domingo, 14 de janeiro de 2018

O "Soneto para Antero de Quental" de Leonard S. Downes. Comentado por Pedro Teixeira da Mota

Tendo estado em Portugal, o inglês Leonard S. Downes, em 1947, deu à luz em Lisboa um livro, Portuguese Poems and translations, com  dezanove traduções, nas quais inclui dois sonetos, Tormento do Ideal e Sepultura Romântica   de Antero de Quental (e entre outros dois de Fernando Pessoa e quatro de Campos Figueiredo, então vivo), e quinze poemas originais seus, um deles dedicado ao genial poeta filósofo, tentando cingir a essência da sua vida, obra e morte.
Intitulado Soneto para Antero de Quental, leva uma citação de Balzac em epígrafe: «Cada suicídio é um poema sublime de melancolia», algo que podemos compreender até para Antero, pois entre desilusão, cansaço e frustração ou melancolia, tristeza e depressão podemos certamente considerar estados de alma próximos ou possíveis dos que rondavam a posse do eu decisório de Antero de Quental, nomeadamente nos dias, horas e momentos que antecederam o fim abrupto e voluntário da vida no corpo físico, já bastante desgastado. Todavia, tal sublime teórico e poético, elogiado por Balzac nem sempre o é e pode também esvair-se no estertor corporal do corpo e, quem sabe, da alma em transe... 
Avancemos antes para a alma espiritual e a demanda  imortal e perene de Antero...
Eis como Antero de Quental é cantado por Leonard S. Downes,  na tradução minha: 
 
«Não encontrou o Deus desconhecido que procurava;
 O puro Ideal escapou-lhe até ao fim,
 E ousado a pugnar pela Verdade, ardente a defender 
 Liberdade e Justiça, ele tombou onde combatera.

Rebelde a tudo que não fosse ensinado pela Beleza
Serviu a causa dela em cada uma das linhas que escreveu;
Apenas às suas leis  se dobrou o seu  coração
Para prestar homenagem na sua obra e pensamento.

Servindo o Belo, ele nunca soube
Que Beleza é Verdade, que ele encontrara a Verdade,
Mas procurou o seu Deus desconhecido até ao seu último sopro.

E apenas encontrou o Ideal no seu peito
Naquele altaneiro poema que finda a sua demanda sem esperança,
A melancólica épica da sua morte».

