Na
famosa carta auto-biográfica enviada de Ponta Delgada ao seu admirador e tradutor Wilhelm Storck,
em Maio de 1887, Antero de Quental confessava que durante os anos de
1856 a 1864, «no meio de caóticas leituras a que então me entregava,
devorando com igual voracidade romances e livros de ciências naturais,
poetas e publicistas e até teólogos, a leitura do Fausto de
Goethe (na tradução francesa de Blaze de Bury), e o livro de Remusat
sobre a nova filosofia alemã exerceram todavia sobre o meu espírito uma
impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado para o
Germanismo». Desse amor pela cultura alemã e a obra de Goethe ficaram três fragmentos traduzidos do Fausto, publicados em 1871 na revista A Folha. Microcosmos Literário, de Coimbra, um dos quais, A balada do Rei de Thule, iremos transcrever...
Uma edição de 1864 do Fausto, da biblioteca de Guilherme de Vasconcelos Abreu e que Antero de Quental poderá ter consultado. |
Seja pela publicação na revista A Folha. Microcosmos Literário, ou por diálogo com Antero de Quental, Gomes Leal (1848-1921), o
poeta inspirado, boémio inveterado, o panfletário justiceiro, o
republicano e revolucionário, o estudioso do ocultismo e das religiões e
espiritualidades, soube da tradução do episódio d'A balada do Rei de Thule, do Fausto
de Goethe, realizada por Antero de Quental e resolveu dar a sua versão
ou, melhor, uma paráfrase bem mais vinícola, sensual e humorista e,
embora escrita depois da versão de Antero, vamos apresentá-la em
primeiro lugar, para nos elevarmos depois à alma mística de Antero de
Quental, que aliás também havia forte em Gomes Leal, e que o levou
mesmo a converter-se ao Catolicismo nos últimos anos da sua vida (algo
que Antero não fez), tendo a doença e morte da sua mãe em 1910, a quem
amava estremadamente, sido para isso factor decisivo. Sincronicamente
com este nossa interligação de Goethe, Antero de Quental e Gomes Leal,
há a registar escrita, mas já em 1910, na página final do livro A Senhora da Melancolia, Avatares de um Ateu, a
nota justificativa do título e da sua conversão: «A tese do Goethe era
esta: que o verdadeiro homem de génio, mesmo afastado durante um largo
período do tempo do ideal de Deus, regressa um certo dia sempre a ele,
como fim inevitável e único de toda a Ciência e toda a actividade
humana». Anote-se que houve outros escritores famosos a traduzirem a
balada, tal Gerard Nerval (no youtube encontra-a), ou portugueses a traduzirem o Fausto de Goethe, ou partes dele, como Gomes Monteiro, e entre eles um grande amigo de Antero de Quental, Luís de Magalhães, que deu a sua versão d' A Taça do Rei de Thule e depois uma hermenêutica valiosa dela em verso.
Goethe e o seu génio ou estrela, no exemplar de Guilherme A. de Vasconcelos Abreu. |
Oiçamos
então Gomes Leal, quando era ainda sobretudo um panfletário e um
boémio, baudeleriano e "satanista" pronto a poetizar a qualquer momento e
com grande verve crítica ou provocadora, que o levara mesmo a ser preso
por "promover o ódio às instituições e de incitar à guerra civil",
quando era "a defesa do Justo, do Livre e do Direito" que o movia na sua
elevada missão de poeta, como escreveu em nota justificativa no seu
poema Herege, e sobre quem Antero em Janeiro de 1882, numa carta a
João de Deus, pitorescamente dizia: «Se vires o Gomes Leal, diz-lhe que
o considero completamente doido - doido de pedras - mas que o amo
sempre.»
Em Tule, até mui distante,
Houve outrora um rei farsante,
Um rei amigo do vinho.
Quando a sua amante fiel
Mimosa e cheia de graça,
Morreu, deixou-lhe uma taça,
Que semelhava um tonel.
Era tamanha a grandeza
Da taça que nada iguala.
- Ficava sempre, ao esgotá-la,
El-rei debaixo da mesa.
