terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Ākāśa. Glossário de termos espirituais Indianos e de Yoga Vedanta: 1º- Ākāśa, o espaço infinito...

 Em 2008, publiquei um livro clássico da espiritualidade indiana intitulado
Aṣṭāvakra Gītā, o Cântico da Consciência Suprema, nas publicações Maitreya, do Porto,  no qual, após a tradução comentada do texto, incluí no fim um sucinto glossário dos termos de yoga e de filosofia indiana mais correntes naquela obra e em geral.
Passados estes anos resolvi partilhar algumas das entradas de tal glossário dada a profusão de professores e alunos de Yoga, muitos deles com  pouco conhecimento e realização espiritual e por vezes mais especializados em malabarismo, cursos de formação caros, propaganda, marketing, ou mesmo sectarização e manipulação...
Estas entradas do glossário estão como obra aberta a acrescentos (o que farei em todas elas), sem as tornar demasiado grandes e ilegíveis nem ambicionar à perfeita clarificação, antes considerando como um pequeno contributo para a inspiração das pessoas no Caminho.

Ākāśa: palavra sânscrita proveniente da raiz kas- irradiar, brilhar. Os principais sentidos desta palavra são vibração substante universal, espaço em expansão,  éter  da manifestação cósmica, ou seja, o mais subtil ou elevado dos cinco (ou mesmo sete) elementos primordiais do Cosmos, também presentes na tradição grega.
Nas cosmologia da darshana Vaisesika é visto com uma das substâncias ou substractos primordiais, com os outros quatro elementos, e com o tempo, o espaço, a alma e a mente.   Nascendo o cosmos subtil e material da inter-relação entre Espírito e Matéria, ou Purusa e Prakriti, os dois primeiros níveis formados são Budhi ou Mahat, e Ahamkara, e é este que se subdivide nos 5 elementos subtis ou tanamatras, sendo o Ākāśa como a matéria subtilíssima, ou luz, constituído por átomos ou partículas e ligado ao som, shabda.

Na prática yoguica dos Cinco Elementos, através de respirações vizualizações e concentrações, procura-se uma purificação interna destes cinco elementos ou bhutas, terra, água, fogo, ar e éter no corpo humano, a ligação ao Ākāśa efectuando-se mais específicamente na zona acima das sobrancelhas, ou seja, junto ao órgão subtil de visão espiritual, e  os sons mantricos atribuídos foram o Om e o Ha......
Tal como o som, a energia e o tempo, estaria presente mesmo no estado de não-manifestação, segundo a visão ou filosofia Sāṃkhya, mas sem dúvida que pouco se sabe ao certo do que pre-existe em tal domínio pré-primordial.
 
