Este conto foi escrito quando tinha quarenta e quatro anos, e transcrito para o blogue há dois anos e hoje 22-02-2022 partilhado publicamente com pequeninas melhorias:
«A noite caíra há muito sobre as redondezas, mas, naquele quarto, não, as trevas não entrariam... Assim pensava Manuel, enquanto os acordes duma música apoiavam-no naquela fé que a sua alma poderia ultrapassar todos os desejos dispersivos e fraquezas mentais e concentrar-se perseverantemente o suficiente para descobrir o segredo do misterioso Espírito que cada um é, e que há tantos e tantos anos é demandado e pouco esclarecido.
Manuel ultrapassara a metade da duração de uma vida normal, o ano da estabilização, dizia, 44, o quatro e quatro. Mas afinal nesse ano o peso que pusera às costas fora de mais e escorregara, partindo a base superior do corpo, a bacia, e tivera de suportar as dores, a imobilidade, as noites longas e os companheiros de hospital enlouquecendo mas equilibrados pelas enfermeiras e empregadas simpáticas e radiosas. Porém, aí estava ele de novo à tona da água, uns quatro meses depois do acidente. Manuel coxeava ainda, só poderia correr ao fim de seis meses, mas sobretudo o que ele queria era amadurecer correctamente: não fossem só as marcas da cicatriz certeira, mas crescida pelos colóides, a atestar a sua passagem pela morte da anestesia. Não, Manuel, queria que houvesse um ensinamento fundo da gravidade e fragilidade de vida a entranhar-se em si, tal como a anestesia, mas que não durasse só umas horas e antes permanecesse para sempre, dando-lhe alegria na responsabilidade por tudo o que fizesse, de modo a que norteado ou guiado por princípios éticos e ligações luminosas ao Cosmos as suas acções frutificassem correctamente.
Fundamentalmente parecia-lhe que cada acto devia ser assumido na dimensão e responsabilidade de o elevar ou de o rebaixar, tanto a si como aos outros. Cada acto, fosse de pensamento ou dos sentidos, mesmo privado, era público, era universal e devia ser antevisto nas suas consequências futuras.
A questão da sobrevivência, a necessidade a curto prazo de encontrar uma casa, obrigavam-no a não se dispersar tanto na exterioridade e de definir uma estratégia de trabalho rentável, mas compatível ou de acordo com os seus ideais e vibrações: Manuel era alguém no caminho espiritual, um peregrino, um espiritual. Sentia porém tal como uma alma ou como um homem?
Não, não se considerava nem se sentia bem um homem, que para si significava algo de feito pelo exterior, num amadurecimento tosco, pouco sensível e profundo. Como porém também não era jáum jovem, Manuel hesitava em como encaixar-se ou assumir-se. As suas forças mais elevadas, ou ideais orientavam-se para a descoberta do espírito e no fundo para a perenidade, a vida eterna, fora das idades e identificações sociais. Todavia, como o espírito, embora deixasse filtrar uma luz colorida nas meditações ou se mostrasse lá muito ao alto e longe, não se lhe dava plenamente, Manuel sofria uma certa frustração pois já não conseguia seguir a sociabilidade dos grupos nem das religiões e, ao mesmo tempo, ainda não se tinha auto-realizado suficientemente para ter certezas e poder responder e apontar as veredas aos que o interrogavam, atraídos pela sua calma ou sabedoria.
Uma noite de Lua Cheia bem poderosa, daquelas em que uma grande halo colorido rodeia a nossa dona Luna, Manuel lembrou-se e reflectiu sobre a velha história de Siddharta Gautama, o Budha: ao fim de muito tempo de austeridades e jejuns resolvera aceitar a comida e o leite que uma jovem pastora lhe oferecera e, satisfeito o corpo e provavelmente a afectividade, determinara-se a só findar a meditação quando se lhe desvendasse o sentido mais elevado da vida. Meditou, meditou então firmemente até atingir um estado de grande claridade e apaziguamento interior: o fim dum ego carente e sem luz, sem dúvida uma iluminação da alma pelo espírito. E logo o segredo do nobre Caminho da Verdade se desenrolou diante do seu olhar interior, calmamente, com um rigor não só lógico mas sobretudo libertador: quem desejava ignorantemente sofreria, quem trilhasse o caminho correcto do desprendimento e da acção e pensamento justos, esse libertar-se-ia da ignorância, ilusão, apego e sofrimento e alcançaria a libertação e uma certa iluminação.
