domingo, 14 de maio de 2017

João Penha, por "Montes e Vales". O conto "Sílvia", uma árvore. Os Visionários e Antero.

João Penha (1838-1919), natural de Braga, formado em Direito pela Universidade de Coimbra em 1873, amigo de Simões Dias e Cândido Figueiredo,  Antero de Quental e Gonçalves Crespo, foi poeta e magistrado e um dos introdutores do Parnasianismo em Portugal. Este movimento literário nasceu por volta de 1866, com a revista parisiense Parnasse Contemporain, João Penha toma conhecimento dele através de Eça de Queiroz, já depois de nos seus tempos de estudante lento ou cábula ter fundado em 1868 o jornal literário A Folha, que se publicou em cinco séries até 1873, num total de 428 páginas, contando com a valiosa e perseverante colaboração dos outros quatro redactores: Simões Dias  Guerra Junqueiro, Cândido de Figueiredo, Gonçalves Crespo. Entre os colaboradores destacam-se Antero de Quental, umas cinco vezes, Gomes Leal e Camilo uma vez, Sousa Viterbo, várias vezes, Maria Amália Vaz de Carvalho, Francisco Gomes de Amorim  e outros. 
Dotado de grande sensibilidade, poeticamente muito consagrada à mulher, ao vinho e à boa vida, publicou dois livros de poesia (Rimas e Viagem por terra ao país dos sonhos) e uma obra em prosa Por Montes e Vales, onde anuncia em preparação as Memórias de um Estudante de Coimbra que infelizmente não chegou a publicar, deixando contudo alguns apontamentos, no mencionado livro, nomeadamente sobre José Simões Dias e alguns companheiros da vida boémia estudantil coimbrã.
Não há porém mais do que uma referência a Antero, embora significativa, pois idealizando num poema futuro, erguido aos astros triunfais, «ladeado de Antero de Quental e de Léon Dierx, interrogarei a Deus, e Deus responder-me-á o mesmo que eu respondo aos inúmeros micróbios que dentro em mim existem». Ora Léon Dierx era um poeta parnasiano e que quando morreu Mallarmé foi eleito o príncipe dos poetas pelo que poderemos ver nestes dois custódios do seu poema futuro, um reconhecimento forte do valor de Antero.
Tem também um capítulo pequeno dedicado a um dos mestres de Antero, Michelet, Mr. Le Symbole (tal como lhe chamariam os alunos, relatando um anedota improvável de único ouvinte das suas aulas ser alguém que estava à espera de jantar e que João Penha lera num livro em que «se afirmava que a anedota era absolutamente verdadeira»), e alguns capítulos de análise literária, como aqueles intitulados Nefebelistas, Parnasianos e o último Visionários, onde curiosamente  não vemos qualquer referência a Antero. É certo que Antero já morrera, mas poderia ter mencionado um dos nossos mais visionário poeta metafísico. Aliás, João Penha trai um pouco a sua adesão menor aos grandes voos dos textos sagrados e metafísicos de todos os tempos ao meramente os citar a dado passo,  sem dizer que os leu, bem ao contrário de Antero que os referencia e comenta entusiasticamente, a par da confissão que faz do impacto forte das obras de Quinet e de Michelet nele, em relação a este sabendo-se mesmo da peregrinação pessoal que Antero fez a sua casa em Paris, para lhe entregar anonimamente um dos seus livros. Contudo, João Penha leu algumas das obras de Quinet e de Michelet, apontando mesmo a filiação da Bíblia da Humanidade, de Michelet, na Primeira Jornada do Ashaverus, de Quinet.
Antero do Quental.... Lux...
O último capítulo, Os Visionários, é bastante significativo na análise literária, pois ao facto de que ao Romantismo e Simbolismo sucedeu a escola do Realismo e do Naturalismo, exemplificando entre nós com Eça de Queiroz e Teixeira Queiroz, acrescenta as reacções de todos aqueles que entendem que a arte não é, nem poder ser, uma servil reprodução fotográfica das coisas vulgares e comuns, que se vêem todos os dias, e que no homem há alguma coisa que não é simplesmente matéria: a alma, isso que em todos nós sonha, isso, por exemplo, que em mim faz versos. É reacção da psicologia contra a fisiologia»,  destacando-se, primeiro, os apóstolos exagerados que recusam tudo o que é real e positivo, e que são os decadentes ou nefelibatas - e que num capítulo próprio inicial relaciona com Mallarmé e com «as nebulosidades incoercíveis do simbolismo» e a forte «forma musical dos poemas», acrescentando ainda e, contrastando com a sua escola parnasiana, que nos poemas deles «avultam a Mulher e os sentimentos que ela inspira, mas essa mulher não é a «Carne» dos poetas parnasianos: é a Noiva imaculada dos místicos amorosos».
