sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Laura Wake Marques. "Almas (Deducções psicológicas)". 1937. E uma canção sua cantada por Lia Altavilla.

Os livros de mulheres são sempre uma mais valia de sensibilidade em relação aos dos homens e dão-lhes visões complementares, e se a partir da segunda metade do século XX as autoras foram crescendo em número, deixando de ser invulgares, as anteriores muitas vezes quase que morreram na lembrança das pessoas, à excepção de uma dúzia de mais famosas que são reeditadas ou estudadas sobrevivendo em prateleiras de bibliotecas públicas ou particulares pouco consultadas ou manuseadas, sentidas ou amadas.
Ora tais livros, para além do que nos narram ou ensinam nas suas páginas, têm por detrás deles ou na sua origem um espírito feminino humano único, que percorreu a Terra, vivenciando uma série de circunstâncias e especificidades, absorvendo influências e leituras, desenvolvendo qualidades, compreensões e mestrias, e que deixou esse seu contributo para os tempos vindouros, como os nossos... Com que amor, esforço, trabalho e sacrifício eles nasceram não será porém fácil discernirmos se não houver indicações expressas ou investigação...
Quem foi essa alma, como eram os seus traços fisionómicos e psíquicos, pode ser uma demanda deveras difícil, embora por vezes haja apresentações, fotografias ou desenhos incluídos. As biografias, as referências de contemporâneos ou conhecidos ajudam muito a descortinar melhor a autora, e também algumas vezes a marginália do livro contém fontes preciosas, tais como dedicatórias, anotações e recortes de jornais apensos.
 
Tendo comigo alguns desses livros de mulheres, nomeadamente dos anteriores a 1950 resolvi partilhar alguns para trazer ao de cima certas almas e seus ensinamentos. E o primeiro é Almas (Deduções Psicológicas) por Laura Wake Marques, impresso em Lisboa, na Sociedade Nacional de Tipografia, na rua do Século, em 1936, num livrinho de 111 páginas, com uma bela capa, bem artística, com um desenho quem sabe se da Laura, realizado por ela ou por algum amigo. Mas que deve ser dela, tanto mais por parecer ter a sua mãe nas costas ou fundo do desenho em unissono com o grande elogio que lhe faz...
No fim deste texto está uma ligação a uma música dela, que poderá ir ouvindo desde já...
Nascida em 1897, filha do musicógrafo Joaquim José Marques, que perderá quando tinha 4 anos (caracterizando-o como "dotado de uma lhaneza, altruísmo e lealdade pouco vulgares") e de Laura Wake Marques, com quem viverá numa relação de profundo amor e de quem agradecerá a educação de lucidez e pureza, será pianista, aluna de Amélia Rey Colaço e Ruy Coelho, e cantora, publicando ainda várias obras, algumas delas com letras dos poetas Afonso Lopes Vieira e Alberto Monsaraz. É o caso dos Cantos Portugueses. Música impressa. Livro primeiro. Música de Laura Wake Marques; poesias de Afonso Lopes Vieira. Lisboa, 1920, a que se seguiu o Segundo e Terceiro Livro. Além de outras obras musicais, tal como O Canto em Portugal, dado à luz em Lisboa em 1932, publicará ainda dois pequenos livros de impressões, reflexões, meditações: Do Meu Lar... (Reflexões). Lisboa, Ferin, 1929, e as Almas (Deduções Psicológicas), 1936, de que vamos transcrever algumas partes mais valiosas. nas quais derrama, aos 39 anos, uma destilação de sabedoria já bem arguta, profunda e perene, que agradecemos, desejando muita luz e amor na sua alma...
A obra está dividida em vários capítulos: Almas Simples, as Almas são como as Flores, Almas inocentes, Almas Desamparadas, e assim sucessivamente Almas Apaixonadas, Femininas, Ressuscitadas, Superiores , Humildes, Tenebrosas, Heróicas, etc., e mostram uma alma muito sensível e sábia, partilhando em pequenos capítulos as suas reflexões e deduções sobre as pessoas, as paixões, o amor, os valores, os perigos, o caminho da integridade, da harmonia e da felicidade.
Este exemplar está animado magneticamente pela dedicatória manuscrita: «à querida Maria Teresa de Andrade Santos e ao seu excepcional talento de compositora...», datada de 5-VI-1937.