Mas, interrogava-se Manuel, como conseguir estar sem desejos, quando tantas eram as preocupações que se tinham apoderado dos seres humanos no decorrer dos séculos, cada vez mais confrontados com duras e tão manipuladas e complexificadas obrigações e sobrevivências?
Manuel podia-se considerar um afortunado pois estava rodeado da mais alta sabedoria de todos os povos, já que era bibliotecário e a sua mão ou diligência podia estender-se para todos os séculos da história e relacionar-se com os mais altos génios em diferentes línguas. À sua frente a Obra completa de Platão na edição renascentista do florentino Marsilio Ficino, à sua esquerda a Philosophia Perennis do bispo de Chisamo na ilha de Creta e bibliotecário da biblioteca do Vaticano, Agustino Steuco. Mais ao lado, as revistas mais modernas com os últimos pensamentos originais dos instrutores ou mestres da actualidade. Todavia, como já muitas vezes os percorrera conhecia o seu valor, e sentia que os níveis mais elevados de realização eram mesmo muito difíceis de se encontrarem nos nossos dias pelo que uma réstia de descrença introduzira-se na sua demanda.
Quem sabe se alguma vez nesta vida seria possível uma pessoa estabilizar-se numa vivência cem por cento verdadeira, justa e amorosa? Com tantas influências e encontros, informações e reacções, como é que o coração e a cabeça estabilizavam suficientemente no discernimento e na meditação do essencial, do primordial, deixando de ser influenciados por todo o tipo de desinformação e discórdia que as pessoas, forças ou mesmo entidades negativas semeavam nos vários lados em diálogo, competição, conflito?
E, passando da via contemplativa para a activa, quem conseguia saber com certeza que o que estava a fazer era o melhor que poderia ou deveria realizar?
Manuel procurava chegar às certezas, às coerências. Certos opções a fazer ainda o dilaceravam. No dia seguinte iria proferir uma conferência para um grupo de estudantes de filosofia sobre o papel das bibliotecas no século XXI: Livros versus Computadores.
Quando Manuel manuseava os últimos livros que tinham chegado à biblioteca percebia quase só pela leitura dos títulos e dos índices e uma ou duas páginas o valor da obra, além do que sentia da harmonia que eles transmitiriam aos seus leitores pela capa, a textura do papel e a mancha tipográfica
Já não era o mesmo quando os livros eram impressos com caracteres de chumbo, quando parecia que a polpa dos dedos e os olhos saboreavam as reentrâncias e saliências que se erguiam em cada página que se lia. Agora, com a impressão offsett as letras apareciam rasteiras e comparativamente como que desbotadas e numa uniformidade de supermercado ou centro comercial gigantesco. Mas mesmo assim algumas, pela combinação de bons caracteres e papel, transmitiam ainda um sabor de relevo e vida, talvez para durarem quase como os livros quinhentistas que eram ainda a coroa de qualquer biblioteca.
Manuel ultrapassara a metade da duração de uma vida normal, o ano da estabilização, dizia, 44, o quatro e quatro. Mas afinal nesse ano o peso que pusera às costas fora de mais e escorregara, partindo a base superior do corpo, a bacia, e tivera de suportar as dores, a imobilidade, as noites longas e os companheiros de hospital enlouquecendo mas equilibrados pelas enfermeiras e empregadas simpáticas e radiosas. Porém, aí estava ele de novo à tona da água, uns quatro meses depois do acidente. Manuel coxeava ainda, só poderia correr ao fim de seis meses, mas sobretudo o que ele queria era amadurecer correctamente: não fossem só as marcas da cicatriz certeira, mas crescida pelos colóides, a atestar a sua passagem pela morte da anestesia. Não, Manuel, queria que houvesse um ensinamento fundo da gravidade e fragilidade de vida a entranhar-se em si, tal como a anestesia, mas que não durasse só umas horas e antes permanecesse para sempre, dando-lhe alegria na responsabilidade por tudo o que fizesse, de modo a que norteado ou guiado por princípios éticos e ligações luminosas ao Cosmos as suas acções frutificassem correctamente.
