quarta-feira, 26 de julho de 2017

Biografia de Verdi, por Higino da Costa Paulino, na "Gazeta Musical", dirigida com Josefine Amann.

     No primeiro número do 2º ano da Gazeta Musical, Jornal Illustrado Theatros, Musica e Bellas Artes, saído a 1 de Março de 1885, em Lisboa, o seu director literário Higino Augusto Mascarenhas Costa Paulino dá à luz uma  biografia  de Giuseppe Verdi, na qual manifesta o seu apurado conhecimento e sentido entusiasmo pelo genial compositor italiano. A acompanhá-la, encontramos um desenho original de Columbano, amigo de Higino, retratando-o. 
Porque a Gazeta Musical e o seu conteúdo estão quase desconhecidos, porque Higino Costa Paulino foi o meu bisavô materno e está quase ausente do Grande Livro dos Livros que é de certo modo hoje a Web, resolvi transcrever algumas das biografias que ele, além de outros textos, foi dando à luz nesta, hoje quase perdida, Gazeta Musical que se publicou durante dois anos, tendo como directora musical a sua amiga e notável artista Joséfine Amann, sendo a redacção e administração bem no centro de Lisboa, no Largo do Loreto nº 1, e tendo como sucursais em Lisboa Lambertini & Irmão, e E. Amann, e agências no Porto, a de Pastor & Cª e no Rio de Janeiro, a de Laemmert & C.ª. A tiragem da revista é-nos desconhecida, embora haja exemplares na Biblioteca Nacional, em Lisboa  e na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
Segue-se a transcrição da biografia de Giuseppe Verdi:
                                           JOSÉ VERDI
«Pertence à florescente Itália, à pátria das recordações imorredoiras, a essa região admirável, balizada pelos Alpes  e Apeninos, onde tudo é belo e grandioso, o insigne Verdi. Aquele ubérrimo seio da natureza, onde as flores, os frutos, as florestas, os mármores, a ciência e a arte se reproduzem com uma fertilidade extraordinária, espalhando por toda a parte a fama da sua opulência, havia inevitavelmente de servir também de berço ao grande maestro. É este um dos poucos que em vida pode contemplar de perto a celebridade, honra apetecível, que quase sempre, só tarde, muito tarde, vem aureolar a fronte dos seus dilectos, quando eles reduzidos a pó não sentem já os eflúvios divinos que incitam o ser humano aos mais arrojados empreendimentos. Verdi teve a suprema ventura de conhecer a recompensa tributada ao seu nome e ao seu talento.
A terra que serviu de pátria a poetas como Dante, Petrarca, Ariosto, Tasso, Metastasio e Altieri, a prosadores como Boccacio, Davila, Guichardin, a pintores como Raphael, Vinci, Ticiano, Corregio, Tintoreto, Salvador Rosa, a escultores como Miguel Angelo, Cellini e Canova, a compositores como Popora, Pergolesi, Rossini e Bellini, a físicos como Galileu e Torricelli e que permanece através dos séculos como principal viveiro desses rouxinóis que extasiam o mundo inteiro com a beleza do seu canto, devia ser também a pátria de Verdi, o maestro que, se não é o primeiro  entre os mais celebrados compositores contemporâneos, se não é o que mais tem escrito, é inquestionavelmente  o que maior aplauso tem conseguido para as suas obras, que percorrem o mundo com a particularidade excepcional de serem compreendidas por todos que as escutam.
Sobem ao número de vinte e seis as obras escritas por José Verdi, e entre elas nem uma só há que não fosse acolhida com entusiasmo, vinculando a maioria um traço tão luminoso na cena musical, que certamente jamais se desvanecerá do horizonte resplendente que buscou.
Eis as óperas, mencionadas pelas competentes datas em que foram representadas:
Milão, La Scala. séx. XIX.