Quase sempre ao lusco-fusco,
De noite, até horas mortas,
Folgava, as pernas já tortas,
Este rei velho e patusco!
E noite d'agreste vento,
Na sua mais alta torre,
Pensando em que tudo morre,
Tratou do seu testamento.
A sua amizade cega
Legava a todos dinheiro.
E a seu filho e seu herdeiro
Seu reino, seu povo... e a adega.
Da sua amizade em prova,
A todos dava uma graça.
Só aquela enorme taça
Levava El-Rei para a cova!
Um dia, os altos barões,
Fez juntar, para uma orgia,
Numa sala onde curtia
As suas indigestões.
E ali, depois de libar...
Passados curtos momentos,
Começou a ver, aos ventos,
Os seus castelos dançar.
Assoma, trocando o pé,
De taça em punho, à janela,
Mas nisto, tropeça... e ela
Vai levada da maré.
E afunda-se... mas tal revés
Tomba o rei morto de mágoa.
- Era esta a primeira vez
Que a taça se enchia d'água!»
Após
a versão bastante báquica num sentido menor de Gomes Leal, passemos para a profundidade e
seriedade da tradução quase literal do poema de Goethe por Antero de
Quental, na qual vai enaltecer o amor a um belo e precioso cálice que a
amada lhe oferecera e que para ele se tornara mais valioso que o cálice
divino, seja o Graal, seja o da celebração da Eucaristia, e que
servirá como psicompompo do desprendimento da sua alma para entrar nos
mundos de Avalon ou nos jardins e pomares da imortalidade...
«Era uma vez um bom rei
Em Tule, essa ilha distante.
Ao morrer, deixou-lhe a amante
Um copo de oiro de lei.
-
Era um copo de oiro fino
Todo lavrado a primor;
Se fosse o cálix divino
Não lhe tinha mais amor.
-
Seus tristes olhos leais
Não tinham outra alegria:
E só por ele bebia
Nos seus banquetes reais.
-
Chegada a hora da morte
Pôs-se o rei a meditar
Grandezas da sua sorte,
Seus reinos à beira-mar.
-
Deixava um rico tesoiro,
Palácios, vilas, cidades;
De nada tinha saudades,
A não ser do copo de oiro.
-
No castelo da devesa,
Naquelas salas sem fim,
Mandou armar uma mesa
Para o último festim.
-
Convidou sem mais tardar
Os seus fiéis cavaleiros,
Para os brindes derradeiros
No castelo à beira-mar.
Então, vazando-a de um trago,
E com entranhada mágoa,
Pôs nas ondas o olhar vago
E atirou a taça à água.
-
Viu-a boiar suspendida,
'Té que as ondas a levaram
Os olhos se lhe toldaram,
E não bebeu mais na vida!»
O rei de Thule, ou da legendária Hiperboreia, terra e civilização extrema do Norte, lança a taça para o lago profundo... | |
Os olhos dados aos profundos mistérios da Consciência e da Vida e Morte,,,
Antero de Quental mostra-nos um alto ser, um mestre da arte real, um portador de um belo e precioso Graal dado ou quem sabe co-criado com a sua amada, que sabendo bem o valor do que de mais precioso realizara, sabe desprender-se do símbolo material, e entrega-o à Mãe Natureza, às águas e seus espíritos, ficando assim livre de problemas de transmissão e preservação na terra, talvez porque não tinha o discípulo ou discípula que poderia manter viva tal tradição de comunhão no cálice do coração...
Muita luz e amor nas almas de Goethe, Antero de Quental, Gomes Leal e, já agora, do comum amigo Fernando Leal, já que a este Gomes Leal dedica o poema logo a seguir ao dedicado a Antero, na 2ª edição das Claridades do Sul que consultámos, estando estes poemas contidos na Quinta parte do livro, intitulado Humorismo, e que se segue à 4ª do Misticismo, onde num dos poemas, Tristíssima, Gomes Leal trabalha noutro registo o Rei de Thule e o cálice....
Saibamos beber e arder no cálice do Amor.... Pax, Lux, Amor!
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