Fundamentalmente parecia-lhe que cada acto devia ser assumido na dimensão e responsabilidade de o elevar ou de o rebaixar, tanto a si como aos outros. Cada acto, fosse de pensamento ou dos sentidos, mesmo privado, era público, era universal e devia ser antevisto nas suas consequências futuras.
A questão da sobrevivência, a necessidade a curto prazo de encontrar uma casa, obrigavam-no a não se dispersar tanto na exterioridade e de definir uma estratégia de trabalho rentável, mas compatível ou de acordo com os seus ideais e vibrações: Manuel era alguém no caminho espiritual, um peregrino, um espiritual. Sentia porém tal como uma alma ou como um homem?
Não, não se considerava nem se sentia bem um homem, que para si significava algo de feito pelo exterior, num amadurecimento tosco, pouco sensível e profundo. Como porém também não era jáum jovem, Manuel hesitava em como encaixar-se ou assumir-se. As suas forças mais elevadas, ou ideais orientavam-se para a descoberta do espírito e no fundo para a perenidade, a vida eterna, fora das idades e identificações sociais. Todavia, como o espírito, embora deixasse filtrar uma luz colorida nas meditações ou se mostrasse lá muito ao alto e longe, não se lhe dava plenamente, Manuel sofria uma certa frustração pois já não conseguia seguir a sociabilidade dos grupos nem das religiões e, ao mesmo tempo, ainda não se tinha auto-realizado suficientemente para ter certezas e poder responder e apontar as veredas aos que o interrogavam, atraídos pela sua calma ou sabedoria.
Uma noite de Lua Cheia bem poderosa, daquelas em que uma grande halo colorido rodeia a nossa dona Luna, Manuel lembrou-se e reflectiu sobre a velha história de Siddharta Gautama, o Budha: ao fim de muito tempo de austeridades e jejuns resolvera aceitar a comida e o leite que uma jovem pastora lhe oferecera e, satisfeito o corpo e provavelmente a afectividade, determinara-se a só findar a meditação quando se lhe desvendasse o sentido mais elevado da vida. Meditou, meditou então firmemente até atingir um estado de grande claridade e apaziguamento interior: o fim dum ego carente e sem luz, sem dúvida uma iluminação da alma pelo espírito. E logo o segredo do nobre Caminho da Verdade se desenrolou diante do seu olhar interior, calmamente, com um rigor não só lógico mas sobretudo libertador: quem desejava ignorantemente sofreria, quem trilhasse o caminho correcto do desprendimento e da acção e pensamento justos, esse libertar-se-ia da ignorância, ilusão, apego e sofrimento e alcançaria a libertação e uma certa iluminação.
Mas, interrogava-se Manuel, como conseguir estar sem desejos, quando tantas eram as preocupações que se tinham apoderado dos seres humanos no decorrer dos séculos, cada vez mais confrontados com duras e tão manipuladas e complexificadas obrigações e sobrevivências?
Manuel podia-se considerar um afortunado pois estava rodeado da mais alta sabedoria de todos os povos, já que era bibliotecário e a sua mão ou diligência podia estender-se para todos os séculos da história e relacionar-se com os mais altos génios em diferentes línguas. À sua frente a Obra completa de Platão na edição renascentista do florentino Marsilio Ficino, à sua esquerda a Philosophia Perennis do bispo de Chisamo na ilha de Creta e bibliotecário da biblioteca do Vaticano, Agustino Steuco. Mais ao lado, as revistas mais modernas com os últimos pensamentos originais dos instrutores ou mestres da actualidade. Todavia, como já muitas vezes os percorrera conhecia o seu valor, e sentia que os níveis mais elevados de realização eram mesmo muito difíceis de se encontrarem nos nossos dias pelo que uma réstia de descrença introduzira-se na sua demanda.