Depois de no 1º capítulo agradecer aos seus pais, pelo amor e exemplos e aos médicos que trataram da mãe, no 2º cap., o único que não tem Almas no título, e só Sugestões, diz-nos: «Evitemos o contacto com pessoas cujo predomínio, consciente ou inconsciente, nos possa ser prejudicial. Quem seja psicólogo pode, não só fugir ao perigo das sugestões malévolas, como humanitariamente utilizar as benéficas.
Para que tal se consiga, é necessário reagir energicamente contras tendências que, em cada ser, reclamam a sua parte na vida e recorrer à auto-sugestão, numa reeducação disciplinada, de cuja influência alguém possa aproveitar.
De longe vem o ditado: «Diz-me com quem lidas... dir-te-ei quem és».
A irresistível atracção que sentimos por determinadas pessoas, com evidente preponderância sobre o nosso espírito, vem, certamente, da reciprocidade de qualidades ou defeitos, cujas vibrações, já desenvolvidas na pessoa que domina estão apenas em embrião na pessoa que se deixa dominar.
Por muito superiores que as almas sejam, não lhes será fácil eximir-se ao poder de sugestão que as vai alterando para melhor ou pior.
Todos censuram desapiedadamente as pessoas revoltadas ou azedas, sem se lembrarem de que é a própria humanidade a culpada desse irritabilidade tão desagradável no trato».
Destacaremos o apelo a que saibamos controlar as atracções que nos serão funestas, através da auto-sugestão, ou talvez a meditação e consciencialização. Como Laura de dedicava à musica e ao canto é possível que a auto-sugestão, ou certos mantras cantados, lhe tivessem aflorado. Valioso também o apelo a que reconheçamos no revoltado alguém traumatizado pela sociedade.
Dos outros capítulos, eis alguns pensamentos valiosos da Laura (a bem amada de Petrarca): «Defendamos as crianças das impurezas que as possam contaminar,e, despertando-lhes a sensibilidade com que Deus as dotou, insinuemos-lhe ideias sadias e proveitosas.
Toda a criança normal tem uma clara intuição para ajuizar da justiça de quem a dirige e aborrece aqueles que a não sabem guiar com critério.
Não fujamos pois à canseira de aconselhar e educar com tenacidade e rectidão».
«Quem aspira a suavizar os males de uma alma dolorida, deve acompanhar-lhe o sofrimento em vez de pretender afastar-lho.
É um erro o supor que se podem abreviar as dores morais, por meio de distracções impróprias ou extemporâneas.
Só quem ainda não sofreu ainda desconhece a avidez, com que as almas torturadas gozam a angústia da sua dor e saudade infinda que as punge.
E apesar de pertencer só ao «Tempo» o grande poder de cansar e adormecer estas aflitivas apoquentações, diligenciemos, no entanto, amparar os desgraçados que abandonados ao convívio com indiferentes ou amigos inexperientes, mais sofreriam ainda.
É evidente que a doçura da voz amiga que lhes fala numa carícia persuasiva as acalma rapidamente, bastado mesmo um suave sorriso de quem lhe sente as mágoas para emprestar coragem a que melhor suportem a sua Cruz...».
Realcemos o falar órfico, em carícia sugestionante, bem natural nela. E daqui para frente apenas sublinharemos as partes mais fortes ou valiosas...
Do capítulo Almas Superiores, também há grande sabedoria de alma amadurecida: «Seria um benefício para a humanidade se, em vez de egoisticamente nos ocuparmos só da nossa alma, ajudássemos a desprender das inferioridades desta Vida aquelas que estão sob a nossa alçada. Diligenciemos fazê-las subir a um estado de perfeição a que não cheguem os tormentos mesquinhos, criados pelos espíritos acanhados e maus, pungindo apenas a Saudade e a Recordação de perdidos «Bens» em que palpitaram sentimentos nobres e puros.
Não é só, recolhendo-se a um convento que conseguimos afastar-nos do bulício estonteante das tentações humanas.
A calma está na limpidez da consciência e não no rigor dos preceitos religiosos a cumprir.
Essa paz incomparável, vem da humildade com que nos vamos despojando das pequenas misérias humanas, que tanto nos apoucam, e, sobretudo, da obediência com que nos formos resignando à Vontade de Deus, pedindo-lhe com sincera fé, nos dê forças e coragem para dominarmos as aspirações a que vamos perdendo o direito, por não termos conseguido realizá-las oportunamente».
«Ninguém tem o direito (homem ou mulher) de levianamente fazer nascer a esperança de um afecto, sem estar plenamente na convicção de que o sente.»
«Desculpemos também certas almas bondosas que, tendo a fraqueza de ser tão gulosas de doçura afectiva, como de doces delicados, não resistem à tentação de colher impressões nas que, ingenuamente, se lhes oferecem, supondo ser as eleitas, e, esperançadas em realizar o sonhado ideal, imaginam trazer consigo a magia amorosa que há-de merecer a constância que tanto se tem feito esperar...»
«Os opressores, além de atraírem sobre si as más vontades dos que lhes estão sob a alçada, vão inadvertidamente criando uma atmosfera de simpatia em torno daqueles que oprimem».
«As almas humildes gozam de uma bem-aventurança que as compensa largamente do prazer do luxo, de que a sua condição, naturalmente as priva.
A modéstia, de que são dotadas, leva-as a crer que são imerecedoras duma graça especial, razão por que apreciam e agradecem infinitamente a Deus a concessão de qualquer pequeno bem que passaria despercebido a quem, por sua vaidade e orgulho, se considerasse digno de melhor sorte».
«Suave cativeiro é o da alma que, tendo encontrado a sua metade, se completa deixando-se absorver pelo encantamento do seu irresistível domínio.
Tão raramente duas almas que se abraçam, ficam bem unidas, que, esse Bem excepcional, deveria ser sofregamente saboreado, por aqueles que o possuem.
Quem não se sacrifica, não ama; estima-se egoisticamente».
«Todo aquele que não tem carácter para manter as suas opiniões e defender os seus ideais, é indigno de poder ser considerado um cidadão conscientes dos seus deveres e dos seus direitos.
A neutralidade, embora admissível em certos casos, determina sempre comodidade, cobardia, ou insuficiência de espírito, quando não envolve falsidade».
«Exemplos de heroísmo e de bravura temos bastantes na História de Portugal para atestarem sobejamente o valor da nossa raça em vencer os seus adversários.
Porém, não menos para admirar são as almas, modestamente obscuras, que conseguem vencer-se a si próprias dominando o ímpeto das suas paixões, ou sufocando o despeito das suas mágoas». 
Quanto à questão se "o amor verdadeiro se sente uma só vez na vida", diz Laura Wake Marques que depende, pois «tem-se visto recomeçar muitas existências que se suponham completamente aniquiladas, talvez porque no coração humano, subsistam ignoradas cordas sensíveis, emudecidas por ainda não terem sido despertadas», e no meio desta dedução descreve a sua percepção do amor pleno ou verdadeiro, que poderá então voltar: «A pessoa que teve a suprema e raríssima ventura de encontrar no mundo - a outra metade do seu ser, o eco da sua alma, amou real e perfeitamente, completando a sua personalidade numa comunhão de ideais e sentimentos; sentiu  a luz quente do sol e admirou-lhe o brilho, gozando-o em toda a sua intensidade».
Possam as pessoas chegar a esta comunhão de ideais e sentimentos, pensamentos e aspirações, que a Laura parece ter atingido,  e sentirem o espírito que cada uma é, e que as une, e simultaneamente o fogo do Sol do Amor que as aquece, alegre e transfigura...
Segue-se uma bela canção, a única no Youtube, da qual pelo menos a música é da Laura e a voz, maravilhosa, é da Lia Altavilla, notável cantora e amiga, uma coincidência feliz e que me fez escrever este artigo ouvindo vezes sem conta a canção. Ao piano, tão bem, Fernando Domingos...  Na unidade do espírito divino, muita luz e amor em todos!

