Cândido Figueiredo nasceu em Lobão da Beira, freguesia de Tondela, a 19 de Setembro de 1846. Foi filólogo, escritor e até orientalista pois, chegou a ser membro da Sociedade Asiática de Paris e autor de pequenos estudos sobre a literatura e a cultura indiana. Com Luciano Cordeiro, foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, e presidiu também à Academia das Ciências por mais de uma vez, duas das instituições com maior relevância na história da cultura em Portugal, tendo ainda pertencido a outras. Foi político e governante, desempenhando bem vários cargos. Dirigiu a revista literária A Folha, de 1873, com João Penha, Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo, e onde Antero de Quental colaborou. E o Cenáculo, de 1875, onde Antero também partilhou as suas energias poderosas poéticas. A sua obra mais conhecida e reeditada foi o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de 1899. Partiu da Terra com 79 anos, em 1925. Em 1881 publicara Homens e Letras. Galeria de Poetas Contemporâneos, onde traça esbocetos de trinta e sete escritores, dando ainda no fim a biografia e bibliografia deles, e neles destacaremos Camilo, Alberto Pimentel, Gomes Leal, João de Deus, Joaquim de Araújo, Jaime de Séguier, Conde de Monsaraz, Junqueiro, João Penha, Sousa Viterbo, Antero de Quental, Tomás Ribeiro, Fernando Leal e Cristóvão Aires, etc., e será desta obra que extrairemos a sua biografia do Antero bem flamejante...
Correspondeu-se e encontrou-se algumas vezes com Antero, e publicou as cartas num livro, com as de mais 84 escritores, estando a primeira datada de 1.V.1870, onde Antero, quatro anos mais velho que Cândido, faz uma crítica justa ao Tasso que este acabara de dar à luz, pela falta de naturalidade das personagens, quase abstracções e generalidades filosóficas, e sugere-lhe seguir o exemplo de Goethe e Balzac. Em 27.X.1874, Antero escreve-lhe de Lisboa a agradecer a visita que recebera solicitando-lhe colaboração para o Cenáculo e confessa-lhe estar doente e que «só pode dar adesão platónica, de que V. Ex.ª fará o uso que entender, e que eu tratarei, assim mo permitam os meus achaques, de transformar em adesão efectiva, assim que me cumpre».
Em Maio de 1876, Antero escreve a agradecer o opúsculo sobre Escolas Rurais, que leu, elogiando-o pois «quem trabalha por esta causa, trabalha por uma coisa eminentemente séria, e V. Ex.ª, escrevendo o seu opúsculo, deu mais uma prova de que o seu espírito está virado para o lado grave das questões modernas».
Quanto à última carta conhecida, e publicada por Ana Maria Almeida Martins, na sua incontornável edição da Cartas, é de 1881 e é a biografia e bibliografia escrita por Antero, que Cândido Figueiredo lhe pedira para vir a figurar nos Homens e Letras, saído em 1881, tal como sucederá, com pequenas alterações justificadas. Leiamos então (e agradeço à amiga Cláudia Lopes a sua transcrição) a biografia de Antero de Quental por outro escritor da época, bastante mais instalado na sociedade que o nosso peregrino idealista revolucionário e espiritual..
ANTERO DE QUENTAL
«É um dos mais definidos caracteres da moderna geração literária. A sua passagem por Coimbra deixou vestígios indeléveis e gratos na tradição académica. A academia de Coimbra renova-se incessantemente, mas há nomes lendários que ela transmite de geração para geração, como coetâneos e imperecíveis. Para exemplo, João de Deus, João Penha, Antero de Quental.
Alto, nervoso, excêntrico, barba serrada e loira, cabeleira solta aos ventos do Penedo da Saudade, Antero tinha a solenidade austera e a unção mística de um profeta: a palavra caía-lhe dos lábios, sibilina, apocalíptica; e os confrades e neófitos ouviam-no como se ouvia um vidente em épocas de crença e de profecias. Nesses momentos, se a noite corria branda, se o céu se constelava de safiras, se a fonte do Castanheiro, os olivedos do Penedo da Saudade e as laranjeiras do Cidral suspiravam acordes umas harmonias flébeis, ele, o profeta, erguia o braço musculoso e esguio, e trovejava poemas, clamando:
A galope! A galope! À fantasia
armemos uma tenda em cada estrela.
