quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

A balada do rei do Thulé, de Goethe, por Antero de Quental e Gomes Leal, a versão deste dedicada a Antero de Quental. Com o poema musicado...

Na famosa carta  auto-biográfica enviada de Ponta Delgada ao seu admirador e tradutor Wilhelm Storck, em Maio de 1887, Antero de Quental confessava que durante os anos de 1856 a 1864, «no meio de caóticas leituras a que então me entregava, devorando com igual voracidade romances e livros de ciências naturais, poetas e publicistas e até teólogos, a leitura do Fausto de Goethe (na tradução francesa de Blaze de Bury), e o livro de Remusat sobre a nova filosofia alemã exerceram todavia sobre o meu espírito uma impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o Germanismo». Desse amor pela cultura alemã e a obra de Goethe ficaram três fragmentos traduzidos do Fausto, publicados em 1871 na revista A Folha. Microcosmos Literário, de Coimbra, um dos quais, A balada do Rei de Thule, iremos transcrever...

Uma edição de 1864 do Fausto, da biblioteca de Guilherme de Vasconcelos Abreu e que Antero de Quental poderá ter consultado.
A adesão ou apreciação precoce ao germanismo de Antero não o fizera perder naturalmente a sua lucidez crítica, independência e aspiração à verdade, a qual foi até intensificada a partir do aparecimento da nevrose em 1874 pois, questionando a sua existência passada e cosmovisão mais naturalista,  confessa a William Storck, mais à frente na mesma carta, que «o naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmónico, o de um Goethe ou de um Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado». E com efeito debatendo-se com as consequências de tal visão naturalista-materialista, as quais são o egoísmo, a cegueira da luta pela sobrevivência e o epicurismo,    interrogando-se com a seriedade e a energia, Antero fora levado  a reconhecer e afirmar «a voz da consciência moral» e a considerar que «o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento  psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas»; chegando mesmo a pensar que o Ocidente viria a gerar um misticismo ainda mais profundo e elevado que os do Oriente, pois conseguiria aprofundar e conciliar melhor os domínios externos ou científicos e os internos ou psíquicos, os quais ele tentou até apontar algumas das vias de acesso na base de um panpsiquismo e de um psicodinamismo espiritual. Algo que se está ainda hoje a realizar e a ser partilhado e compreendido, já que há muitas intencionalidades e narrativas oficiais materialistas, globalistas ou elitistas que controlam muitos dos meios de informação e os biliões de pessoas pouco individuadas ou despertas...

Seja pela  publicação na revista A Folha. Microcosmos Literário, ou  por diálogo com Antero de Quental, Gomes Leal (1848-1921), o poeta inspirado, boémio inveterado, o panfletário justiceiro, o republicano e revolucionário, o estudioso do ocultismo e das religiões e espiritualidades,  soube da tradução do episódio d'A balada do Rei de Thule, do Fausto de  Goethe, realizada por Antero de Quental e resolveu dar a sua versão ou, melhor, uma paráfrase bem mais vinícola, sensual e humorista e, embora escrita depois da versão de Antero, vamos apresentá-la em primeiro lugar, para nos elevarmos depois à alma mística de Antero de Quental, que aliás também havia forte em Gomes Leal, e que o levou mesmo a converter-se ao Catolicismo nos últimos anos da sua vida (algo que Antero não fez), tendo a doença e morte da sua mãe em 1910,  a quem amava estremadamente, sido para isso factor decisivo. Sincronicamente com este nossa interligação de Goethe, Antero de Quental e Gomes Leal, há a registar escrita, mas já em 1910, na página final do livro A Senhora da Melancolia, Avatares de um Ateu, a nota justificativa do título e da sua conversão: «A tese do Goethe era esta: que o verdadeiro homem de génio, mesmo afastado durante um largo período do tempo do ideal de Deus, regressa um certo dia sempre a ele, como fim inevitável e único de toda a Ciência e toda a actividade humana». Anote-se que houve outros escritores famosos a traduzirem a balada, tal Gerard Nerval (no youtube encontra-a), ou portugueses a traduzirem o Fausto de Goethe, ou partes dele, como Gomes Monteiro, e entre eles um grande amigo de Antero de Quental, Luís de Magalhães, que deu a sua versão d' A Taça do Rei de Thule e depois uma hermenêutica valiosa dela em verso.

