Ora tais livros, para além do que nos narram ou ensinam nas suas páginas, têm por detrás deles ou na sua origem um espírito feminino humano único, que percorreu a Terra, vivenciando uma série de circunstâncias e especificidades, absorvendo influências e leituras, desenvolvendo qualidades, compreensões e mestrias, e que deixou esse seu contributo para os tempos vindouros, como os nossos... Com que amor, esforço, trabalho e sacrifício eles nasceram não será porém fácil discernirmos se não houver indicações expressas ou investigação...
Quem foi essa alma, como eram os seus traços fisionómicos e psíquicos, pode ser uma demanda deveras difícil, embora por vezes haja apresentações, fotografias ou desenhos incluídos. As biografias, as referências de contemporâneos ou conhecidos ajudam muito a descortinar melhor a autora, e também algumas vezes a marginália do livro contém fontes preciosas, tais como dedicatórias, anotações e recortes de jornais apensos.
Nascida em 1897, filha do musicógrafo Joaquim José Marques, que perderá quando tinha 4 anos (caracterizando-o como "dotado de uma lhaneza, altruísmo e lealdade pouco vulgares") e de Laura Wake Marques, com quem viverá numa relação de profundo amor e de quem agradecerá a educação de lucidez e pureza, será pianista, aluna de Amélia Rey Colaço e Ruy Coelho, e cantora, publicando ainda várias obras, algumas delas com letras dos poetas Afonso Lopes Vieira e Alberto Monsaraz. É o caso dos Cantos Portugueses. Música impressa. Livro primeiro. Música de Laura Wake Marques; poesias de Afonso Lopes Vieira. Lisboa, 1920, a que se seguiu o Segundo e Terceiro Livro. Além de outras obras musicais, tal como O Canto em Portugal, dado à luz em Lisboa em 1932, publicará ainda dois pequenos livros de impressões, reflexões, meditações: Do Meu Lar... (Reflexões). Lisboa, Ferin, 1929, e as Almas (Deduções Psicológicas), 1936, de que vamos transcrever algumas partes mais valiosas. nas quais derrama, aos 39 anos, uma destilação de sabedoria já bem arguta, profunda e perene, que agradecemos, desejando muita luz e amor na sua alma...
A obra está dividida em vários capítulos: Almas Simples, as Almas são como as Flores, Almas inocentes, Almas Desamparadas, e assim sucessivamente Almas Apaixonadas, Femininas, Ressuscitadas, Superiores , Humildes, Tenebrosas, Heróicas, etc., e mostram uma alma muito sensível e sábia, partilhando em pequenos capítulos as suas reflexões e deduções sobre as pessoas, as paixões, o amor, os valores, os perigos, o caminho da integridade, da harmonia e da felicidade.
Este exemplar está animado magneticamente pela dedicatória manuscrita: «à querida Maria Teresa de Andrade Santos e ao seu excepcional talento de compositora...», datada de 5-VI-1937.
Para que tal se consiga, é necessário reagir energicamente contras tendências que, em cada ser, reclamam a sua parte na vida e recorrer à auto-sugestão, numa reeducação disciplinada, de cuja influência alguém possa aproveitar.
De longe vem o ditado: «Diz-me com quem lidas... dir-te-ei quem és».
A irresistível atracção que sentimos por determinadas pessoas, com evidente preponderância sobre o nosso espírito, vem, certamente, da reciprocidade de qualidades ou defeitos, cujas vibrações, já desenvolvidas na pessoa que domina estão apenas em embrião na pessoa que se deixa dominar.
Por muito superiores que as almas sejam, não lhes será fácil eximir-se ao poder de sugestão que as vai alterando para melhor ou pior.
Todos censuram desapiedadamente as pessoas revoltadas ou azedas, sem se lembrarem de que é a própria humanidade a culpada desse irritabilidade tão desagradável no trato».
Destacaremos o apelo a que saibamos controlar as atracções que nos serão funestas, através da auto-sugestão, ou talvez a meditação e consciencialização. Como Laura de dedicava à musica e ao canto é possível que a auto-sugestão, ou certos mantras cantados, lhe tivessem aflorado. Valioso também o apelo a que reconheçamos no revoltado alguém traumatizado pela sociedade.
Dos outros capítulos, eis alguns pensamentos valiosos da Laura (a bem amada de Petrarca): «Defendamos as crianças das impurezas que as possam contaminar,e, despertando-lhes a sensibilidade com que Deus as dotou, insinuemos-lhe ideias sadias e proveitosas.