E segundo, pelos poetas que se equilibram entre este mundo e o outro, aos quais ele chama Visionários, nomeando apenas Antero de Figueiredo, e explicando que na «parte ideal ou simbólica dele [A. F.] predomina uma filosofia mais doce e mais resignada: a das lágrimas das coisas: sonhos que nunca se realizam, ou que se realizam, se esvaem, ou se transformam numa cruel realidade. O distinto escritor, porém, aparentemente ilacrimável, e, por vezes tenuemente irónico, expõe apenas o símbolo, esboça os factos que constituem a acção, e deixa ao leitor pensativo a resolução do problema».
Poderemos dizer que há da parte de João Penha uma visão ainda limitada ou menos profunda espiritualmente do ideal, do simbólico e do visionário. Que diferença a chegada de Fernando Pessoa à nossa literatura, com uma contribuição simbólica e visionária, esotérica e espiritual enorme.
 Quanto à crítica feita por João Penha ao posicionamento filosófico e moral de Antero de Figueiredo talvez tenha alguma razão, pois queixa-se que ele é como «a de um utopista que vê as coisas reais da vida através de uma luneta de vidros esfumados. Increpa os que passam, e que vão em procura do prazer, ou daquilo com que ele se alcança, e mostrando-lhes a inanidade desse prazer, pelo qual anseiam, aconselha-lhe o remédio que ele mesmo, um vencido para si tomou, o do sonho./ Belas palavras, literáriamente falando, mas soltas ao vento./ O sonho é uma bela coisa, mas sem base sólida do presunto de Lamego, não vale nada./ Toda a sabedoria humana consiste a meu ver, em se equilibrar de modo que um não destrua o outro».
Assim termina o seu último capítulo do livro, de certo modo defendendo os boémios das acusações que lhes são lançadas e considerando os sonhadores como vencidos e frustrados. 
"No meio termo está a virtude", reafirma e bem, agora se é apenas entre os sonhos e os prazeres sensoriais, é que talvez não seja o único ou o melhor esquema dos dilemas da vida de que a forquilha ou Y pitagórico se tornou um símbolo milenário, no qual temos de escolher uma vereda ou direcção, mas de facto sem termos que condenar ou criticar os que escolhem outras opções e caminhos. Esta parte final faz-nos ver ou pressentir algum distanciamento em relação a Antero de Quental, já que de algum modo este pode ser visto e apresentado como um poeta austero e visionário, mostrando a inanidade do prazer, e dominado, possuído ou atraído por certos sonhos, ideias  e ideais e que acabou vencido, suicidando-se.
Anote-se antes de entrarmos na história mais valiosa do livro que logo no primeiro capítulo João Penha mostra alguma da sua boa sensibilidade à Natureza e no fundo à Alma do Mundo que subjaz a todos os seres, e ela será bem mais desenvolvida no capítulo intitulado Sílvia, uma história de cerca de 15 páginas pela qual se agiganta no Culto das Árvores e nos fez escrever este artigo.
Um salgueiro, ou uma Sílvia, drade nossa...
Sílvia, uma história tão bem contada que nos fez admitir ao princípio que era verdadeira, pois só na parte final é que acrescenta alguns pormenores que denunciam a fantasia.
A história é simples e está muito bem contada e até arguida racional ou cientificamente na sua possível veracidade pois, perante uma árvore próxima de uma ponte onde vai contemplar diariamente o pôr do sol próximo do Choupal de Coimbra, com os rouxinóis a lançarem os seus harmoniosos gorjeios, começa a notar que esse salgueiro, embora esteja rodeado de outras árvores que permanecem paradas, imóveis, quando ele se aproxima começa a agitar as suas folhas. 
Uma das pontes da mata do Choupal
Aos poucos, com as sucessivas vezes, vai-se apercebendo que realmente a árvore, que passou a chamar-se Sílvia, deve sentir algo por ele, convencendo-se mesmo que se criou uma paixão. Manda-lhe beijos e suspeitando por certos sinais que ela desejaria ser abraçada, acaba por ir estreitá-la de noite (para não pensarem mal..), mas com a infelicidade de acabar por cair da ponte, já que a árvore estava no talude a pequena distância, e escorrega até à base do tronco. Tem então uma percepção ou alucinação que a Sílvia se curva para ele para o erguer do chão e foge algo assustado, deixando de a visitar, pois tem de se ausentar de Coimbra. 