No Vedānta, e no tratado que traduzi Aṣṭāvakra Gītā, Ākāśa é visto ou realizado como o espaço infinito do céu considerando-se tal uma imagem análoga à infinitude de Ātman, o Espírito e espaço puro da Consciência primordial. É recomendado para suporte ou apoio inicial à meditação no Espírito, Ātman ou Brahman, a Divindade ou Espírito Único. Esta contemplação deve ser depois interiorizada, de modo a que a vastidão do espaço exterior se torne una com a do espaço interior. Para quem gosta das nuvens e céus, este é um aspecto a considerar-se quando desfrutamos contemplações belas, simples, ggratuitas, dos céus que nos cobrem, de certo modo aprofundando-as para um nível mais elevado.
A ligação entre o céu interior e o exterior está ensinada numa das mais valiosas Upanishads,  e nela ouvimos. Chāndogya Up. VIII, 1. 1. o sábio Āruni:: «Nesta cidade de Brahman [o corpo] há uma casa ou gruta, um pequeno lótus (do coração), e nele um pequeno espaço que se deve investigar, que se deve ardentemente desejar conhecer. (...) 1. 3. Verdadeiramente este espaço dentro do coração é tão grande como o espaço do universo. O céu e a terra estão dentro dele (...)». Acrescentando-se mais à frente, no cap. III,  que «uma pessoa deve adorar o Ākāśa como Brahman». E de facto a omnipresença do Espírito no espaço é uma realização relativamente acessível (num nível simples) a quem sabe ou consegue ver e sentir no espaço aparentemente vazio a sua consciência-existência, por vezes verdaeiramente sentindo-a fora dos limites do corpo e atravessando ou cobrindo ou espalhando-se no céu...
Também o Taittirīya Upanishad II. 7. 1,2 diz-nos: «Ao Princípio era o Não Existente. Dele nasceu o Existente. Este Ātman constitui-se a Si mesmo e por isso é chamado Bem constituído. Este Bem constituído é de facto a fonte ou essência do Bem, Amor ou Sabor (rasa). Quem recebe ou se liga a esta fonte do Amor torna-se cheio de felicidade (ānanda). Quem poderia respirar, quem poderia viver, se o ākāśa não fosse esta Felicidade? Portanto, ele é a causa desta Felicidade.». 
Estas afirmações sugerem  a meditação no espaço celestial e cósmico, como análogo ao interior consciencial,  e portanto de Ākāśa como o Ātman primordial indiviso omnipresente. E valorizam também a utilidade das respirações profundas em que nos enchemos de ākāśa, que se pode considerar o substracto do prāṇa (a energia vital do ar, que também foi identificada nos estágios iniciais da especulação védica e upanishádica a Ātman), e nos harmonizamos e sentimos mais felizes, ou até no que o yogis denominaram o corpo de felicidade ou glória, ānandamayakosha, o mais próximo da consciência da refulgência do espírito, Ātman.
 A expressão moderna “arquivos akásicos” refere-se à possibilidade de se conservar tudo o que aconteceu numa memória de tipo fotográfica ou holográfica no espaço e esta ideia, desenvolvida sobretudo no século XIX com o ocultismo e a  teosofia, prestou-se a muita mistificação e logro, em tal se destacando os teósofos Leadbeater e Annie Besant e mais modernamente Elizabet Claire Prophet, pelo meio se incluindo algo da antrosoposofia, dos rosacruzes, da eubiose, Entre nós em vários grupos e autores do esoterismo ou new age lusitano  têm inventado e romanceado muito de reencarnações e iniciações de Maria Madalena, S. António, S. Isabel, Nuno Álvares, etc, etc, ora fantasiando  com mundos subterrâneos ora com extra-terrestres e quintas iniciações, oranarrando histórias mirabolantes provenientes do Ākāśa subjectivamente manipulado...
As pessoas devem estar de sobreaviso para a grande imaginação que reina ainda nas leituras de aura e da grande exploração que caracteriza as regressões a vidas passadas, por vezes pagas a preços bem caros, criando buracos no invisível para entidades estranhas à individualidade pseudo-regredida.
Mais sentido ou veracidade podem ter as imagens que se conservam no interior de uma pessoa quanto a esta sua vida, e das quais tem havido comprovações de formas diferentes, por várias pessoas em geral próximas da morte, ou em anestesias e desmaios, e que mais simbólicas ou mais fotográficas, mostram um subtil registo interior e não tanto num arquivo "akasico exterior.
Saiba pois contemplar o espaço e os céus azuis, com ou sem nuvens significativas, e tente perseverar mais limpo de lixo informativo, ou de barulhos, algo bem difícil hoje na tão mediatizada sociedade em que vivemos, de modo a que sinta mais o espaço ou Ākāśa interior da sua alma e se descontraia e assim consiga sentir mais o seu Atman individual e o seu corpo de ananda, felicidade-amor.
Fiquemos ainda com um texto da tradição indiana já um pouco posterior, o de um dos cinco ensinamentos budistas Mahayana atribuídos a Maitreya, o Uttara Tantra I, 61-62 e que nos transmite um sentido da pureza inalterável do espírito em si:
«A essência espiritual é como espaço, sendo sem causa e incondicionado. Está despido dos factores de complexidade. E não conhece nascimento, estabilização e destruição.
A essência Espiritual que é pura e radiante é inalterável como o espaço. E não pode ser poluída por manchas ocasionais».
Saibamos limpar-nos e recuperar algo da nossa essência pura contemplando os céus e o Ākāśa ou espaço infinito...

 


2 comentários:

Magga Barbosa disse...

Gratidão pela partilha, texto esclarecedor e profundo. Om

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças, Magga. Só agora vi o seu comentário. Votos de boas criatividades, além das contemplações do vasto akasa do Brasil.