Toda a criança normal tem uma clara intuição para ajuizar da justiça de quem a dirige e aborrece aqueles que a não sabem guiar com critério.
Não fujamos pois à canseira de aconselhar e educar com tenacidade e rectidão».
«Quem aspira a suavizar os males de uma alma dolorida, deve acompanhar-lhe o sofrimento em vez de pretender afastar-lho.
É um erro o supor que se podem abreviar as dores morais, por meio de distracções impróprias ou extemporâneas.
Só quem ainda não sofreu ainda desconhece a avidez, com que as almas torturadas gozam a angústia da sua dor e saudade infinda que as punge.
E apesar de pertencer só ao «Tempo» o grande poder de cansar e adormecer estas aflitivas apoquentações, diligenciemos, no entanto, amparar os desgraçados que abandonados ao convívio com indiferentes ou amigos inexperientes, mais sofreriam ainda.
É evidente que a doçura da voz amiga que lhes fala numa carícia persuasiva as acalma rapidamente, bastado mesmo um suave sorriso de quem lhe sente as mágoas para emprestar coragem a que melhor suportem a sua Cruz...».
Realcemos o falar órfico, em carícia sugestionante, bem natural nela. E daqui para frente apenas sublinharemos as partes mais fortes ou valiosas...
Do capítulo Almas Superiores, também há grande sabedoria de alma amadurecida: «Seria um benefício para a humanidade se, em vez de egoisticamente nos ocuparmos só da nossa alma, ajudássemos a desprender das inferioridades desta Vida aquelas que estão sob a nossa alçada. Diligenciemos fazê-las subir a um estado de perfeição a que não cheguem os tormentos mesquinhos, criados pelos espíritos acanhados e maus, pungindo apenas a Saudade e a Recordação de perdidos «Bens» em que palpitaram sentimentos nobres e puros.
Não é só, recolhendo-se a um convento que conseguimos afastar-nos do bulício estonteante das tentações humanas.
A calma está na limpidez da consciência e não no rigor dos preceitos religiosos a cumprir.
Essa paz incomparável, vem da humildade com que nos vamos despojando das pequenas misérias humanas, que tanto nos apoucam, e, sobretudo, da obediência com que nos formos resignando à Vontade de Deus, pedindo-lhe com sincera fé, nos dê forças e coragem para dominarmos as aspirações a que vamos perdendo o direito, por não termos conseguido realizá-las oportunamente».
«Ninguém tem o direito (homem ou mulher) de levianamente fazer nascer a esperança de um afecto, sem estar plenamente na convicção de que o sente.»
«Desculpemos também certas almas bondosas que, tendo a fraqueza de ser tão gulosas de doçura afectiva, como de doces delicados, não resistem à tentação de colher impressões nas que, ingenuamente, se lhes oferecem, supondo ser as eleitas, e, esperançadas em realizar o sonhado ideal, imaginam trazer consigo a magia amorosa que há-de merecer a constância que tanto se tem feito esperar...»
«Os opressores, além de atraírem sobre si as más vontades dos que lhes estão sob a alçada, vão inadvertidamente criando uma atmosfera de simpatia em torno daqueles que oprimem».
«As almas humildes gozam de uma bem-aventurança que as compensa largamente do prazer do luxo, de que a sua condição, naturalmente as priva.
A modéstia, de que são dotadas, leva-as a crer que são imerecedoras duma graça especial, razão por que apreciam e agradecem infinitamente a Deus a concessão de qualquer pequeno bem que passaria despercebido a quem, por sua vaidade e orgulho, se considerasse digno de melhor sorte».
«Suave cativeiro é o da alma que, tendo encontrado a sua metade, se completa deixando-se absorver pelo encantamento do seu irresistível domínio.
Tão raramente duas almas que se abraçam, ficam bem unidas, que, esse Bem excepcional, deveria ser sofregamente saboreado, por aqueles que o possuem.
Quem não se sacrifica, não ama; estima-se egoisticamente».
«Todo aquele que não tem carácter para manter as suas opiniões e defender os seus ideais, é indigno de poder ser considerado um cidadão conscientes dos seus deveres e dos seus direitos.
A neutralidade, embora admissível em certos casos, determina sempre comodidade, cobardia, ou insuficiência de espírito, quando não envolve falsidade».
«Exemplos de heroísmo e de bravura temos bastantes na História de Portugal para atestarem sobejamente o valor da nossa raça em vencer os seus adversários.
Porém, não menos para admirar são as almas, modestamente obscuras, que conseguem vencer-se a si próprias dominando o ímpeto das suas paixões, ou sufocando o despeito das suas mágoas».