                            

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Ākāśa. Glossário de termos espirituais Indianos e de Yoga Vedanta: 1º- Ākāśa, o espaço infinito...

 Em 2008, publiquei um livro clássico da espiritualidade indiana intitulado
Aṣṭāvakra Gītā, o Cântico da Consciência Suprema, nas publicações Maitreya, do Porto,  no qual, após a tradução comentada do texto, incluí no fim um sucinto glossário dos termos de yoga e de filosofia indiana mais correntes naquela obra e em geral.
Passados estes anos resolvi partilhar algumas das entradas de tal glossário dada a profusão de professores e alunos de Yoga, muitos deles com  pouco conhecimento e realização espiritual e por vezes mais especializados em malabarismo, cursos de formação caros, propaganda, marketing, ou mesmo sectarização e manipulação...
Estas entradas do glossário estão como obra aberta a acrescentos (o que farei em todas elas), sem as tornar demasiado grandes e ilegíveis nem ambicionar à perfeita clarificação, antes considerando como um pequeno contributo para a inspiração das pessoas no Caminho.

Ākāśa: palavra sânscrita proveniente da raiz kas- irradiar, brilhar. Os principais sentidos desta palavra são vibração substante universal, espaço em expansão,  éter  da manifestação cósmica, ou seja, o mais subtil ou elevado dos cinco (ou mesmo sete) elementos primordiais do Cosmos, também presentes na tradição grega.
Nas cosmologia da darshana Vaisesika é visto com uma das substâncias ou substractos primordiais, com os outros quatro elementos, e com o tempo, o espaço, a alma e a mente.   Nascendo o cosmos subtil e material da inter-relação entre Espírito e Matéria, ou Purusa e Prakriti, os dois primeiros níveis formados são Budhi ou Mahat, e Ahamkara, e é este que se subdivide nos 5 elementos subtis ou tanamatras, sendo o Ākāśa como a matéria subtilíssima, ou luz, constituído por átomos ou partículas e ligado ao som, shabda.

Na prática yoguica dos Cinco Elementos, através de respirações vizualizações e concentrações, procura-se uma purificação interna destes cinco elementos ou bhutas, terra, água, fogo, ar e éter no corpo humano, a ligação ao Ākāśa efectuando-se mais específicamente na zona acima das sobrancelhas, ou seja, junto ao órgão subtil de visão espiritual, e  os sons mantricos atribuídos foram o Om e o Ha......
Tal como o som, a energia e o tempo, estaria presente mesmo no estado de não-manifestação, segundo a visão ou filosofia Sāṃkhya, mas sem dúvida que pouco se sabe ao certo do que pre-existe em tal domínio pré-primordial.
 