E depois, julgando-se de facto domiciliado na via Láctea, ou no primeiro andar de alguma constelação luminosa, conversava familiarmente com o infinito, tomava o imenso ao colo, beijocando-o como a uma criança, dava piparotes na eternidade, das estrelas fazia avelórios para missangas caprichosas; e, em seguida, como alquimista experto, dava aquelas continhas de vidro a natureza argentina, expunha as estrelas na sua joalharia, recomendando-as aos aeronautas como legítimos botões de prata do colete do Padre Eterno. Único.
Antero de Quental, pela rigidez do seu carácter, e pela autoridade da sua palavra, de uma gravidade excêntrica, deu vida, calor e convicções a uma sociedade secreta, - o Raio. - destinada a derrubar da reitoria universitária o Basílio Alberto [de Sousa Pinto, 1º], visconde de S. Jerónimo.
A sede desta maçonaria era ao ar livre, entre os arvoredos do Penedo da Meditação; e os irmãos reuniam-se em sabbats misteriosos, nas vésperas de feriado; e, sobre as cinzas fumegantes de um cigarro de Xabrégas, juravam com solenidade o destronamento do rei Basílio.
E o rei Basílio caiu.
Ao mesmo tempo, Antero de Quental ensaiava forças para um novo destronamento: o do rei Castilho.
Este chamou a si toda a velha guarda; e, entre Lisboa e Coimbra, feriu-se a mais rude peleja de que há memória desde o rei Ataces até ao rei Castilho. Acerca da vitória e dos resultados da memoranda pugna, opinaram diversamente os historiadores e cronistas daqueles obscuros tempos. Segundo as opiniões mais autorizadas e fidedignas, parece que Eduardo Vidal continuou a fazer versos românticos. Teófilo Braga deixou de fazer versos líricos, e Antero de Quental achou quem lhe comprasse as Odes Modernas.
O leitor pio não imagina o espanto, a cara azeda, os arrepios, que as Odes Modernas produziram no bom indígena. Aquilo foi um banho de chuva na morna epiderme de uma vestal. Uma convulsão eléctrica percorreu os nervos sensíveis da meiga e pálida literatura nacional.
Os noticiaristas, os poetas, os gramáticos, os folhetinistas, que seguiam todos placidamente o seu caminho, paravam de súbito, como se lhes rebentasse aos pés uma bomba de dinamite. E discretiaram consoante as posses de cada qual. Ouviu-se muita coisa sensata, e ouviu-se muita tolice: é costume tocarem-se os extremos.
Mas as Odes Modernas representam apenas uma fase do génio poético de Antero de Quental.
As demais fases, denuncia-as na sua Beatrice, o seu volume de poesias líricas, e a moderna colecção dos seus sonetos.
A Beatrice é um delicioso poema de amor enflorado por um idealismo transcendente e casto.
Se eu fosse crítico, diria que os sonetos de Antero de Quental, valendo muito, valem menos que a Beatrice. [E com efeito, quanto amor perpassa pela Beatrice...]
Um dia, no escritório de uma revista literária que eu dirigia em 1875, o marquês de Sousa Holstein fazia umas objecções amigáveis à condescendência, com que eu publicara naquele periódico uns versos, meio libertinos, de um rapaz inteligente.
Nessa ocasião, trouxe-me o carteiro um soneto de um colaborador efectivo da mesma revista. Relanceei os olhos pelo soneto, e respondi às objecções do marquês:
- Aqui tem a expiação do meu delito: é um soneto firmado por um dos nossos colaboradores mais distintos. Intitula-se Plena gratiœ, e é dedicado à Virgem Santíssima, Senhora nossa.
- De quem é?
- Adivinhe.
- Sei lá! pelo assunto e pela ingenuidade da dedicatória, parece ser de estudante de seminário ou de colaborador gratuito e eventual da Nação; mas, colaborador distinto... não sei.
- Pois saiba que é de um socialista, de um republicano, talvez de um ateu.
- Então é troça.