Quem sabe se alguma vez nesta vida seria possível uma pessoa estabilizar-se numa vivência cem por cento verdadeira, justa e amorosa? Com tantas influências e encontros, informações e reacções, como é que o coração e a cabeça estabilizavam suficientemente no discernimento e na meditação do essencial, do primordial, deixando de ser influenciados por todo o tipo de desinformação e discórdia que as pessoas, forças ou mesmo entidades negativas semeavam nos vários lados em diálogo, competição, conflito?
E, passando da via contemplativa para a activa, quem conseguia saber com certeza que o que estava a fazer era o melhor que poderia ou deveria realizar?
Manuel procurava chegar às certezas, às coerências. Certos opções a fazer ainda o dilaceravam. No dia seguinte iria proferir uma conferência para um grupo de estudantes de filosofia sobre o papel das bibliotecas no século XXI: Livros versus Computadores.
Quando Manuel manuseava os últimos livros que tinham chegado à biblioteca percebia quase só pela leitura dos títulos e dos índices e uma ou duas páginas o valor da obra, além do que sentia da harmonia que eles transmitiriam aos seus leitores pela capa, a textura do papel e a mancha tipográfica
Já não era o mesmo quando os livros eram impressos com caracteres de chumbo, quando parecia que a polpa dos dedos e os olhos saboreavam as reentrâncias e saliências que se erguiam em cada página que se lia. Agora, com a impressão offsett as letras apareciam rasteiras e comparativamente como que desbotadas e numa uniformidade de supermercado ou centro comercial gigantesco. Mas mesmo assim algumas, pela combinação de bons caracteres e papel, transmitiam ainda um sabor de relevo e vida, talvez para durarem quase como os livros quinhentistas que eram ainda a coroa de qualquer biblioteca.
Também as grandes enciclopédias que ocupavam prateleiras e prateleiras, começavam agora a ser reduzidas a dimensões ínfimas pelos novos formatos de memória digital, embora as mais recentes e populares continuassem apenas a poder ser consultadas manual e volumosamente. Quanto às obras só manuseáveis com muitas restrições, devido à antiguidade, raridade e fragilidade, essas não proporcionavam nas versões digitais uma leitura viva e fiel pois perdiam-se vários pormenores importantes, em especial nas manuscritas e assim tal acessibilidade multiplicada e para todos obtida pela digitalização pública também tinha os seus defeitos
Manuel sabia que o CD ou o audiolivro tinham a sua utilidade mas eram mais intermediários a acrescer na cadeia da comunicação da sabedoria e embora o autor se aproximasse assimde quem não o podia ouvir, ou então ler no original, também se distanciava, pois nada havia como o diálogo oral, o manuscrito escrito pelas mãos do autor ou do discípulo, manifestando até grafologicamente ora a firmeza e a hesitação ora o entusiasmo e a paixão.
Ao longo da História a força maior da comunicação passou para os livros por várias razões, tais como a efemeridade das palavras, vivas só no momento histórico em que são pronunciadas, a irresponsabilidade com que podem ser ditas, ou o fanatismo ou malícia com que podem ser alteradas, e que sendo fixadas em textos já não seriam tão modificadas, sobretudo quando havia muitas cópias e datadas. Com a invenção da imprensa no séc. XV passaram a chegar a muito mais pessoas, ultrapassando também as limitações do tempo e unindo a Terra toda, sobretudo na época Descobrimentos dos caminhos marítimos liderados pelos portugueses que uniram verdadeiramente quase todos os povos e estenderam a tipografia dos caracteres por África e Ásia.
Os jornais, as revistas e os almanaque, em especial a partir de meados do séc. XIX, tornaram-se grandes meios de comunicação, ainda que mais informando do quotidiano, da actualidade efémera, embora contendo também o apelo revolucionário, a reflexão madura, a sabedoria perene, o conto moral. Todavia nos séculos XX e XXI essa imprensa e tipo de publicações que tanto comunicavam a milhares e milhões de pessoas, passaram a ser ultrapassados pelas rádios, televisões, filmes e sobretudo a internet, com uma quase infinita digitalização dos livros, permitindo-se assim a cada pessoa onde quer que esteja o acesso a quase toda a informação que quiser e quase de forma instantânea.
