas a comunhão dos amigos de Deus, a comunidade dos santos ou sufis, a auliya, é conhecida, é real, todos os que meditam mais profunda e intensamente vivenciam-na de um modo ou outro por graça, pelo que naturalmente Attar foi abençoado pelo Alto e o Divino, pelos sufis, sendo Mansur al-Hallaj, um mártir no Islão da afirmação da não-dualidade entre o humano e o divino, certamente um potencial inspirador dele e, quem sabe, o seu mestre ou guia invisível. Rumi, que segundo algumas versões ainda se teria encontrado com Attar, quarenta e cinco anos mais velho que ele, diria ainda que Attar era a sua alma íntima, tal como Sana'i o seu olho espiritual. 
Attar, na Conferência ou Diálogo dos Pássaros, agora entre nós inspirando o pintor José Pinto Antunes [e muita luz e amor para ele, prematuramente falecido no entretanto] em a ilustrá-la em mais de cem desenhos, compila numerosas histórias tradicionais e acrescenta algumas novas, adicionando sobretudo comentários de ordem moral e espiritual, e propondo a tradicional ascese e renúncia ao mundo e aos seus prazeres e seres (uma metodologia talvez hoje discutível quando se expressa de modos algo humanamente egoístas: «Enquanto não morrermos para nós próprios e não formos indiferentes às criaturas, a nossa alma não estará livre. Um morto vale mais que aquele que não está inteiramente morto às criaturas, pois ele não poderá ser admitido para o outro lado da cortina»), em troca ou em prol do amor ardente pelo Divino, o único que merece e perdura.
O amor a Deus (bhakti, prema, na tradição indiana) é então o objectivo e a necessidade máxima e muitos exemplos são dados de amor extraordinários ou intensíssimos entre os seres e pares humanos e como daí podemos tirar impulsos para a nossa 
caminhada de amor para Deus, neste século XXI cada vez menos propenso a amores devocionais como outrora flamejaram no Cristianismo e no Islão medievais ou mesmo posteriores.
Entre as partes mais fracas, ao olhar do séc. XXI, está a ideia da superioridade do Islão, sobretudo sobre 
o cristianismo e também o hinduísmo, pois adoram ídolos, havendo portanto algumas histórias divertidas mas urdidas nesse sentido reprovador delas... 
Há histórias belas, há reflexões valiosas, e seria bom discernirmos melhor o que veio da tradição sufi, o que ele próprio gerou, ou mesmo o que al-Hallaj lhe inspirou, embora a parte final sendo a mais unitiva, deva ser a mais relacionável com ele e a que merecerá maior meditação e aprofundamento, ao tratar do nosso encontro tanto com nós próprios espíritos como com a Divindade e a Unidade.
A Conferência dos Pássaros congrega então milhares de aves na demanda de acesso ao misterioso ser, Simurgh, a qual as vai levar, com dúvidas e diálogos esclarecedores, por um caminho de individuação e iniciação longo e árduo (per aspera ad astra) até Simurgh, onde apenas chegam trinta delas, as que acreditaram na mestra poupa e nelas próprias e mantiveram a chama da aspiração e do Amor unitivo mais fortemente. 
Simurgh em Portugal
 José Pinto Antunes, apreciando esta obra, decidiu inspirar-se nela e desenhá-la em aguarelas e pinturas a óleo, e o seu quadro de Simurgh é particularmente excelente, e em boa hora o Instituto Superior de Psicologia Aplicada resolveu acolher a exposição na sua livraria, em parceria com a Galeria Hélder Alfaiate, pois não poderia haver melhor local que a galeria de uma livraria ligada à Psicologia, o Logos da Alma, para expor e evocar a legendária obra de Attar. 
 Quem guia e aconselha as milhares de aves na sua demanda de individuação ou realização é então a poupa, com as suas características quase de realeza («tinha no peito o sinal que testemunhava a entrada na via espiritual e sobre a cabeça a coroa da verdade. Na verdade, entrara com inteligência na via espiritual, discernia o bem e o mal»), e vai narrando-lhes histórias da tradição sufi, cheias de psicologia e moral, ética, ascetismo e discernimento, que as ajudarão a libertarem-se das ignorâncias, ilusões e armadilhas dos seus nafs ou instintos e do mundo, e a chegarem ao distante mas também íntimo Simurgh.