Quando regressa ao fim de uns meses à Minerva portuguesa lembra-se da Sílvia, mas quando chega à ponte, fica estupefacto pois ela já não lá está. Interrogando um vizinho que já o vira a rondá-la e obrigando-a disfarçar-se, acaba por ser informado que a árvore começou a definhar e que morreu e já foi cortada. Daí a pensar que ela se sentiu abandonada por ele vai um instante e acaba então por ter um sonho-visão quando torna a ir lá vendo uma jovem fantasma com ar triste a encaminhar-se para ele.
Começara este seu belo conto com um parágrafo bem forte e valioso, que faz lembrar a grande apetência e aspiração de conhecimento da unidade de Vida que a geração de Antero manifestou: «Os vegetais, em contrário ao que dizem todos os livros de ciência, são animais. Nascem, crescem, alimentam-se, reproduzem-se, adoecem e envelhecem, e morrem. Vivem, pois, mas passivamente, dizem esses livros. Eu porém, vou mais longe: estudos reiterados sobre esses entes da criação, e factos passados comigo mesmo, colocam-me na posição de poder declarar, - e essa declaração faço-a ao século XX - que eles tem vida activa, consciente; tem alma e paixões; percebem o mundo exterior como nós mesmos o percebemos, e outros animais o percebem. Nesses estudos não me guiei pelos princípios de qualquer das filosofias geralmente reconhecidas como oficiais, mas pelos de uma minha própria, princípios segundo os quais o que exactamente não existe é o Inconsciente: tudo tem consciência, em tudo há força, inteligência e sensibilidade. / Em lugar dos argumentos, que eu poderia aduzir a favor deste meu asserto, narrarei antes um caso, passado comigo, que muitos julgarão absurdo, ou pelo menos extraordinário, mas que eu julgo natural, segundo aqueles princípios que sumariamente expus./ Este caso sucedeu em Coimbra, a cidade mais poética do mundo, do mundo meu conhecido.»
Ora nós que nascemos no século XX mas que já cavalgamos o séc. XXI, o ano da graça cristã de 2017, o que devemos acrescentar ou comentar a este belo conto e ousado (embora provavelmente brincalhão) princípio filosófico de João Penha?
Que em tudo há força, há inteligência e sensibilidade parece uma afirmação correcta, pois mesmo nas partículas que compõem o reino mineral há uma força vital que as associa, ou faz crescer mesmo no cristais, e isso implica algum tipo de sensibilidade e de inteligência. E para quem aceita que há um Campo Unificado de energia-informação-consciência tal não é mais do que a mesma tríade de força, inteligência e sensibilidade.
Certamente que é um mistério o conhecimento em si de tal substância, ou  Ser que subjaz a todo o Universo e muitos nomes podem ser dados, desde Deus a Espírito divino, a força cósmica, a Alma do mundo, mas que este substrato ou se manifesta nos seres, ou os seres em si mesmo já o tem incorporado, parece evidente. É ele que guia os instintos dos animais, ou as intuições dos seres humanos e é ele que permite as telepatias ou faz-nos tornar conscientes das sincronias. E a designação antiga de Anima Mundi, Alma do Mundo, estaria bem apropriada distinguindo-se um Spiritus mundi, a este cabendo então mais o nível divino e o Ser em si mesmo.
As árvores "têm alma, tem paixões" diz-nos ainda João Penha. Ou seja, podem até individualmente manifestar um arbítrio próprio, uma escolha pessoal. Não diremos tal para o amor das abelhas pelas flores: não há paixão, apenas recolhem os sucos açucarados dos pólens. Só em alguns livros para crianças é que encontremos histórias de abelhas que se apaixonaram por flores e que não queriam deixá-las.
Porém há mistérios por detrás das árvores e que vão  para além das múltiplas descobertas científicas recentes que provam como pelas raízes as árvores comunicam e transmitem elementos e informações, como muito recentemente um guarda florestal alemão demonstrou num livro de grande sucesso, ou ainda o professor da Universidade de Florença Stefano Mancuso, através do International Laboratory for Plant Neurobiology do qual é director, o tem comprovado, pois o facto de não haver um cérebro nas plantas ou árvores não invalida que elas tenham consciência e inteligência, isto é, a capacidade de resolver problemas, de se adaptarem a condições ambientais com escolhas próprias e imediatas (apesar dos seus lentos movimentos), e têm sido muitas ao longo da evolução, lembrando que mesmo Darwin já equiparava a raiz a um cérebro de um animal inferior na escala de evolução...