Manuel era porém sobretudo um amante dos livros, embora também gostasse dos folhetos e das revistas, pois em tudo se manifestava artística e engenhosamente a sede de sabedoria e beleza da Humanidade. Apercebera-se disso não só pela alegria de os encontrar, o gosto de os ler e de os sentir como meios de comunicação supra-espaciais e supra-temporais, fazendo-o comungar num corpo místico da Humanidade, constituído pelos grandes autores ou os grandes temas, mas também quando uma ou outra vez na vida ensalivara ao buscar e encontrar um livro; ou quando sofrera o trespasse agudo, duma relação potencial com um livro bom, cambaleando e ficando frio, por uns momentos, quando uma pessoa amiga lho retirara das mãos e se apoderara dele pedindo rapidamente o preço ao livreiro alfarrabista e ficando com ele. Mas sabia distanciar-se do que poderia ser o ego e o instinto da posse, algo que ao longo da vida vivenciaria mais vezes, desprendendo-se de algum livro emprestado que nunca mais lhe fora devolvido ou mesmo em relação a um ou outro que desaparecia.
Embora próximo das melhoras obras do mundo na Biblioteca pública, Manuel gostava ainda assim de procurar ou encontrar para a Biblioteca ou para si edições antigas ou novas de sabedoria, e sendo suas de lê-las e anotá-las, e de dialogar com leitores ou pessoas amigas sobre tais autores e obras.
Naquele fim de tarde ventoso e frio, que ainda assim vira o Manuel a saltar o jantar e a aproveitar melhor o tempo na busca de algum sinal mais profundo do misterioso espírito na meditação, subitamente algo veio abanar duma vez por todas o ramram de Manuel.
Segurava na mão um livro já antigo, onde se recomendavam certas práticas de concentração para se conseguir imobilizar o fluxo de pensamentos e para que o olhar passasse da percepção meramente sensorial para uma dimensão interior. E pôs toda a sua determinação nesse dia: era Lua cheia, estava cansado de procurar a verdade, de admitir a existência de Deus sem o ver. Não aquela noite ou ia ou rachava. Tinha de receber a visão divina. Nada mais o satisfaria. Renunciava a todas as perguntas sobre a conferência de amanhã, sobre a namorada que queria mesmo viver consigo, sobre o dinheiro que precisava de fazer, ou as pessoas que o iriam consultar. Não, tudo isso ficaria agora à porta do seu quarto e, fechado sobre si próprio, a luz divina tinha de vir preencher a fome que o começava a apertar demais, e tinha de o iluminar sobre as prioridades do seu caminhar para a Verdade e a Divindade.
Pousando o livro e os dedos que escreviam, cobrindo melhor as suas pernas com um cobertor, Manuel fechou os olhos, procurou imobilizar-se e praticar a técnica recomendada: procurar imaginar que a cabeça se abria como uma flor a desabrochar silenciosa e graciosamente até que do Alto se fizesse ou derramasse a Luz. Tinha a noite pela sua frente, e quanto à fome, uma vez já entrada a noite, seria inglório estar a sobrecarregar o corpo com arroz integral ou sopa de legumes.
Não, Manuel queria mais do que a suave envelhecimento burguês das refeições diárias a horas certas, nem queria continuar a caminhar e a ser um corpo de palavras, actos e mutáveis pensamentos, mantido por ambições e esforços mundanos, mas sem sentir mais forte ou claramente a presença espiritual, a bênção divina, ou a Luz.
Despir-se-ia de todas as afeições e desejos e lançar-se-ia decidido na travessia solitária das correntes dispersivas que o separavam dum conhecimento e estado de amor maior.
Passaram-se então cerca de três horas, ora de silêncio ora de aspiração, e por fim Manuel ergueu-se da sua meditação, consciente de que três aspectos mais iluminados destacavam-se, e o objectivo principal era estar mais consciente do espírito. E realmente se durante o dia uma pessoa não está muito auto-consciente, como o pode estar nos momentos decisivos?
Unir então a consciência pessoal ao Espírito era o caminho. Manter mais permanentemente a identidade luminosa consciencializada, numa consciência ampliada e subtil que não se vê mas que se sente e se é.
