segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Erasmo, pedagogo do Renascimento e a actualidade das suas propostas. Homenagem no dia do seu aniversário de 2013 e de 2021

                                      

Erasmo de Roterdão (1466 ou 1467-1537), ainda hoje passados cerca de 500 anos da sua vida na Terra sobrevive no coração e alma de quem o lê, estuda e ama, numa aura de graça e de luz, de sabedoria e amor à verdade, fazendo juz ao que alguns, como ao nosso Antero Quental, ou a Sócrates, clamaram: Sancte Erasme, ora pro nobis...Ou seja, possamos comungar com a tua sabedoria e espírito libertador, ou o que da Sabedoria Divina conseguiu passar por ti...

No dia do seu aniversário destacaremos, entre os muitos aspectos da sua riquíssima personalidade e individualidade,  o pedagogo, o educador em latim e de latim, tarefa que iniciou  cedo por ter de pagar os seus estudos de grego em Paris, prosseguindo-a mais tarde pelo natural fluir da sua imensa erudição, ironia e amor.

Ora como pedagogo Erasmo inseriu-se na corrente humanista da península itálica, que vinha de Coluccio Salutati, Lorenzo Valla (a sua maior fonte e que editou e parafraseou), Angelo Poliziano, Pico della Mirandola, Marsilio Ficino, mvalorizadora da individualidade e dignidade Humana, da Tradição Perene universal, e da metodologia filológica crítica  dos textos de autores sagrados e profanos, nomeadamente os cristãos da patrística (deles dizendo "o melhor Orígenes, o mais agradável Crisóstomo, o mais santo Basílio", e dos latinos ("Ambrósio, extraordinário nas suas alegorias, e Jerónimo, tão prático nas Escrituras santas")  e não-cristãos (tal "Platão, Aristóteles e o seu discípulo Teofrasto e depois Plotino, que une as duas correntes"), e foi bastante pioneiro não só nos autores abordados como nos métodos, que partilhou com os seus alunos, e depois em livros, em especial no De Ratione Studi,  De Pueris instituendis, De duplici copia verborum, Como escrever cartasAdágios e Colóquios

A segunda edição dos Adágios, bem mais alargada, impressa em Veneza, com Aldo Manuzio, em 1508, como Graal da Sabedoria perene, e sobre a empresa aldina: Festina lenta. Apressa-te lentamente.

Poderemos realçar certos aspectos, tais como no seu plano de estudos, desvalorizar a memorização, preferindo a compreensão ("o essencial da memória, é ter-se compreendido algo a fundo"), pois fórmulas decoradas não são tão duradouras como as aprendidas pela descoberta sentida e livre do aluno.  Desenvolver o sentido crítico em vez da submissão, oferecendo uma variedade de autores e soluções, deixando aos alunos a escolha das suas vias e preferências e impulsionando também o estudo da retórica e da argumentação (sobre as quais escreveu bastante) para fortificarem a capacidade de discernimento e julgamento. 

Valorizava ainda o estudo da etimologia e da elegância das palavras e frases, bem como a escrita, mesmo que em pequenos ensaios e poemas, e o dialogar-se na língua que se estuda, considerando-as práticas fundamentais, pois depois viriam  as teorias abstractas e as regras. Propôs que o estudo “seja visto como lúdico e não labor», escrevendo por isso muito dos seus Colóquios, nos quais ensina pelos exemplos, diálogo,  paradoxo,  ironia, estética ou decoro, alguns sendo muito divertidos e ainda actuais, embora na época tivessem enfurecido muitos religiosos ou monges por troçar de aspectos comportamentais pouco coerentes.
Assim a auto-consciência crítica, e nomeadamente do que exteriormente condiciona e manipula, e logo esmaga e destrói as melhores potencialidades humanos, é muito valorizada e desenvolvida por Erasmo que, na linha de Luciano, de quem traduz as obras com Thomas More aquando da sua estadia em Londres, e publica em 1506 com o fim de exaltar a ironia e o sentimento crítico que desmascaram os vícios e hipocrisias, vai  imortalizá-la no Elogio da Loucura como a grande libertadora social e a geradora de uma mente ou alma mais sincera, desperta, criativa, irenaica (irene-paz, em grego), capaz de não se prender nas limitações e modas, superstições e dogmas reinantes.