O soneto, que  tenta cingir a alma de Antero na sua obra e vida, é belo e profundo;  e como na visão de Leonard destacam-se algumas linhas de força tentaremos nós agora seus leitores clarificá-las um pouco mais.
Inegavelmente, Antero não conseguiu encontrar Deus ou, como é dito, «o seu Deus desconhecido», qualquer que seja o sentido intencionado por Leonard para o "desconhecido"...
Já quanto ao ideal puro, ou melhor diríamos os ideais puros, poderemos admitir que em alguns momentos da sua vida ele tenha tido uma boa realização deles, seja vivendo-os, seja compreendendo-os, meditando-os, sentindo-os, visionando-os.  
Isto poderá ter sucedido, por exemplo, nos seus tempos de estudante, nos seus diálogos com amigos no Cenáculo lisboeta e ao longo da vida, ou ainda, quando retirado na sua tebaida de Vila do Conde, aprofundou a sua cosmovisão e deu a forma definitiva à sua obra poética, na qual o ideal da demanda da Verdade se encontra bem expresso, ainda que certamente com bastantes traços de não conseguimento da plenitude a que ansiava.
Admitamos o conteúdo do quarteto inicial como verdadeiro: não conseguiu adorar e amar, ver e sentir o seu Deus, talvez até porque não conhecera nem praticara adequada ou persistentemente a meditação, a mística (que conhecia e vivenciara, tanto mais que tinha em si bem tal dimensão) e a gnose iniciática, ficando então na luta ardorosa pelos seus ideais de Amor e Harmonia, Liberdade e Justiça, Verdade e Bem, os quais expressou mais na poesia, no ensaio e nos diálogos e cartas aos amigos do que numa profissão ou apostolado, como ao princípio algo se empenhara pelo socialismo nascente, e que de novo, em 1891, no último ano da sua vida exerceu, saltando para a arena da acção cívica e política, com os estudantes e intelectuais do Porto, em defesa de Portugal perante o Ultimato do imperialismo inglês.
Poderemos ainda observar que ele tombar, cair, falecer no terreno da justiça e da liberdade onde combatera, como escreve Leonard, deve referir-se a desilusão em relação à última experiência na Liga Patriótica do Norte, já que a que terá sofrido nos últimos dias quando teve de submeter-se à perda do contacto com as suas duas pupilas ou filhas adoptivas, poderia ser apenas uma separação transitória...
O segundo quarteto põe-nos diante de um Antero como artista da perfeição estética e sacerdote da Beleza, o que certamente foi, embora tenha sido sempre bastante exigente no aprofundamento dela rumo à  Ideia, ao Ideal, à Verdade,  pensando e escrevendo muitas ideias e páginas por tais anseios exigentes, que apesar disso sofreram algumas destruições (tais o Programa dos Trabalhos para as Gerações Novas, ou a sua Teoria da Religião) por perfeccionismos sobretudo formais e ideológicos, ou por aguda consciência das suas limitações.
No 1º terceto Leonard quer fazer-nos  pensar que a Beleza em si é a Verdade, algo que nos parece exagerado, pois frequentemente ela é apenas, uma aparência, uma ilusão, como também parece errado a afirmação que Antero nessa Beleza já encontrara a Verdade mas que não se dera conta. A última obra de Antero, as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, é um testamento de busca muito conseguida da verdade ao nível da filosofia, bem além da Beleza que constitui apenas um dos aspectos da típica tríade do Bem, do Belo e do Bom.
E quando conclui o terceiro verso, de novo com o "Deus desconhecido" que procurou e não encontrou, Leonard S. Downes parece estar mais quase numa mera linha estética: Antero bastaria contentar-se com a Beleza, pois isso é a Verdade, em vez de andar na busca de Deus, que Leonard acentua "de Deus desconhecido", na qual esteve até ao fim da sua vida.
É bem difícil equacionarmos, visionarmos e sentirmos que tipo de visão e demanda anímica Antero de Quental tinha nos últimos tempos, mas pelos relatos que temos ou mesmo por algumas cartas, ele não estava já numa busca muito forte de sentir ou ver Deus, ou de ter mais união com Deus, ainda que certamente qualidades divinas como a paz e a luz fossem almejadas e por vezes sentidas.
Não parece que a capacidade mística de amor e de aspiração a Deus pessoal  (ou seja, ao que de Deus  ele poderia receber) estivesse muito viva e a arder forte em Antero após tantos sofrimentos psico-somáticos e um consequente desgaste anímico.
Também não sabemos se ele orava a Deus, se meditava em Deus. em momentos específicos, ainda que certamente no seu dia a dia algo do Ideal e do sagrado perpassava e vibrava nele e em certos momentos mais contemplativos alguns vislumbres do infinito o pudessem bafejar, ou alguns segundos do som e vibração do silêncio o iluminassem e orientassem, ou alguma alegria do coração espiritual aflorasse...
Parece-nos talvez ainda assim que a Divindade era para Antero um Absoluto benigno, mas impessoal e que nele quando morresse reencontraria a unidade e a paz. 
E sabemos que as visões da Unidade absoluta, seja na sua faceta do Advaita Vedanta indiano, em que o Absoluto é a Consciência única e é a Divindade, seja na do Budismo, em que o Absoluto é a extinção do eu e dos desejos, o nirvana, ou ainda um estado de Consciência cósmica supra-humana, não facilitam muito a mística da aproximação devocional, a qual implica  um Deus, pessoal, exterior-interior, ao qual se reza e pede, oferece e ama.
No último terceto, Leonard pensa que Antero foi fiel ao seu ideal e que morreu por ele ou nele, mesmo que suicidando-se. O "altaneiro ou fogoso" poema com que termina a sua demanda poderia ser o Na Mão de Deus, com o qual Antero encerra a sua compilação dos Sonetos, mas o soneto é tão humilde e devoto que não deve ser a ele que  Leonard alude.
Fica-nos então a dúvida se ele entende isso pela epígrafe inicial do escritor e ocultista francês Balzac, ou seja, a morte trágica pelo suicídio é a sublimidade poética da melancolia, e o coração de Antero altaneiro, orgulhoso ou fogoso (a dificuldade de traduzir o "proud"...).
Melancolia e não tristeza, pois esta palavra refere mais um sentimento e tem bastante menos riqueza e tradição que a Melancolia, tão  vivenciada e sondada ao longo dos séculos (a acédia, referida pelos eremitas e monges cristãos), por vezes contudo vista talvez mais como saudade impotente do Divino ou do Amor, e sabiamente coroada na gravura de Albrecht Dürer.
Mas também podemos ver que Leonard está de novo a pôr em causa  como inútil, impossível ou sem esperança a demanda  que Antero de Quental teria assumido ao longo da vida, em busca da Verdade e do que poderia conhecer de Deus, e que morreu nesse ideal sublimemente mas tragicamente, e até, segundo Leonard,  enganado, pois na Beleza teria podido encontrar a Verdade...
Certamente que descontrairmos um pouco de uma constante inquietação e demanda metafísica ou espiritual é importante e que sabermos apreciar a Beleza do mundo e dos seres harmoniza-nos muito, mas ainda assim a procura de Deus em nós, e por vivência interior, é bem importante senão mesmo essencial, sabendo-se ainda por cima que a nossa passagem na terra é breve e que o mundo psico-espiritual nos aguarda com mais ou menos luz, algo que Antero por mais de uma vez referiu, nomeadamente com os sonetos em que fala dos seus mortos.
Este poema de Leonard Downes, traduzido por mim e acompanhado das imagens e destas considerações rápidas, constitui apenas um contributo para sondarmos  a nossa demanda na vida, o que estamos a valorizar mais, o que devemos agradecer e cultivar melhor...
Ou ainda, se estamos a trabalhar bem, vencendo as melancolias e indecisões, e dando algum tempo à invocação do que da Divindade podemos conhecer e receber, adorar e amar e, logo, no Logos ou Corpo místico da Humanidade (ou, como se diz modernamente, Campo unificado de energia informação), comungar, irradiar e partilhar...
                                  LUX - AMOR - PAX 

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