Enviar amor para certas pessoas mais necessitadas surgira-lhe a certo momento natural e fortemente. Antes conseguira sentir e dizer interiormente: “eu sou o Espírito” e, depois de algum tempo, quando uma vaga fímbria de luz azulada atravessava a sua visão interior, sentira e intuíra algo da omnipresença ou compresença divina. Algo tão fantástico, e que a nossa mente se esquece ou se incapacita quase completamente...
Manuel sabia que tinha pela frente o lento envelhecimento do corpo, uma natural diminuição das faculdades mentais e por isso consciencializava-se de que tinha de trabalhar enquanto gerava ou recebia a luz e tinha forças. Certamente que continuaria a trabalhar, a aconselhar livros e autores, a dialogar e a conviver humanamente, mas sentia que não podia desperdiçar tanto tempo e que era imperioso que a realização espiritual e a ligação à Divindade se acentuasse mais no íntimo da sua alma e chegasse à sua personalidade.
Continuaria pois a meditar diariamente, e a vivenciar no dia a dia essa aspiração a que Deus nascesse nele, trazendo mais à consciência normal a consciência espiritual vertical e ampliada de estar em aspiração-sintonia-união com a Divindade, e a sua luz e felicidade.
Manuel prometeu não se esquecer disto diariamente. Lá estava uma das razões dos votos diários e das orações e meditações matinais que abrem a janela superior nossa ao espírito, à Divindade e às suas correntes de luz, harmonia e amor, que em geral são veiculadas pelos mestres, anjos, espíritos...
Lembrou-se também dos momentos em que os sinos tocavam ao meio dia e ao fim da tarde e como eles serviam para introduzir uma lembrança vertical e prometeu estar também mais atento e aberto durante o dia, capaz de ouvir os sons subtis no ouvido espiritual, e alinhar-se antes das refeições, ou ao deitar-se, e executar verticalizações e orações rápidas mas sentidas de quando em quando. Não oravam os islâmicos seis vezes por dia, lembrando-se assim mais intensamente de Deus ou mesmo do espírito?
Chegaria o que realizara, e o que prometera?
Diz-se que o caminho conquista-se diariamente, e que é tão difícil ou estreito como caminhar sobre o fio duma navalha. Por isso Manuel passou a ler o que escrevera nos seus diários antigos com mais frequência, para absorver e reaprofundar as suas realizações, e ganhar forças no passado para produzir um futuro frutuoso, nas suas linhas próprias de crescimento. E poder gerar diálogos, livros e conferências, como contributos bons para a Humanidade sábia.
Um dia diremos como Manuel aos 50 anos, uma data ainda mais simbólica, se contemplou a si mesmo. Ou seja, anos mais tarde, se Manuel começou a interrogar se era o nascimento de Deus nele que acontecia, ou se era o abrir-se mais à omnipresença divina, à Unidade. Ou se devia apenas aceitar calmamente e muito grato o que do mundo espiritual e da Divindade decidissem mostrar-lhe ou derramar pelos seus sentidos interiores. Pelo menos por agora, Manuel aceitou na Luz caminhar, trabalhar, ser em aspiração e amor, sabedoria e desprendimento, e continuar a compartilhar convivialmente o seu amor pelos livros e a cultura sábia e fraterna aos outros.
Manuel sabia que o CD ou o audiolivro tinham a sua utilidade mas eram mais intermediários a acrescer na cadeia da comunicação da sabedoria e embora o autor se aproximasse assimde quem não o podia ouvir, ou então ler no original, também se distanciava, pois nada havia como o diálogo oral, o manuscrito escrito pelas mãos do autor ou do discípulo, manifestando até grafologicamente ora a firmeza e a hesitação ora o entusiasmo e a paixão.
Ao longo da História a força maior da comunicação passou para os livros por várias razões, tais como a efemeridade das palavras, vivas só no momento histórico em que são pronunciadas, a irresponsabilidade com que podem ser ditas, ou o fanatismo ou malícia com que podem ser alteradas, e que sendo fixadas em textos já não seriam tão modificadas, sobretudo quando havia muitas cópias e datadas. Com a invenção da imprensa no séc. XV passaram a chegar a muito mais pessoas, ultrapassando também as limitações do tempo e unindo a Terra toda, sobretudo na época Descobrimentos dos caminhos marítimos liderados pelos portugueses que uniram verdadeiramente quase todos os povos e estenderam a tipografia dos caracteres por África e Ásia.