Realçou Desidério Erasmo ainda muito a sacralidade e amor que estão na essência da Educação, apresentando a paternidade-maternidade como o meio mais natural e nobre dela e de tal modo que o ensino ou a transmissão de mestre a aluno, ou a discípulo, deve ser como a de um pai, e visar,  com o recurso a exemplos e modelos valiosos ou esforçados do passado,  ao desabrochamento do génio próprio, ou seja, da individualidade pelo seu livre arbítrio e aspiração sábia modelada e manifestada com decoro, ética, harmoniosamente. Pioneiro também ao afirmar o direito das mulheres a uma educação mais completa e que se emancipassem da tutela patriarcal asfixiadora.
                                                                      
Na formação da sensibilidade na Educação, Erasmo realçou muito o valor da poesia, do subjectivismo, da imaginação poética, da leitura e do culto dos grandes poetas e escritores clássicos greco-latinos (tendo sido por isso criticado, já que eram pagãos), da escolha e colheita das palavras e ditos mais valiosos, e se  compôs inicialmente uns poucos de poemas, ao longo da sua vida  desenvolveu bastante mais a prosa e a epistolografia, esta sendo vista como um diário afectivo e intelectual dialogante, e que teve um sucesso enorme (cerca de 3.200 cartas e publicadas em 1958 The Complete Letters of Erasmus, por Allen, em latim, em 12 volumes, hoje já com tradução francesa) e por onde perpassa muito da sua argúcia e amizade, liberdade e sabedoria, além de todas as perseguições que lhe fizeram ou polémicas em que se envolveu, sobretudo no começo da Reforma, sem dúvida afirmando-se como o pedagogo ou mestre principal da Cristandade não só pela qualidade das suas obras e intervenções como pela extensão dos seus dialogantes ou destinatários.
Na pedagogia erasmiana uma das ideias forças é a do irenismo, a não-violência, o pacifismo, a tolerância activa, a conciliação. Uma forte oposição e condenação da resolução dos conflitos pelo recurso às armas, considerando que mesmo os animais da mesma espécie raramente lutam entre si, pelo que o ser humano deve procurar pelo diálogo chegar à concórdia. Por conhecimentos transmitidos a ele pelo seu amigo, confabulador e discípulo Damião de Goes, Erasmo criticou a cristianização forçada dos Lapões pagões, tal como, e já não por Goes (algo envolvido ou comprometido nos Descobrimentos dos portugueses e suas lutas), se opôs a mais guerras com os Islâmicos e Turcos, pois os cristãos  é que eram frequentemente os infiéis e violentos, entre si e contra os não-cristãos. Anote-se a publicação entre nós em 1990 da valiosa tradução do adágio  Dulce Bellum e da Querela da Paz, por A. Guimarães Pinto, sob o títulos A Guerra e  Queixa da Paz, no qual está condensada muito da sua imensa sabedoria justificadora da não-violência.

São os pedagogos, os professores, os cultores das belas letras, os humanistas (por vezes unidos em círculos, as sodalidades, na grande república literária), hoje diríamos os intelectuais, os professores, os cientistas, artistas, psicoterapeutas e os espirituais, quem deve exercer o papel de mediador ou de esclarecedor nos grandes conflitos de opiniões, interesses, partidos, povos, estados, religiões. E se no Renascimento durante alguns anos algo disso se passara no aconselhamento dos reis e governantes, com a Reforma e a Contra-Reforma muito se impossibilitou e extremizou, desvanecendo-se essa concórdia ou unidade entre sábios e governantes da Europa.

Erasmo, num altar lisboeta. Que nos inspire. Aum, Amen..

Nestes últimos sentidos considerará, por exemplo, que na frase de Jesus ”Ninguém vai ao Pai senão através de mim”, o mim, é o Logos, ou  Jesus, o Cristo, e que tal corresponde à Ratio,  a Razão, e Sermo (que sempre preferiu a Verbo), a Palavra, a Língua, ou ainda que é pelo diálogo verdadeiro, amoroso, unificador que nos podemos religar à Divindade. Neste sentido corre também a expressão paradigmática do mestre:”Onde dois ou três se reunirem em meu nome eu estarei no meio deles”. Reunirem, ou seja, em diálogo, em colóquio, silencioso ou na palavra luminosa audível, e com a presença da Razão e Inteligência Divina que nos torna verdadeiramente seres humanos e nos unifica. 