 Estamos então numa peregrinação, numa demanda interior de desidentificações, qualidades e realizações vivas, na qual a paciência, o desprendimento, a determinação, a luz, a verdade, a unidade se vão desvendando. E assim cada uma das aves irá expondo e vendo clarificadas as suas especificidades interiores e dificuldades. De igual modo, nesse sentido, quem as desenhar, terá de exercer quase a visão de um Hieronimus Bosh para discernir quando uma delas leva dentro de si um cão ou uma serpente, quais estão mais divididas e atadas, e quais espelham mais as limitações dos humanos e as suas lutas e aspirações ou o amor, a liberdade, a unidade.
O caminho apresentado por Attar é simples e puro, ou não fosse uma das possíveis etimologias de sufi a lã branca trajada por tais ascetas e místicos: é o amor de Deus, da Fonte primordial e Unidade subjacente a tudo, o mais importante pois é o único que dura sempre e é a destinação ou meta final; por isso, a Ele devemos aspirar, não nos deixando envolver demasiado no mundo e nas suas pessoas e actividades, desprendendo-nos delas e dos nossos desejos e egos e unificando as nossas forças anímicas numa só vontade de reintegração ou união divina, sem dúvida uma tarefa hercúlea, já então mas sobretudo no séc. XXI. 
Nestes sentidos das múltiplas forças que nos constituem, o José Pinto Antunes também capta e em finas sobreposições desenha nas aves e nas histórias envoltas ou em simbioses com os elementos da natureza, com as condições ambientais, com os mistérios dos mundos anímicos subtis, no espaço imenso e infinito da peregrinação na manifestação divina da vida, o qual no poema é atravessado em sete vales, estágios ou fases do Caminho das almas e aves, denominados sucessivamente Talab, o vale da Demanda, Eshq, o do Amor, Marifat, o da Gnose ou Conhecimento espiritual, Istighnah, o do desprendimento, Tawhid,  conhecimento da Unidade, Hayrat, admiração, Faqr, desnudamento e, finalmente, Fana, extinção ou transmutação do ego e união com a Divindade ou a Unidade Primordial.
Em muitos dos desenhos (e na sua origem foram 120), mais forte ou mais suavemente traçados e aguarelados, ou então pintados mais carnal ou intensamente nos óleos, sentimos que eles são janelas
para tais vales e estados, comuns a outras tradições embora com outros nomes, das almas-aves do poema e de nós, que os peregrinamos, vivenciamos e neles ao mais profundo ou elevado aspiramos. 
Talvez se tivermos um bom discernimento, ou mesmo uma boa intuição, consigamos chegar a descobrir que ave, vale ou estado anímico está representado nos sucessivos desenhos de José Pinto Antunes, interrogando, pintando e glosando com Attar a maravilhosa peregrinação dialogante humana de auto-realização, rumo ao mistério supremo, do fim que é também o princípio, pois o Simurgh procurado é a Fonte da qual somos um espelho, uma ave, um canto, uma parte, metáforas do mistério da nossa demanda e participação histórica na Unidade Divina e Cósmica, tão vivida e proposta pela tradição islâmica sufi e persa e hoje tão potencialmente actual, por exemplo, na noção em comprovação científica do campo unificado de energia-informação-Consciência.
Fiquemo-nos com alguns dos melhores ensinamentos, os dois primeiros relativos à respiração consciente psico-espiritual:
Fim do cap. XXV: «Cada uma das respirações que medem a tua existência é uma pérola e cada um dos teus átomos é um guia para ti em direcção a Deus. Os benefícios deste teu Amigo cobrem-te da cabeça aos pés; eles manifestam-se visível e maravilhosamente em ti.»
Fim do cap. XXIX: «Aquele a quem os seus desejos subjugam, esse não consegue respirar um instante sequer em companhia da sua alma».
O que a mestra poupa, no começo do cap. XXXV, transmite a uma ave interrogante é muito prático e eficaz, e ilustra a prática comum a várias tradições religiosas e espirituais da oração ou lembrança persistente ou repetitiva de um nome, mantra, dikr ou frase :
«Enquanto viveres, respondeu a popa, está contente por te lembrares (dikr) reconhecidamente de Deus, e evita as conversas e palavras superficiais. Se a tua alma possuir este contentamento, preocupações e tristezas esfumar-se-ão. Tal é, nos dois mundos do visível e do invisível, o que é mais próprio para o contentamento dos seres humanos. É por ele que a abóbada celestial está em movimento. Permanece contente na Divindade e move-te como o Sol por amor a Ela».