Os jornais, as revistas e os almanaque, em especial a partir de meados do séc. XIX, tornaram-se grandes meios de comunicação, ainda que mais informando do quotidiano, da actualidade efémera, embora contendo também o apelo revolucionário, a reflexão madura, a sabedoria perene, o conto moral. Todavia nos séculos XX e XXI essa imprensa e tipo de publicações que tanto comunicavam a milhares e milhões de pessoas, passaram a ser ultrapassados pelas rádios, televisões, filmes e sobretudo a internet, com uma quase infinita digitalização dos livros, permitindo-se assim a cada pessoa onde quer que esteja o acesso a quase toda a informação que quiser e quase de forma instantânea.
Manuel era porém sobretudo um amante dos livros, embora também gostasse dos folhetos e das revistas, pois em tudo se manifestava artística e engenhosamente a sede de sabedoria e beleza da Humanidade. Apercebera-se disso não só pela alegria de os encontrar, o gosto de os ler e de os sentir como meios de comunicação supra-espaciais e supra-temporais, fazendo-o comungar num corpo místico da Humanidade, constituído pelos grandes autores ou os grandes temas, mas também quando uma ou outra vez na vida ensalivara ao buscar e encontrar um livro; ou quando sofrera o trespasse agudo, duma relação potencial com um livro bom, cambaleando e ficando frio, por uns momentos, quando uma pessoa amiga lho retirara das mãos e se apoderara dele pedindo rapidamente o preço ao livreiro alfarrabista e ficando com ele. Mas sabia distanciar-se do que poderia ser o ego e o instinto da posse, algo que ao longo da vida vivenciaria mais vezes, desprendendo-se de algum livro emprestado que nunca mais lhe fora devolvido ou mesmo em relação a um ou outro que desaparecia.
Embora próximo das melhoras obras do mundo na Biblioteca pública, Manuel gostava ainda assim de procurar ou encontrar para a Biblioteca ou para si edições antigas ou novas de sabedoria, e sendo suas de lê-las e anotá-las, e de dialogar com leitores ou pessoas amigas sobre tais autores e obras.
Naquele fim de tarde ventoso e frio, que ainda assim vira o Manuel a saltar o jantar e a aproveitar melhor o tempo na busca de algum sinal mais profundo do misterioso espírito na meditação, subitamente algo veio abanar duma vez por todas o ramram de Manuel.
Segurava na mão um livro já antigo, onde se recomendavam certas práticas de concentração para se conseguir imobilizar o fluxo de pensamentos e para que o olhar passasse da percepção meramente sensorial para uma dimensão interior. E pôs toda a sua determinação nesse dia: era Lua cheia, estava cansado de procurar a verdade, de admitir a existência de Deus sem o ver. Não aquela noite ou ia ou rachava. Tinha de receber a visão divina. Nada mais o satisfaria. Renunciava a todas as perguntas sobre a conferência de amanhã, sobre a namorada que queria mesmo viver consigo, sobre o dinheiro que precisava de fazer, ou as pessoas que o iriam consultar. Não, tudo isso ficaria agora à porta do seu quarto e, fechado sobre si próprio, a luz divina tinha de vir preencher a fome que o começava a apertar demais, e tinha de o iluminar sobre as prioridades do seu caminhar para a Verdade e a Divindade.
Pousando o livro e os dedos que escreviam, cobrindo melhor as suas pernas com um cobertor, Manuel fechou os olhos, procurou imobilizar-se e praticar a técnica recomendada: procurar imaginar que a cabeça se abria como uma flor a desabrochar silenciosa e graciosamente até que do Alto se fizesse ou derramasse a Luz. Tinha a noite pela sua frente, e quanto à fome, uma vez já entrada a noite, seria inglório estar a sobrecarregar o corpo com arroz integral ou sopa de legumes.