- Pois não é. Veja. É um soneto respeitoso, grave e sério, como é sério e grave o seu autor, Antero de Quental.
E era assim. Este e outros sonetos que constituem a aludida colecção, desorientariam os mais perspicazes glosadores, se entre nós houvesse a exegese literária, como a há na Alemanha, na Inglaterra, e na Itália, onde as obras de Goethe, Shakespeare e Dante são o texto das mais eruditas prelecções críticas, literárias e históricas.
Se cada obra de um poeta correspondesse sempre a um fenómeno psicológico, eu diria que os sonetos de Antero de Quental denunciavam uma indefinida preocupação de espírito, um mal-estar nervoso, uma excitação que não cede ao chá de tília nem ao brometo de potássio; uma misantropia egoísta de filósofo incompreendido.
No entanto, os que o tratam de perto protestam contra esta interpretação, e continuam a reconhecer no poeta um espírito vigoroso e juvenil, uma sistematização racional de factos e teorias, uma inteligência desanuviada e ampla. Pelo menos, quem nas mais calmosas noites de verão cruzasse a praça da Alegria, em Lisboa, poderia, cosendo-se cautelosamente com as sombras das acácias, assistir de perto às mais cintilantes discussões, aos mais lúcidos discursos, aos melhores ditos, de que possa ufanar-se o mais selecto cenáculo de homens de espírito e talento.
No cenáculo da [praça da] Alegria entra apenas Antero, João de Deus, e poucos mais.
O que sairá daquelas discussões e daqueles conluios? A república? Um poema? O nihilismo? A aniquilação do café Martinho? Uma opereta cómica? Uma guilhotina?
Dicant paduani.»
Eis uma curta biografia, com graça e fidedignidade ao Antero de Quental estudantil, amoroso e revolucionário, com um bom juízo crítico quanto à pedrada no charco que fora a publicação das Odes Modernas, algo como posteriormente, embora mais literariamente e sem o socialismo revolucionário, a revista Orpheu, mas com alguma relativa ou leve incompreensão ou desvalorização da demanda filosófico-espiritual de Antero, nomeadamente espelhada na afirmação de que «os sonetos de Antero de Quental denunciavam uma indefinida preocupação de espírito, um mal-estar nervoso, uma excitação que não cede ao chá de tília nem ao brometo de potássio; uma misantropia egoísta de filósofo incompreendido.» Melhor fora se escrevesse: uma intensa e ansiosa demanda da alma em busca da Luz da Verdade e da Divindade e das certezas anímico-espirituais que ela faculta e que, ainda que afectasse os seus nervos, por si mesmo frágeis, não o impedia de continuar a pesquisar, a meditar à sua maneira de filósofo e poeta e não tanto de iniciado.
Terminemos com a parte final da carta autobiográfica de Antero de Quental, que serviu para notícia no apêndice dos Homens e Letras, mas não sendo ali transcrita:
«A doença impede-me de dar seguimentos a trabalhos mais vastos e completos, que havia projectado, e provavelmente morrerei sem ter podido dizer mon dernier mot. Mas quem se gaba de o ter dito? Pouquíssimos, o incompleto e o imperfeito são sorte comum. Vale mais não dar importância a estas (no fundo e filosoficamente) ninharias e saber morrer na paz do Senhor.»
Este anteriano "Na paz do Senhor", na paz de Deus, na paz profunda, divina, significaria entregar-se à Divindade: - Fiz o que pude; mais não posso. Faça-se a Vossa vontade. Ou mesmo o seu coração finalmente descansar na mão de Deus, como ficou no último dos seus Sonetos completos? Ou seria mais: - Saberei morrer na paz com que Jesus morreu crucificado?
Terá assim Antero entrado, ao despir-se voluntariamente da veste corporal já desgastada, no misterioso Além, independentemente da sua alma desiludida com uma certa Paz luminosa de entrega ao Divino?
Muita luz e amor para Antero de Quental no seu corpo espiritual....
Escrito no dia 19.IX.2020, nos 174 anos do nascimento de Cândido Figueiredo. Para ele, também muita luz e amor. Possam até ambos encontrarem-se luminosamente nos mundos espirituais. Amen, Aum...
Pintura dos mundos espirituais, por Bô Yin Râ