No Vedānta, e no tratado que traduzi Aṣṭāvakra Gītā, Ākāśa é visto ou realizado como o espaço infinito do céu considerando-se tal uma imagem análoga à infinitude de Ātman, o Espírito e espaço puro da Consciência primordial. É recomendado para suporte ou apoio inicial à meditação no Espírito, Ātman ou Brahman, a Divindade ou Espírito Único. Esta contemplação deve ser depois interiorizada, de modo a que a vastidão do espaço exterior se torne una com a do espaço interior. Para quem gosta das nuvens e céus, este é um aspecto a considerar-se quando desfrutamos contemplações belas, simples, ggratuitas, dos céus que nos cobrem, de certo modo aprofundando-as para um nível mais elevado.
A ligação entre o céu interior e o exterior está ensinada numa das mais valiosas Upanishads,  e nela ouvimos. Chāndogya Up. VIII, 1. 1. o sábio Āruni:: «Nesta cidade de Brahman [o corpo] há uma casa ou gruta, um pequeno lótus (do coração), e nele um pequeno espaço que se deve investigar, que se deve ardentemente desejar conhecer. (...) 1. 3. Verdadeiramente este espaço dentro do coração é tão grande como o espaço do universo. O céu e a terra estão dentro dele (...)». Acrescentando-se mais à frente, no cap. III,  que «uma pessoa deve adorar o Ākāśa como Brahman». E de facto a omnipresença do Espírito no espaço é uma realização relativamente acessível (num nível simples) a quem sabe ou consegue ver e sentir no espaço aparentemente vazio a sua consciência-existência, por vezes verdaeiramente sentindo-a fora dos limites do corpo e atravessando ou cobrindo ou espalhando-se no céu...
Também o Taittirīya Upanishad II. 7. 1,2 diz-nos: «Ao Princípio era o Não Existente. Dele nasceu o Existente. Este Ātman constitui-se a Si mesmo e por isso é chamado Bem constituído. Este Bem constituído é de facto a fonte ou essência do Bem, Amor ou Sabor (rasa). Quem recebe ou se liga a esta fonte do Amor torna-se cheio de felicidade (ānanda). Quem poderia respirar, quem poderia viver, se o ākāśa não fosse esta Felicidade? Portanto, ele é a causa desta Felicidade.». 
Estas afirmações sugerem  a meditação no espaço celestial e cósmico, como análogo ao interior consciencial,  e portanto de Ākāśa como o Ātman primordial indiviso omnipresente. E valorizam também a utilidade das respirações profundas em que nos enchemos de ākāśa, que se pode considerar o substracto do prāṇa (a energia vital do ar, que também foi identificada nos estágios iniciais da especulação védica e upanishádica a Ātman), e nos harmonizamos e sentimos mais felizes, ou até no que o yogis denominaram o corpo de felicidade ou glória, ānandamayakosha, o mais próximo da consciência da refulgência do espírito, Ātman.
 A expressão moderna “arquivos akásicos” refere-se à possibilidade de se conservar tudo o que aconteceu numa memória de tipo fotográfica ou holográfica no espaço e esta ideia, desenvolvida sobretudo no século XIX com o ocultismo e a  teosofia, prestou-se a muita mistificação e logro, em tal se destacando os teósofos Leadbeater e Annie Besant e mais modernamente Elizabet Claire Prophet, pelo meio se incluindo algo da antrosoposofia, dos rosacruzes, da eubiose, Entre nós em vários grupos e autores do esoterismo ou new age lusitano  têm inventado e romanceado muito de reencarnações e iniciações de Maria Madalena, S. António, S. Isabel, Nuno Álvares, etc, etc, ora fantasiando  com mundos subterrâneos ora com extra-terrestres e quintas iniciações, oranarrando histórias mirabolantes provenientes do Ākāśa subjectivamente manipulado...
As pessoas devem estar de sobreaviso para a grande imaginação que reina ainda nas leituras de aura e da grande exploração que caracteriza as regressões a vidas passadas, por vezes pagas a preços bem caros, criando buracos no invisível para entidades estranhas à individualidade pseudo-regredida.
Mais sentido ou veracidade podem ter as imagens que se conservam no interior de uma pessoa quanto a esta sua vida, e das quais tem havido comprovações de formas diferentes, por várias pessoas em geral próximas da morte, ou em anestesias e desmaios, e que mais simbólicas ou mais fotográficas, mostram um subtil registo interior e não tanto num arquivo "akasico exterior.
Saiba pois contemplar o espaço e os céus azuis, com ou sem nuvens significativas, e tente perseverar mais limpo de lixo informativo, ou de barulhos, algo bem difícil hoje na tão mediatizada sociedade em que vivemos, de modo a que sinta mais o espaço ou Ākāśa interior da sua alma e se descontraia e assim consiga sentir mais o seu Atman individual e o seu corpo de ananda, felicidade-amor.
Fiquemos ainda com um texto da tradição indiana já um pouco posterior, o de um dos cinco ensinamentos budistas Mahayana atribuídos a Maitreya, o Uttara Tantra I, 61-62 e que nos transmite um sentido da pureza inalterável do espírito em si:
«A essência espiritual é como espaço, sendo sem causa e incondicionado. Está despido dos factores de complexidade. E não conhece nascimento, estabilização e destruição.
A essência Espiritual que é pura e radiante é inalterável como o espaço. E não pode ser poluída por manchas ocasionais».
Saibamos limpar-nos e recuperar algo da nossa essência pura contemplando os céus e o Ākāśa ou espaço infinito...

 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Ensinamentos sobre os cavaleiros e cavaleiras ou fiéis do Amor e do santo Graal.