Oberto, comte di S. Bonifacio, Milão, Scala, 1839; Un giorno di regno, Milão, Scala, 1840; Nabucco, Milão, Scala, 1842 [muito fabulosa, a que obteve o 1º grande sucesso: um extrato: https://youtu.be/Cyv2SQIggCE]; I Lombardi, Milão, Scala, 1843; Ernani, Veneza, Fenice, 1844; I due Foscari, Roma, Argentina, 1844; Giovanna d'Arco, Milão, Scala, 1845; Alzira, Nápoles, S. Carlos, 1845; Attila, Veneza, Fenice; Macbeth, Florença, Pergola, 1847; I Masnedieri, Londres, della Regina, 1847; Jerusalém, Paris, Academia Real, 1848; Il corsaro, Trieste, Grande, 1848; La battaglia de Legnagno, Roma, Argentina, 1849; Luiza Miller, Nápoles, S. Carlos, 1849; Stiffelio, Trieste, Grande, 1850; Rigolleto, Veneza, Fenice, 1851; Il trovattore, Roma, Appolo, 1853; La Traviatta, Veneza, Fenice, 1853; Les Vêpres Sicillienes, Paris, Opera, 1855; Simão Bocanegra, Veneza, Fenice, 1857; Aroldo, Remini, Novo, 1857; Un ballo de maschera, Roma, Appolo, 1859; La forza del Destino, S. Petersburg, Imperial, 1862 [ópera trágico-burlesca]; D. Carlos, Paris, Opera, 1867; Aida, Cairo, Opera, 1871. Destas foram reformadas: Macbeth, em 1865 [Verdi teve grande atracção por Shakespeare e já no fim da sua vida compôs o Othello e o Falstaff], Simão Boccanegra em 1881 e D. Carlos, 1884.
 Às obras dramáticas juntaremos mais as seguintes composições: uma célebre Missa de requiem, e seis romances soltos; 1º Non accostare al urna; 2º More, Elisa, lo stanco poeta; 3º In solitario stanza; 4º Nell'orror di noote oscura; 5ª Perduta ho la pace; 6ª Deh, pietoso. Um álbum contendo: Il tramonto, La Zingara, Ad una festa, La Spazzacamino, Il Mystero, Brindisi. E, ainda L'usale, canto para voz de basso; La seducione, idem; Il poveretto, romance; Tu dici che non m'ami, stornello; Guarda che bianca luna, nocturno a três vozes. 
A música é a poesia do universo, disse alguém, e tão verdadeira é essa frase, que até a estrofe toma o nome de canção, e o poeta o nome de cantor, para se curvarem à sublimidade de tal pensamento.
Verdi é um poeta e um músico, e se assim não fora, as suas produções não lograriam  o poderio de enternecer e arrebatar o ouvinte, como sempre sucede  ao ouvir cantos comovedores, que se espalham nesse vastíssimo repertório, que, se no todo não acompanha a evolução musical, em grande parte ostenta a pujança de um talento exuberante, que se vinte anos houvera de menos vinte obras produziria a mais, belas, brilhantes, surpreendentes, que para isso abunda ainda a inteligência do fecundo compositor. 
O D. Carlos bem claro nos patenteou o engenho vigoroso de que sabe revestir-se o espírito de Verdi, e, se aí o seu estilo principiou a modificar-se pelas exigências da época, obrigando-o a um trabalho mais reflectido e estudado que modificou o seu estilo, a Aida, escrita expressamente a pedido do Khediva Ismail Pachá, para inaugurar o teatro italiano do Cairo, foi como que a completa transformação de todo o seu passado artístico.
Nessa soberba partitura está grandemente aliada a ciência musical aos detalhes cénicos, e a Aida representa, para os mais exigentes e profundos, uma obra de primeira ordem, de extraordinário valor e de rara intensidade de efeitos, onde o colorido brilhante e o sentimento patético se evidenciam por maneira que Verdi ainda não tinha manifestado até então. Todos os traços da última ópera do festejado maestro italiano são verdadeiramente monumentais, a arquitectura grandiosa, a inspiração opulenta, o ensemble tão severo quanto harmonioso. Quatro mil libras ofereceu o Khediva por esse trabalho importante e, depois do Cairo, Milão, Paris, Londres, Madrid, o Universo inteiro tem prestado devida justiça a essa peça musical da arte italiana.