Ou a bela história narrada nesse mesmo capítulo: «Um homem sábio dizia: Há setenta anos que estou constantemente em êxtase de contentamento e de felicidade e, neste estado, participo na majestade soberana e uno-me mesmo à Divindade. Quanto a ti, que te preocupas em encontrar as faltas ou erros dos outros, como te alegrarás da beleza do mundo invisível? Se procuras as faltas com um olhar perscrutador, como poderás jamais ver as coisas invisíveis? Desembaraça-te primeiro de tuas falhas para que sejas verdadeiramente rei pelas coisas invisíveis. Separas em dois um cabelo para veres as faltas dos outros, mas és cego para as tuas próprias faltas. Ocupa-te dos teus próprios defeitos: então, mesmo que tenhas obscuridades ou culpas, serás agraciado por Deus…»
Acerca do vale da Gnose, do conhecimento esotérico, Ma'rifa, ou Irfan, cap. XL, Attar aconselha-nos a comermos e a dormirmos menos e a despertarmos mais:
«Se te privares de dormir durante a noite e se não comeres durante o dia, poderás encontrar o que procuras. Procura até que te percas na procura abstendo-te de comer durante o dia e de dormir durante a noite. Não durmas, se estás à procura das coisas espirituais; mas se contentas de falar delas, então o sono convém-te. Guarda bem o caminho do coração, pois há ladrões à volta. O caminho está cercado por ladrões do coração, preserva portanto a joia do teu coração destes bandidos.
Quanto tiveres a virtude de saberes guardar o teu coração, o teu amor pela ciência espiritual manifestar-se-á prontamente. Este conhecimento virá indubitavelmente à pessoas que vigia no meio do oceano do sangue do seu coração. Aquele que suportou longamente a vigília tem o seu coração desperto quando se aproxima de Deus. Já que é necessário privar-se do sono para ter o coração desperto, dorme então pouco a fim de conservares a fidelidade do coração.Tu deves repetir a ti mesmo, quando a tua existência se estilhaçar: «Aquele que se perde no Oceano dos seres não deve deixar escapar um gemido de queixa. Os amantes verdadeiros partiram todos para o mergulho do sono inebriados de amor. Bate na cabeça, pois os seres excelentes fizeram o que tinham a fazer. Aquele que realmente tiver o gosto do amor espiritual possui na sua mão a chave dos dois mundos».
E terminemos com o capítulo final, estimulando-nos a não temermos a misteriosa, fana, extinção, e com o começo do seu epílogo, em que se despede de nós:
«Quando o sol da pobreza ou nudez espiritual brilhou sobre mim, ele queimou os dois mundos mais facilmente que se fosse um grão de milho painço [millet, cereal muito rico que se vende bom e biológico na Miosótis, em Lisboa). Quando vi os raios desse Sol, não fiquei isolado, a gota de água retornou ao Oceano.
Ainda que no meu jogo eu por vezes tenha ganho e outras perdido,  acabei
todavia por deitar tudo na água do Oceano. Fui apagado, desapareci; nada restou de mim mesmo; não era mais do que uma sombra, não restou de mim o mínimo átomo. Era uma gota perdida no oceano do mistério e actualmente nem sequer encontro esta gota. Ainda que não seja dado a toda a gente desaparecer assim, pude-me perder na aniquilação, com muitos outros que foram como eu. Há alguém no mundo, do peixe à lua, que não deseje aqui perder-se?
Epílogo, começo:
«Ó tu que avanças no caminho espiritual, não leias o meu livro
como uma produção poética ou de magia, mas lê-a como se relacionando com o amor espiritual, e julga, por uma só sensação do teu amor, o que podem ser as minhas cem dores amorosas. Lançará até à meta a bola da felicidade, quem ler este livro animado deste amor. Deixa lá a abstinência e a vulgaridade; aqui só é preciso o amor, sim, o amor e a renúncia. Quem possui este amor, não tem outro remédio que renunciar à sua alma» e avançar no amor para ver ou encontrar Simurgh.
  Perguntada a mestra poupa, por uma ave, o que se podia oferecer, ou com o que se deveria chegar, ao divino Simurgh, respondeu ela: «Leva o ardor da alma e o esforço do espírito, porque ninguém deve dar outra coisa.»

3 comentários:

Anónimo disse...

Excelente!

Anónimo disse...

Parabéns Pedro

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças, estimados amigos nas brumas das distâncias. Revendo o artigo hoje, dei-me conta de vossos estímulos. Graças. Partilhá-lo-ei levemente melhorado para a página "Dara Shikoh" no tão censurador Facebook.