                                                        

I - É uma fonte montanhosa o coração do ser no caminho espiritual e, embora não se veja, ao aproximar-nos saboreamos inesperada e inconscientemente a sua frescura, limpidez e cores luminosas e radiantes.
Não podemos abrir ou encostar muito o peito pois o sentimento ou líquido que brota é tão saboroso e puro que se sente ameno, quase quente e logo nos torna alma ardente. Fala-se então da água transformada em vinho ou néctar...
Os místicos do Amor comunicam fortemente pela proximidade corporal, de olhar ou de voz mas também conseguem sentir e comunicar nas brisas e nas linguagem dos pássaros, atravessando extensas regiões ou distâncias graças à chama unitiva que arde neles e os liga.
A qualquer momento, dadas certas condições, o cavaleiro ou cavaleira do Amor pode comungar interiormente no cálice, e  comunicar com os que vibram na mesma frequência de aspirações, intenções, pensamentos e sentimentos, certamente com mais ou menos consciência conforme o seu grau de despertar espiritual.
O nosso coração é um fogo mesmo na noite escura, mesmo nas épocas de pandemias ou desânimos. Só temos de nos aproximarmos dele e fazermos sair as neblinas de dúvidas e medos pela fé, a vontade de sermos o espírito e o fogo de amor que está em nós...

II - Os seres raramente se vêem e sentem como templos da Divindade, e mesmo as pessoas que amam ou se amam pouco realizam tal sacralidade de si mesmos. Cada encontro devia ser uma celebração, um culto, um despertar intensificado, mas pouca gente está atenta e aspira a tal...

Diariamente pelos nossos esforços e meditações, sentimentos e vivências vamos purificando o nosso interior anímico e configurando a nossa alma subtilmente, ora como templo, ora santuário ou graal, e em certos momentos realiza-se mais a religação...

O Graal é um símbolo do coração espiritual, tornado cálice de amor, cálice de aspiração, cálice de comunhão.

Os seres que querem pertencer à cavalaria do santo Graal devem estar conscientes de que é uma grande obra manterem o cálice do seu coração ardente de amor, no meio do dia a dia e de todas as suas tarefas e dificuldades. Por isso evitam ou cortam mesmo com televisões e noticiários, ou pessoas noticiaristas... 

Face a tanta agitação dos eteres e particulas anímicas devem desabrochar ou dedilhar no seu peito com frequência apelos, orações, afirmações e cantos  espirituais e musicais, com os quais se fortificam, elevam, invcam, ajudam, comungam e emanam.

Não são necessárias muitas palavras, uma, duas, três, ou poucas mais,  e bastam para constituir uma oração ou um mantra capaz de harmonizar e acalmara as vagas das energias anímicas e dos pensamentos, os astais negativos e para estabelecer um ritmo que se torna ponte para o nosso corpo espiritual e as ligações a que ele aspira ou pode receber.

   III - A cavalaria do Amor é uma arte de esculpir a alma, tão rica quão dispersável,  e de ligá-la ao espírito, aos mestres, anjos, ao arcanjo de Portugal e à Divindade, e que pela sua dificuldade exige perseverança, fidelidade, e por isso se chamam também aos seus pares  Fiéis do Amor. 

Ser-se fiel ao Amor não é fácil nos nossos dias em que por tantos motivos vemos vacilarem tantos valores éticos e conviviais da sociedade humana, em que tanto grassa a ignorância, a insensibilidade, a corrupção, o salve-se quem puder... Sabermos ser tanto justos como amorosos é a grande obra...

O Amor é então um fogo de esperança na noite escura e que precisa de ser soprado, cultivado, interiormente, perseverantemente, para que o nosso relacionamente social seja também banhado pelos raios de Amor que desentranhamos para vencer as dificuldades, sofrimentos e obscuridades que nos rodeiam.

Podemos concluir consciencializando-nos mais que  o fogo do Amor Divino é a vibração vivenciada ou a vivenciar mais importante dos seres que fazem parte da demanda  do santo Graal, ou mesmo da sua cavalaria e certamente do seu sacerdócio, os Mestres...

Conto espiritual: Manuel e a demanda. Chegar a meio da vida e interrogar-se sobre a realização espiritual e divina.