Não, Manuel queria mais do que a suave envelhecimento burguês das refeições diárias a horas certas, nem queria continuar a caminhar e a ser um corpo de palavras, actos e mutáveis pensamentos, mantido por ambições e esforços mundanos, mas sem sentir mais forte ou claramente a presença espiritual, a bênção divina, ou a Luz.
Despir-se-ia de todas as afeições e desejos e lançar-se-ia decidido na travessia solitária das correntes dispersivas que o separavam dum conhecimento e estado de amor maior.
Passaram-se então cerca de três horas, ora de silêncio ora de aspiração, e por fim Manuel ergueu-se da sua meditação, consciente de que três aspectos mais iluminados destacavam-se, e o objectivo principal era estar mais consciente do espírito. E realmente se durante o dia uma pessoa não está muito auto-consciente, como o pode estar nos momentos decisivos?
Unir então a consciência pessoal ao Espírito era o caminho. Manter mais permanentemente a identidade luminosa consciencializada, numa consciência ampliada e subtil que não se vê mas que se sente e se é.
Enviar amor para certas pessoas mais necessitadas surgira-lhe a certo momento natural e fortemente. Antes conseguira sentir e dizer interiormente: “eu sou o Espírito” e, depois de algum tempo, quando uma vaga fímbria de luz azulada atravessava a sua visão interior, sentira e intuíra algo da omnipresença ou compresença divina. Algo tão fantástico, e que a nossa mente se esquece ou se incapacita quase completamente...
Manuel sabia que tinha pela frente o lento envelhecimento do corpo, uma natural diminuição das faculdades mentais e por isso consciencializava-se de que tinha de trabalhar enquanto gerava ou recebia a luz e tinha forças. Certamente que continuaria a trabalhar, a aconselhar livros e autores, a dialogar e a conviver humanamente, mas sentia que não podia desperdiçar tanto tempo e que era imperioso que a realização espiritual e a ligação à Divindade se acentuasse mais no íntimo da sua alma e chegasse à sua personalidade.
Continuaria pois a meditar diariamente, e a vivenciar no dia a dia essa aspiração a que Deus nascesse nele, trazendo mais à consciência normal a consciência espiritual vertical e ampliada de estar em aspiração-sintonia-união com a Divindade, e a sua luz e felicidade.
Manuel prometeu não se esquecer disto diariamente. Lá estava uma das razões dos votos diários e das orações e meditações matinais que abrem a janela superior nossa ao espírito, à Divindade e às suas correntes de luz, harmonia e amor, que em geral são veiculadas pelos mestres, anjos, espíritos...
Lembrou-se também dos momentos em que os sinos tocavam ao meio dia e ao fim da tarde e como eles serviam para introduzir uma lembrança vertical e prometeu estar também mais atento e aberto durante o dia, capaz de ouvir os sons subtis no ouvido espiritual, e alinhar-se antes das refeições, ou ao deitar-se, e executar verticalizações e orações rápidas mas sentidas de quando em quando. Não oravam os islâmicos seis vezes por dia, lembrando-se assim mais intensamente de Deus ou mesmo do espírito?
Chegaria o que realizara, e o que prometera?
Diz-se que o caminho conquista-se diariamente, e que é tão difícil ou estreito como caminhar sobre o fio duma navalha. Por isso Manuel passou a ler o que escrevera nos seus diários antigos com mais frequência, para absorver e reaprofundar as suas realizações, e ganhar forças no passado para produzir um futuro frutuoso, nas suas linhas próprias de crescimento. E poder gerar diálogos, livros e conferências, como contributos bons para a Humanidade sábia.
Um dia diremos como Manuel aos 50 anos, uma data ainda mais simbólica, se contemplou a si mesmo. Ou seja, anos mais tarde, se Manuel começou a interrogar se era o nascimento de Deus nele que acontecia, ou se era o abrir-se mais à omnipresença divina, à Unidade. Ou se devia apenas aceitar calmamente e muito grato o que do mundo espiritual e da Divindade decidissem mostrar-lhe ou derramar pelos seus sentidos interiores. Pelo menos por agora, Manuel aceitou na Luz caminhar, trabalhar, ser em aspiração e amor, sabedoria e desprendimento, e continuar a compartilhar convivialmente o seu amor pelos livros e a cultura sábia e fraterna aos outros.
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