Verdi não adivinha o futuro mas compreende a actualidade e, caminhando a par do modernismo e do progresso, segue ao mesmo tempo duas fases da ciência, e que lhe alcançam o caminho da certeza e da glória: a evolução moderada no modo de escrever, e a simpatia geral com que o mundo o acolhe.
José Verdi na arte, representa como Victor Hugo nas letras, um cumulo eminente, para o qual todas as nações olham, receosas de que a idade e o cansaço o inutilizem a cada momento. São duas glórias europeias, faróis postados às portas do belo para iluminarem os prosélitos com o seu maravilhoso facho. 
Foi a morte de Alexandre Manzoni, em 1873, que inspirou Verdi a escrever a Missa de Requiem, e nesse canto sublime e divino, bem impressas se ostentam as mágoas e pesares que trituravam o espírito do maestro ao traçar a derradeira homenagem ao seu dedicado amigo! Um ano depois, na igreja de S. Marcos em Milão, a Stolz, a Waldmann, o Caponi e Maini, acompanhados de um coro de 120 artistas, e de uma orquestra de 100 executantes, entoavam esse canto fúnebre, que a batuta de José Verdi dirigia com a proficiência de quem não é alheio a nenhum dos segredos da sua profissão. O entusiasmo foi delirante, e raros países há que desconheçam essa obra prima.
São diversas as datas em que os biógrafos apontam o nascimento de José Verdi, porém, a que incontestavelmente exara a verdade é  que nos participa a Gazzeta Musicali di Milano [quem sabe se inspiradora desta Gazeta Musical], no seguinte documento de baptismo, que transcrevemos na própria língua, em que se acha o original:
Anno Domini 1813, die 11 octobris - Ego Carulus Montanari, Praepositus Runcularum baptizavi infantem HERI, vespere hora sexta natum est Carolo Verdi qm Josephi et ex Alysia Utini filia caroli, hujus Parocciae jugalibus cui nomina impossiu - Fortuninus, Joseph, Franciscus - Patrini fuere Dominus Petrus casali qm Felicis et Barbara Bersani filia angeli, ambos hujus Parrocciae.     //  In quorum fidem - Datum ex canonica Runcularum. Buxeti hac die 26 Octobris anni 1879.
Nasceu pois José Verdi em Roncole, pequena aldeia, três milhas distante da cidade de Busetto, aos 10 de Outubro de 1813, conforme declara a certidão supra. Tem por consequência hoje o grande maestro, 72 anos de idade, incompletos. Filho de pais pobríssimos, deveu a sua educação musical à municipalidade de Busseto, que lhe estipulou uma pensão, e a Antonio Barezzi, rico proprietário da mesma cidade, que supriu sempre abundantemente as despesas do jovem discípulo, quando este partiu para Milão, onde cursou brilhantemente o conservatório. Verdi casou, primeiro com a filha do seu opulento protector, depois, por morte desta, com a notável cantora Josefina Strepponi, filha do compositor deste nome, e uma das melhores intérpretes das suas obras. São imensas as anedotas engraçadíssimas que adornam a vida de José Verdi, e se o espaço no-lo permitisse, mencionaríamos algumas, a que só mais tarde podemos dar publicidade.
Pádua, prestou há pouco tempo uma homenagem ao maestro italiano; homenagem digna de tão excelsa cidade, digna do vulto a quem era consagrada; é o teatro Verdi, um primor de arquitectura, de riqueza e de bom gosto, inaugurado em 1884.