Goethe e o seu génio ou estrela, no exemplar de Guilherme A. de Vasconcelos Abreu.

Oiçamos então Gomes Leal, quando era ainda sobretudo um panfletário e um boémio, baudeleriano e "satanista" pronto a poetizar a qualquer momento e com grande verve crítica ou provocadora, que o levara mesmo a ser preso por "promover o ódio às instituições e de incitar à guerra civil", quando era "a defesa do Justo, do Livre e do Direito" que o movia na sua elevada missão de poeta, como escreveu em nota justificativa no seu poema Herege, e sobre quem Antero em Janeiro de 1882, numa carta a João de Deus, pitorescamente dizia: «Se vires o Gomes Leal, diz-lhe que o considero completamente doido - doido de pedras - mas que o amo sempre.»

«Num país nada vizinho...
Em Tule, até mui distante,
Houve outrora um rei farsante,
Um rei amigo do vinho.

Quando a sua amante fiel
Mimosa e cheia de graça,
Morreu, deixou-lhe uma taça,
Que semelhava um tonel.

Era tamanha a grandeza
Da taça que nada iguala.
- Ficava sempre, ao esgotá-la,
El-rei debaixo da mesa.

Quase sempre ao lusco-fusco,
De noite, até horas mortas,
Folgava, as pernas já tortas,
Este rei velho e patusco!

E noite d'agreste vento,
Na sua mais alta torre,
Pensando em que tudo morre,
Tratou do seu testamento.

A sua amizade cega
Legava a todos dinheiro.
E a seu filho e seu herdeiro
Seu reino, seu povo... e a adega.

Da sua amizade em prova,
A todos dava uma graça.
Só aquela enorme taça
Levava El-Rei para a cova!

Um dia, os altos barões,
Fez juntar, para uma orgia,
Numa sala onde curtia
As suas indigestões.

E ali, depois de libar...
Passados curtos momentos,
Começou a ver, aos ventos,
Os seus castelos dançar.

Assoma, trocando o pé,
De taça em punho, à janela,
Mas nisto, tropeça... e ela
Vai levada da maré.

E afunda-se... mas tal revés
Tomba o rei morto de mágoa.
- Era esta a primeira vez
Que a taça se enchia d'água!»

                                        

Após a versão bastante báquica num sentido menor de Gomes Leal, passemos para a profundidade e seriedade da tradução quase literal do poema de Goethe por Antero de Quental, na qual vai enaltecer o amor a um belo e precioso cálice que a amada lhe oferecera e que para ele se tornara mais valioso que o cálice divino, seja o Graal, seja o da celebração da Eucaristia, e que servirá como psicompompo do desprendimento da sua alma para entrar nos mundos de Avalon ou nos jardins e pomares da imortalidade...

 

 «Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante.
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.
-
Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.
-
Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.
-
Chegada a hora da morte
Pôs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.
-
Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.
-
No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.
-
Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.

Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.
-
Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!»

O rei de Thule, ou da legendária Hiperboreia, terra e civilização extrema do Norte,  lança a taça para o lago profundo...     

                                                            
                                    Os olhos dados aos profundos mistérios da Consciência  e da Vida e Morte,,,

Antero de Quental mostra-nos um alto ser, um mestre da arte real, um portador de um belo e precioso Graal dado ou quem sabe co-criado com a sua amada,  que sabendo bem o valor do que de mais precioso realizara, sabe desprender-se do símbolo material, e entrega-o à Mãe Natureza, às águas e seus espíritos, ficando assim livre de problemas de transmissão e preservação na terra, talvez porque não tinha o discípulo ou discípula que poderia manter viva tal tradição de comunhão no cálice do coração...

Muita luz e amor nas almas de Goethe, Antero de Quental, Gomes Leal e, já agora, do comum amigo Fernando Leal, já que a este Gomes Leal dedica o poema logo a seguir ao dedicado a Antero, na 2ª edição das Claridades do Sul que consultámos, estando estes poemas contidos na Quinta parte do livro, intitulado Humorismo, e que se segue à 4ª do Misticismo, onde num dos poemas, Tristíssima, Gomes Leal trabalha noutro registo o Rei de Thule e o cálice.... 

Saibamos beber e arder no cálice do Amor.... Pax, Lux, Amor!

                              

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