A pedagogia irenaica ou educação pela não-violência, contra as guerras, os fanatismos e autoritarismos, desagua numa ideia de religião interior, pura, simples, que Jesus transmitiu e cuja base de simplicidade, amor, douta piedade e verdade é universal e subjaz a todas as outras religiões. Assim diremos que é fundamental que desde cedo isso seja ensinado, e idealmente poderemos pensar até com o apoio da Unesco, embora esta esteja ainda muito atada por pressões e interesses negativos, e pelo laicismo neutro das modernas democracias. Isto dá azo a que a ignorância, o fundamentalismo e o fanatismo grassem de Oriente a Ocidente, ainda que o ecumenismo e o diálogo inter-religioso floresçam em alguns pontos, e cada vez mais tudo esteja em rede reveladora ou denunciadora instantânea, para a verdade ou para a desinformação, pesem as censuras, frequentemente vendidas e opressivas exercidos pelos meios e redes de comunicação digitais.

Para Erasmo, muito mais do que organização, dogmas e sacramentos, a religião ou a Igreja é a prática do amor ao próximo e a Deus, e é a assembleia ou congregação da fé e vontade de ligação amorosa à Divindade e à Humanidade, sendo por isso universal e apoia-se no estudo profundo e sentido dos textos sagrados, na oração (incessante, explicará mesmo enquanto modo de vida e aspiração ao Amor divino, como publiquei em 2008 no seu Modo de Orar a Deus) e  na comunhão com o corpo místico em que todos fazemos ou podemos fazer parte. 

Tal constante abertura e manifestação do bem desagua na metanóia, ou transformação interior, na reforma das mentalidades e costumes, na defesa dos oprimidos e perseguidos, na distribuição mais justa dos bens, e na menor valorização das hierarquias e autoridades exteriores, e nesse desprendimento consegue-se o recolhimento e uma maior capacidade de sentir o espírito, o amor ou  mesmo a Divindade no centro da alma e coração e sermos portanto melhores nas relações com os outros e a Natureza,
As suas propostas de Educação são vastíssimas e apenas partilhamos uma pequena amostra ou introdução à leitura das suas imensas e riquíssimas obras…
Concluamos com algumas das frases que são testamentos deste humanista, de quem o notável sábio francês Lefévre d'Étaples escreveu em 1514, "Quem é que não admira, ama, honra Erasmo?", ou de quem Rabelais disse ser "campeão invencível da liberdade" (e lembremo-nos da sua intervenção, a pedido do Papa,  de polémica com Lutero, na qual defendeu convincentemente o Livre-arbítrio ou liberdade), ou de quem o nosso Damião de Goes, seu grande amigo, afirmou em 1538, pouco após a sua morte (11 Julho de 1535):”aquele prudentíssimo e gravíssimo Erasmo de Roterdão, neste nosso áureo e doutíssimo século, príncipe de toda a doutrina e eloquência”.

    Eis então alguns dos seus ditos, à altura das centenas de adágios da antiguidade que ele coligiu e comentou e que considerava o “arsenal de Minerva”:

Um homem não nasce homem, torna-se”, dito este extraído do seu tratado Da Educação das Crianças, o De Pueris.

E os que epigrafei nas páginas ante-prefaciais do livro dele que publiquei em 2008, Modo de Orar a Deus

"As pessoas de engenho generoso e livre gostam de ser guiadas, não de ser coagidas”

Ego mundi civis esse cupio, communis omnium vel peregrinus magis”, “Eu desejo ser cidadão do mundo, em comunhão com tudo ou mesmo mais peregrino”

E finalmente, de grande pedagogia e actualidade: “Não nego que procuro a paz sempre que possível. Sou a favor de ouvir ambos os lados com ouvidos bem abertos. Amo a liberdade. Não servirei, nem posso servir, nenhum partido”

Assinatura de Damião de Goes num exemplar da sua Crónica do rei D. Manuel.

Dedicado a Erasmo e aos seus discípulos Damião de Goes e José Vitorino de Pina Martins, neste dia 28 de Outubro de 2013 e bem ampliado no de 2021, no qual Erasmo faria  555 anos, a ter nascido em 1466, já que não é certo. E como disse o deão da igreja de S. Paulo em Londres, seu amigo e sábio John Colet: Nomen Erasmi nunquam peribit, "O nome [e espírito] de Erasmo nunca perecerá…"  Saibamos sintonizá-lo, acolhê-lo e frutificá-lo…

                                                   

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