Quando a guerra com a Áustria oprimia o povo italiano, lembrou-se este do nome de Verdi para santo e senha, e ao mesmo tempo divisa de sua ideia. Efectivamente Victor Emmanuel rei di Italia tem nas suas iniciais as letras do nome escolhido.
O maestro Verdi é pois uma gloria da Itália e as suas obras musicais hão-de atestar, aos vindouros, a grandeza do seu talento. A Gazeta Musical, encetando o segundo ano da sua publicação com o retrato de tão afamado compositor, cumpre não só o dever que a arte lhe impõem, mas ainda mais, confessa a sua admiração pela fecundidade de tão nobre engenho, e de tão profunda ciência.
Gino. »
Poderíamos acrescentar algumas notas à biografia de Verdi e à história da Gazeta Musical, já que se no ano de 1886, o do artigo, Higino da Costa Paulino como que rezava para que o maestro continuasse vivo, no ano seguinte a realidade seria antes fatal para  a sua dilecta amiga violinista, maestra e compositora Josefine Weinlich Amman, cortando-lhe a vida terrena a 9-I-1887 com apenas 38 anos de idade
Todavia, pese a enorme tristeza sentida por todos os que a conheceram, ela deixara belas memórias das músicas compostas e tocadas (algumas reproduzidas nos números da Gazeta Musical, tal como a Dança das Ninfas) e das orquestras que dirigira não só em Lisboa mas em várias cidades da Europa, pois fora a fundadora da 1ª Orquestra Feminina Europeia, tal como podemos ver num maravilhoso postal da época. E Ebe Amann, o dono da sucursal da Gazeta (ou casa), na R. Vasco da Gama, 166, também pianista, era o seu marido, industrial e financiador do projecto tanto da Orquestra como da Gazeta Musical.
Terão eles conhecido Joaquim Pessoa, crítico musical do Diário de Notícias  e que morreria também precocemente e com a mesma fatal tuberculose, uns anos depois a 13-VII-1893, com 43 anos de idade e quando Fernando Pessoa com 5 anos começava a balbuciar os primeiros versos e dele recebendo pouco antes de morrer, na quinta para onde o pai se recolhera, um molho de escritos inéditos, quem sabe se críticas musicais ou pensamentos de sabedoria? 
É muito natural que se tenham conhecido e que fossem mesmo amigos, pelo menos no grande amor à música, a qual, como sabemos, apura e expande tanto as almas mais sensíveis que as torna mais susceptíveis de fortes laços de amizade, senão mesmo do Amor Divino harmonioso e belo...
Giuseppe Verdi afinal seria o mais abençoado pelos deuses ou espíritos celestiais e a graça Divina da vida pois viveu  88 anos e, ao repertório coligido por Higino, deveremos acrescentar ainda de importantes o Otello, 1887, com a estreia em Milão, e o Falstaff de 1893, logo editado no ano seguinte em Lisboa, além das 4 Composições Sacras de 1898, apresentadas em Paris. Morreu em 21 de Janeiro de 1901 e teve o famoso Arturo Toscanini a dirigir cerca de 800 músicos nas cerimónias da sua morte, nas quais assistiram ou participaram mais de 200.000 pessoas.
 
Libreto do Falstaff, impresso em 1894 na Companhia Typograhica, à rua Ferregial de Baixo, 12-20, em onze páginas de bem resumido texto.
Sugestões de audição não faremos mas há compilações das aberturas no youtube (tal como a https://www.youtube.com/watch?v=ZE_S_2jMUmM) que poderão ser um bom mostruário da caixinha de Pandora deste grande génio musical que foi e é Verdi. E que em 1886 Josefine Amman e Higino da Costa Paulino (em baixo, em Goa, em Mahem, onde veio a casar e a viver - distinguindo-se como poeta, músico e director teatral, sobretudo de récitas de crianças -, numa fotografia com a sua filha Fernanda, minha avó) resolveram divulgar e nós, gratos e saudando-os, com amor, revisitar e partilhar.

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