Este conto foi escrito quando tinha quarenta e quatro anos, e transcrito para o blogue há dois anos e hoje 22-02-2022 partilhado publicamente com pequeninas melhorias:
«A noite caíra há muito sobre as redondezas, mas, naquele quarto, não, as trevas não entrariam... Assim pensava Manuel, enquanto os acordes duma música apoiavam-no naquela fé que a sua alma poderia ultrapassar todos os desejos dispersivos e fraquezas mentais e concentrar-se perseverantemente o suficiente  para descobrir o segredo do misterioso Espírito que cada um é, e que há tantos e tantos anos é demandado e pouco esclarecido.
Manuel ultrapassara a metade da duração de uma vida normal, o ano da estabilização, dizia, 44, o quatro e quatro. Mas afinal nesse  ano o peso que pusera às costas fora de mais e escorregara, partindo a base superior do corpo, a bacia, e tivera de suportar as dores, a imobilidade, as noites longas e os companheiros de hospital enlouquecendo mas equilibrados pelas enfermeiras e empregadas simpáticas e radiosas. Porém, aí estava ele de novo à tona da água, uns quatro meses depois do acidente. Manuel coxeava ainda, só poderia correr ao fim de seis meses, mas sobretudo o que ele queria era amadurecer correctamente:  não fossem só as marcas da cicatriz certeira, mas crescida pelos colóides, a atestar a sua passagem pela morte da anestesia. Não, Manuel, queria que houvesse um ensinamento fundo da gravidade e fragilidade de vida a entranhar-se em si, tal como a anestesia, mas que não durasse só umas horas e antes permanecesse para sempre, dando-lhe alegria na responsabilidade por tudo o que fizesse, de modo a que norteado ou
guiado por princípios éticos e ligações luminosas ao Cosmos as suas acções  frutificassem  correctamente.
Fundamentalmente parecia-lhe que cada acto devia ser assumido na dimensão e responsabilidade de o elevar ou de o rebaixar, tanto a si como aos outros. Cada acto, fosse de pensamento ou dos sentidos, mesmo privado, era público, era universal e devia ser antevisto nas suas consequências futuras.
  A questão da sobrevivência, a necessidade a curto prazo de encontrar uma casa, obrigavam-no a não se dispersar tanto na exterioridade e de definir uma estratégia de trabalho rentável,  mas compatível ou de acordo com os seus ideais e vibrações: Manuel era alguém no caminho espiritual, um peregrino, um espiritual.  Sentia porém tal como uma alma ou como um homem?
Não, não se considerava nem se sentia bem um homem, que para si significava algo de feito pelo exterior, num amadurecimento tosco, pouco sensível e profundo. Como porém também  não era
um jovem, Manuel hesitava em como encaixar-se ou assumir-se. As suas forças mais elevadas, ou ideais orientavam-se para a descoberta do espírito e no fundo para a perenidade, a vida eterna, fora das idades e identificações sociais. Todavia,  como o espírito, embora deixasse filtrar uma luz colorida nas meditações ou se mostrasse lá muito ao alto e longe, não se lhe dava plenamente, Manuel sofria uma certa frustração pois já não conseguia seguir a sociabilidade dos grupos nem das religiões e, ao mesmo tempo, ainda não se tinha auto-realizado suficientemente para ter certezas e poder responder e apontar as veredas aos que o interrogavam, atraídos pela sua calma ou sabedoria.
Uma noite de Lua Cheia bem poderosa, daquelas em que uma grande halo colorido rodeia a nossa dona Luna, Manuel lembrou-se e reflectiu sobre a velha história de Siddharta Gautama, o Budha: ao fim de muito tempo de austeridades e jejuns resolvera aceitar a comida e o leite que uma jovem pastora lhe oferecera e, satisfeito o corpo e provavelmente a afectividade, determinara-se a só findar a meditação quando se lhe desvendasse  o sentido mais elevado da vida. Meditou, meditou então firmemente até atingir um estado de grande claridade e apaziguamento interior: o fim dum ego carente e sem luz, sem dúvida uma iluminação da alma pelo espírito. E logo o segredo do nobre Caminho da Verdade se desenrolou diante do seu olhar interior, calmamente, com um rigor não só lógico mas sobretudo libertador: quem desejava ignorantemente sofreria, quem trilhasse o caminho correcto do desprendimento e da acção e pensamento justos, esse libertar-se-ia da ignorância, ilusão, apego e sofrimento e alcançaria a libertação e uma certa iluminação.

Mas, interrogava-se Manuel, como conseguir estar sem desejos, quando tantas eram as preocupações que se tinham apoderado dos seres humanos no decorrer dos séculos, cada vez mais confrontados com duras e tão manipuladas e complexificadas obrigações e sobrevivências?
Manuel podia-se considerar um afortunado pois estava rodeado da mais alta sabedoria de todos os povos, já que era bibliotecário e a sua mão ou diligência podia estender-se para todos os séculos da história e relacionar-se com os mais altos génios em diferentes línguas. À sua frente a Obra completa de Platão na edição renascentista do florentino Marsilio Ficino, à sua esquerda a Philosophia Perennis do bispo de Chisamo na ilha de Creta e bibliotecário da biblioteca do Vaticano, Agustino Steuco. Mais ao lado, as revistas mais modernas com os últimos pensamentos originais dos instrutores ou mestres da actualidade. Todavia, como já muitas vezes os percorrera conhecia o seu valor, e sentia que os níveis mais elevados de realização eram mesmo muito difíceis de se encontrarem nos nossos dias pelo que uma réstia de descrença introduzira-se na sua demanda.
Quem sabe se alguma vez nesta vida seria possível uma pessoa estabilizar-se numa vivência cem por cento verdadeira, justa e amorosa? Com tantas influências e encontros, informações e reacções, como é que o coração e a cabeça estabilizavam suficientemente no discernimento e na meditação do essencial, do primordial, deixando de ser influenciados por todo o tipo de desinformação e discórdia que as pessoas, forças ou mesmo entidades negativas semeavam nos vários lados em diálogo, competição, conflito? 