O mais complexo é admitirmos que para além da sensibilidade e inteligência (com auto-consciência de ser ou não...) da planta e das árvores pode existir mesmo um ser próprio, que é denominado no ocultismo um elemental ou um espírito da natureza, e dos quais tradições de todos os povos, de África até ao Japão, estão cheias, e quanto às árvores com tantas histórias e nomes: fadas, dríades, hamadríades, etc.
Não será agora a ocasião para partilharmos e tentarmos compreender algumas lendas ou tradições europeias relativas aos seres ou almas das árvores. Fiquemos com a história de João Penha muito interessante. convincente no princípio, e no fim algo fantasiosa e mesmo triste.
Quanto à outra manifestação da sua sensibilidade às plantas e às almas fora do corpo ela está logo no primeiro capítulo, uma homenagem a uma jovem Raquel, falecida cedo e amada por João de Deus, e que, quando João Penha lhe lê um poema que aquele lhe dedicara ( «(...) Alma gémea da minha, e ingénua e pura/ Como os anjos do céu (se não o sonharam...)/ Quis mostrar-me que o bem pouco dura.») observa, junto ao cemitério, «numa espécie de jardim inextricável de plantas e flores, confusamente entrelaçadas umas às outras, felizes por viverem sós longe do bulício do mundo», um «caso estranho! Não soprava a mais ligeira viração, e no entanto todas aquelas flores, desde que principiei a dizer a melancólica elegia até que a concluí, não cessaram um só momento de se agitar, fazendo ouvir um ténue sussurro, em que havia uma vibrações vagas de uma música distante. Era a alma dela, transformada na alma daquelas flores, que estremecia e chorava, ao ouvir as queixas sem esperança do poeta que tanto amara./ Já de noite, seguia eu, meditabundo, estrada fora, em direcção à cidade, quando, a meio do caminho, me pareceu ouvir um ruído inexplicável e misterioso./ Voltando-me de repente, hirto...» vê-a e assusta-se...
Anote-se por fim, que a expressão «em lugar de argumentos», faz-nos lembrar Antero, que embora em 1899 já tivesse partido, tentara em vida sondar os mistérios, fronteiras e pontes entre os consciente e o inconsciente, a telepatia e o magnetismo, a ciência, a religião e a metafisica.
Ao consultarmos a epistolografia de Antero, bem editada e anotada pela Ana Almeida Martins, observamos que só sobreviveu uma carta enviada de Lisboa, da rua da Madalena, 17, 4º, em Março de 1873, exactamente a propósito da colaboração no jornal A Folha, dirigida por João Penha. A relação é claramente de grande amizade ou cordialidade, embora mais tarde no In-Memoriam de Antero, de 1896, João Penha não esteja presente. Antero estava então na sua fase influenciada por Baudelaire e algo mais faustica e de apreço por Satan, mas que ele justifica, face «à parvoíce de muitos dos nossos contemporâneos, contemporâneos digo no tempo e em nada mais» numa nota anónima (mas que será de João Penha, no nº 2, da série V, do jornal A Folha: «o nosso colaborador, que em tantos dos seus escritos se mostra possuído da mais estranhável crença na bondade e ordem providencial nas eternas leis físicas e morais do universo, não é de modo algum solidário com as desconsoladoras doutrinas que expões nestes dois sonetos [Possesso]. Uma coisa é o homem e o pensador, outra o artista para quem dentro da verdade estética, todos os factos psicológicos têm valor igual, e a quem assiste o direito de explorar indiferentemente o céu e o inferno, a crença e a negação, quando trata de definir praticamente os vários modos de ser da alma humana».
Certamente que, diremos nós, será contudo melhor não explorarmos demasiadamente os aspectos mais negativos, depressivos, maléficos, depressivos pois o pensador e o ser em cada um de nós são sempre afectados pela exploração ou criação estética ou artística pois, embora fora ou acima do bem e do mal, pelo menos em teoria e intenção, na prática tornamo-nos sempre um pouco o que pensamos, sentimos, escrevemos, criamos...
                                             Transcrição fotográfica do conto...
      E para inspirar-nos ao caminho, eis o mapa da mata do Choupal, tão frequentada por vates ou visionários, de Antero de Quental ao lendário fadista Hilário, imortalizado por Gomes Leal e outros.

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