E, passando da via contemplativa para a activa, quem conseguia saber com certeza que o que estava a fazer era o melhor que poderia ou deveria realizar?
Manuel procurava chegar às certezas, às coerências. Certos opções a fazer ainda o dilaceravam. No dia seguinte iria proferir uma conferência para um grupo de estudantes de filosofia sobre o papel das bibliotecas no século XXI: Livros versus Computadores.
Quando Manuel manuseava os últimos livros que tinham chegado à biblioteca percebia quase só pela leitura dos títulos e dos índices e uma ou duas páginas o valor da obra, além do que sentia
da harmonia que eles transmitiriam aos seus leitores pela capa, a textura do papel e a mancha tipográfica
Já não era o mesmo quando os livros eram impressos com caracteres de chumbo, quando parecia que a polpa dos dedos e os olhos saboreavam as reentrâncias e saliências que se erguiam em cada página que se lia. Agora, com a impressão offsett as letras apareciam rasteiras e comparativamente como que desbotadas e numa uniformidade de supermercado ou centro comercial gigantesco. Mas mesmo assim algumas, pela combinação de bons caracteres e papel, transmitiam ainda um sabor de relevo e vida, talvez para durarem quase como os livros quinhentistas que eram ainda a coroa de qualquer biblioteca. 
Também as grandes enciclopédias que ocupavam prateleiras e prateleiras, começavam agora a ser reduzidas a dimensões ínfimas pelos novos formatos de memória digital, embora as mais recentes e populares continuassem apenas a poder ser consultadas manual e volumosamente. Quanto às obras só  manuseáveis com muitas restrições, devido à antiguidade, raridade e fragilidade, essas não proporcionavam nas versões digitais uma leitura viva e fiel pois perdiam-se vários pormenores importantes, em especial nas manuscritas e assim tal acessibilidade multiplicada e para todos obtida pela digitalização pública também tinha os seus defeitos
Manuel sabia que o CD ou o audiolivro tinham a sua utilidade mas eram mais  intermediários a acrescer na cadeia da comunicação da sabedoria e embora o autor  se aproximasse assimde quem não o podia ouvir, ou então ler no original, também se distanciava, pois nada havia como o diálogo oral, o manuscrito escrito pelas mãos do autor ou do discípulo, manifestando até grafologicamente ora a firmeza e a hesitação ora o entusiasmo e a paixão.
Ao longo da História a força maior da comunicação passou para os livros por várias razões, tais como a efemeridade das palavras, vivas só no momento histórico em que são pronunciadas, a irresponsabilidade com que podem ser ditas, ou o fanatismo ou malícia com que podem ser alteradas, e que sendo fixadas em textos já não seriam tão modificadas, sobretudo quando havia muitas cópias e datadas. Com a invenção da imprensa no séc. XV passaram a chegar a muito mais pessoas, ultrapassando também as limitações do tempo e unindo a Terra toda, sobretudo na época Descobrimentos dos caminhos marítimos liderados pelos portugueses que uniram verdadeiramente quase todos os povos e estenderam a tipografia dos caracteres por África e Ásia.
Os jornais, as revistas e os almanaque, em especial a partir de meados do séc. XIX, tornaram-se grandes meios de comunicação, ainda que mais informando do quotidiano, da actualidade efémera, embora  contendo
também o apelo revolucionário, a reflexão madura, a sabedoria perene, o conto moral. Todavia nos séculos XX e XXI essa imprensa e tipo de publicações que tanto comunicavam a milhares e milhões de pessoas, passaram a ser ultrapassados pelas rádios, televisões, filmes e sobretudo a internet, com uma quase infinita digitalização dos livros, permitindo-se assim a cada pessoa onde quer que esteja o acesso a quase toda a informação que quiser e quase de forma instantânea.
Manuel era porém sobretudo um amante dos livros, embora também gostasse dos folhetos e das revistas, pois em tudo se manifestava artística e engenhosamente a sede de sabedoria e beleza da Humanidade. Apercebera-se disso não só pela alegria de os encontrar, o gosto de os ler e de os sentir como meios de comunicação supra-espaciais e supra-temporais, fazendo-o comungar num corpo místico da Humanidade, constituído pelos grandes autores ou os grandes temas, mas também quando uma ou outra vez na vida ensalivara ao buscar e encontrar um livro; ou quando sofrera o trespasse agudo, duma relação potencial com um livro bom, cambaleando e ficando frio, por uns momentos, quando uma pessoa amiga lho retirara das mãos e se apoderara dele pedindo rapidamente o preço ao livreiro alfarrabista e ficando com ele. Mas sabia distanciar-se do que poderia ser o ego e o instinto da posse, algo que ao longo da vida vivenciaria mais vezes, desprendendo-se de algum livro emprestado que nunca mais lhe fora devolvido ou mesmo em relação a um ou outro que desaparecia.
Embora próximo das melhoras obras do mundo na Biblioteca pública, Manuel gostava ainda assim de procurar ou encontrar para a Biblioteca ou para si edições antigas ou novas de sabedoria, e sendo suas de lê-las e anotá-las, e de dialogar com leitores ou pessoas amigas sobre tais autores e obras.
Naquele fim de tarde ventoso e frio, que ainda assim vira o Manuel a saltar o jantar e a aproveitar melhor o tempo na busca de algum sinal mais profundo do misterioso espírito na meditação, subitamente algo veio abanar duma vez por todas o ramram de Manuel.
Segurava na mão um livro já antigo, onde se recomendavam certas práticas de concentração para se conseguir imobilizar o fluxo de pensamentos e para que o olhar passasse da percepção meramente sensorial para uma dimensão interior. E pôs toda a sua determinação nesse dia: era Lua cheia, estava cansado de procurar a verdade, de admitir a existência de Deus sem o ver. Não aquela noite ou ia ou rachava. Tinha de receber a visão divina. Nada mais o satisfaria. Renunciava a todas as perguntas sobre a conferência de amanhã, sobre a namorada que queria mesmo viver consigo, sobre o dinheiro que precisava de fazer, ou as pessoas que o iriam consultar. Não, tudo isso ficaria agora à porta do seu quarto e, fechado sobre si próprio, a luz divina tinha de vir preencher a fome que o começava a apertar demais, e tinha de o iluminar sobre as prioridades do seu caminhar para a Verdade e a Divindade.
Pousando o livro e os dedos que escreviam, cobrindo melhor as suas pernas com um cobertor, Manuel fechou os olhos, procurou imobilizar-se e praticar a técnica recomendada: procurar imaginar que a cabeça se abria como uma flor a desabrochar silenciosa e graciosamente até que do Alto se fizesse ou derramasse a Luz. Tinha a noite pela sua frente, e quanto à fome, uma vez já entrada a noite, seria inglório estar a sobrecarregar o corpo com arroz integral ou sopa de legumes.
Não, Manuel queria mais do que a suave 
envelhecimento  burguês das refeições diárias a horas certas, nem queria continuar a caminhar e a ser um corpo de palavras, actos e mutáveis pensamentos, mantido por ambições e esforços mundanos, mas sem sentir mais forte ou claramente a presença espiritual, a bênção divina, ou a Luz.
Despir-se-ia de todas as afeições e desejos e lançar-se-ia decidido na travessia solitária das correntes dispersivas que o separavam dum conhecimento e estado de amor maior.
Passaram-se então cerca de três horas, ora de silêncio ora de aspiração, e por fim Manuel ergueu-se da sua meditação, consciente de que três aspectos mais iluminados destacavam-se, e o objectivo principal era estar mais consciente do espírito. E realmente se durante o dia uma pessoa não está muito auto-consciente, como o pode estar nos momentos decisivos?
Unir então a consciência pessoal ao Espírito  era o caminho. Manter mais permanentemente a identidade luminosa consciencializada, numa consciência ampliada e subtil que não se vê mas que se sente e se é.
Enviar amor para certas pessoas mais necessitadas surgira-lhe a certo momento natural e fortemente. Antes conseguira sentir e dizer interiormente: “eu sou o Espírito” e, depois de algum tempo, quando uma vaga fímbria de luz azulada atravessava a sua visão interior, sentira e intuíra algo da omnipresença ou compresença divina. Algo tão fantástico, e que a nossa mente se esquece ou se incapacita quase completamente...
Manuel sabia que tinha pela frente o lento envelhecimento do corpo, uma natural diminuição das faculdades mentais e por isso consciencializava-se de que tinha de trabalhar enquanto gerava ou recebia  a luz e tinha forças. Certamente que continuaria a trabalhar, a aconselhar livros e autores, a dialogar e a conviver humanamente, mas sentia que não podia desperdiçar tanto tempo e que era imperioso que a realização espiritual e a ligação à Divindade se acentuasse mais no íntimo da sua alma e chegasse à sua personalidade.
Continuaria pois a meditar diariamente, e a vivenciar no dia a dia essa aspiração a que Deus nascesse  nele, trazendo mais à consciência normal a consciência espiritual vertical e ampliada de estar em aspiração
-sintonia-união com a Divindade, e a sua luz e felicidade.
Manuel prometeu não se esquecer disto diariamente. Lá estava uma das razões dos votos diários e das orações e meditações matinais que abrem a janela superior nossa ao espírito, à Divindade e às suas correntes de luz, harmonia e amor, que em geral são veiculadas pelos mestres, anjos, espíritos...
Lembrou-se também dos momentos em que os sinos tocavam ao meio dia e ao fim da tarde e como eles serviam para introduzir uma lembrança vertical e prometeu estar também mais atento e aberto durante o dia, capaz de ouvir os sons subtis no ouvido espiritual, e alinhar-se antes das refeições, ou ao deitar-se, e executar verticalizações e orações rápidas mas sentidas de quando em quando. Não oravam os islâmicos seis vezes por dia, lembrando-se assim mais intensamente de Deus ou mesmo do espírito?
Chegaria o que realizara, e o que prometera?
Diz-se que o caminho conquista-se diariamente,  e que é tão difícil ou estreito como caminhar sobre o fio duma navalha. Por isso Manuel passou a ler o que escrevera nos seus diários antigos com mais frequência, para absorver e reaprofundar as suas realizações, e ganhar forças no passado para produzir um futuro frutuoso, nas suas linhas próprias de crescimento. E poder gerar diálogos, livros e conferências,  como contributos bons para a Humanidade sábia.
Um dia diremos como Manuel aos 50 anos, uma data ainda mais simbólica, se contemplou a si mesmo. Ou seja, anos mais tarde, se Manuel começou a interrogar se era o nascimento de Deus nele que acontecia, ou se era o abrir-se mais à omnipresença divina, à Unidade. Ou se devia apenas aceitar calmamente e muito grato  o que do mundo espiritual e da Divindade decidissem mostrar-lhe ou derramar
pelos seus sentidos interiores. Pelo menos por agora, Manuel aceitou na Luz caminhar, trabalhar, ser em aspiração e amor, sabedoria e desprendimento, e continuar a compartilhar convivialmente o seu amor pelos livros e a cultura sábia e fraterna aos outros.