quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Antero de Quental, com 18 anos, comemora o Infante D. Henrique e as harmonias do Universo.

 Celebra-se a 11 de Novembro a libertação do corpo físico e da Terra visível, do Infante D. Henrique (1394-1460), filho de D. João I e da Rainha da Filipa de Lencastre, o principal impulsionador da expansão náutica portuguesa. No Livro dos Descobrimentos do Oriente e do Ocidente, publicado por mim em 1998, e posteriormente ampliado no blogue: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/10/efemerides-de-novembro-do-encontro.html, encontra tal efeméride, transcrita em seguida. Quem também a celebrou, e pouco se sabe de tal, foi Antero de Quental.
De facto, Antero de Quental, estudante de 18 anos, em 1860, nos 400 anos da morte do Infante, na revista O Académico, que fundara com Cunha Seixas, João de Deus, Alberto Sampaio e Alberto Teles Utra Machado, escreveu um esboço biográfico intitulado O Infante D. Henrique, o qual, aquando dos 500 anos do seu nascimento, em 1894, foi de novo dado à luz,  pela Imprensa Nacional de Lisboa, e que está agora a comemorar a sua fundação com uma notável exposição, "Indústria, Artes e Letras, 250 anos da Imprensa Nacional". É de um exemplar desta edição de 1894 que partilharemos imagens, extractos e pequenas reflexões...
                                    
Antes transcrevo a breve efeméride do Infante: «Deixa a orbe terrestre, jazendo os seus restos no mosteiro da Batalha, o infante D. Henrique, regedor e administrador da Ordem de Cristo, neste dia 13-XI de 1460, depois de ter começado a revelar ao Ocidente as costas de África rumo ao reino do Preste João e à Índia e de ser pela sua acção o principal iniciador dos Descobrimentos, com tudo o que isso de bem e mal implicou. D. Manuel I mandou esculpir a sua estátua, segundo o notável historiador e erasmiano Damião de Goes, no portal magistral do mosteiro dos Jerónimos, em Belém, Lisboa. Nos seus testamentos, reza com grande sabedoria quanto ao ressurgir antes da hipotética ou fantasiosa ressurreição final: «primeiramente encomendo a alma minha e o corpo ao meu senhor Deus e lhe peço que antes da ressurreição e desde que ressurgir, ele me dê salvação e me faça do conto dos seus santos por a sua grande misericórdia e piedade... E peço ao meu senhor S. Luís, a quem desde a minha nascença fui encomendado, que ele com todos os santos e santas e anjos da corte celestial, roguem a Deus por mim que me dê salvação». Instituiu missas duradouras pela sua alma que deviam ser rezadas em diferentes capelas e pagas aos vigários da Ordem de Cristo que as celebrassem, mas em 1556 os padres jesuítas absorvem tal privilégio celebrando todas as missas no Colégio que detinham em Coimbra, de certo modo substituindo-se à Ordem de Cristo como hierofantes do seu testamento e impulso espiritual expansivo.
De temperamento vincado, costumava dizer quando se impacientava, para se controlar, «dou-vos a Deus», ou «sejai de boa fortuna». E deixou-nos a sua divisa Talent de Bien faire, Vontade de Bem Fazer, muito valorizada na reconstituição dos princípios da ordem Espiritual de Portugal, que Fernando Pessoa debuxava. Também Antero de Quental, estudante, escreveu, em 1860, para a revista O Académico, uma pequena biografia histórica-filosófica intitulada O Infante Dom Henrique, onde se espraia sobretudo sobre a alma dos povos, de Portugal e da época.»
                                
Passemos agora a alguns excertos dessa obra juvenil, inacabada, à qual Antero chamou esboceto biográfico, e à apresentação digital da Introdução aos sete capítulos, com belas vinhetas e capitulares e em cinquenta e nove páginas, desta "formosa edição", no dizer do seu prefaciador Rodrigo Veloso, o director  por mais de trinta anos do pioneiro semanário Aurora do Cávado, e o editor na última década do séc. XIX, em Barcelos, de folhetos de muitos dos pequenos escritos dispersos de Antero e portanto pouco conhecidos.
«Tudo o que da pena consciente e levantada de Antero de Quental, "a figura mais característica do mundo literário português" [Oliveira Martins], se reúna em volume ou opúsculo, inéditos ou escritos seus perdidos nas folhas volantes e efemérides do periódico, bem vindo será sempre, e especialmente no momento actual em «que tudo o que se publique dele deve ser coleccionado com todo o amor», escrevia o Dr. Rodrigo Veloso, em Barcelos, a 9 de Fevereiro de 1894, no prefácio a tal reedição levada a cabo por Manuel Gomes, editor lisboeta.
Na Introdução, Antero de Quental, num texto genial para um estudante de 18 anos, realça o valor da leitura e do estudo da História passada como sinal de sensibilidade e evolução das pessoas e povos e defende que o aprovar e reprovar o que de bem e mal aconteceu, empaticamente até, «há de produzir a mais salutar influência sobre o desenvolvimento dos grandes instintos populares - o amor e o entusiasmo por tudo o que é grande e belo - entusiasmo e amor, que na vida real, em breve tem de desatar em esforços, para imitar esses tipos grandiosos, que a história, ajudada pela poderosa imaginação do povo lhe representa como já tocando a meta da perfeição.
Assim, se ao estudo da história é incentivo uma civilização crescente, é também esse estudo motor poderoso dessa civilização, porque, dando a experiência - que é uma luz no porvir - dá ao povo mais alma, se assim se pode dizer, mais vida pelo coração, mais sentimento moral».

 
 
No 1º capítulo, Antero eleva o seu pensamento até níveis muito elevados da compreensão da ligação do ser humano com o Cosmos, considerando que o coração é uma harpa cuja corda mais maviosa é a do sentimento do Infinito, considerando esta ideia de Deus como a síntese do universo, centro para onde tudo converge, dando alguns exemplos, tal como o amor: «O que é com efeito, o amor, esse mutuar de afectos de duas almas irmãs, senão um gozo, antecipado na terra, das delícias do céu?...
O que outra coisa é a esperança, esse embalar suave de uma alma ao futuro, mais que uma aspiração, melhor diríeis intuição do infinito? E a glória, o sentimento do belo, o amor dos homens, que outra coisa serão mais que reflexos desse sentimento de Si, que Deus em nós depositou? 
São todos irmãos, que gerou o mesmo seio, ramos no mesmo tronco; raios do mesmo centro, estames do mesmo fascículo».
No 2º capítulo destaca «o sentimento social e o sentimento religioso - o amor de Deus e pelo de Deus o amor dos homens» como sendo o «incentivo de grandes acções», enaltecendo o influxo destes destes sentimentos no engrandecimento da alma, concluindo no fim «Amor dos homens, entusiasmo religioso, eis duas ideias, que a terra nunca viu aparecer sem cortejos de heroísmos, piedade e dedicação; eis aí dois sentimentos que jamais toparam alma, em que não acordassem aspirações duradouras de virtude e elevação».
No 3º capítulo Antero de Quental considera que tais sentimentos se encontram em todos os povos e seres, pois «o poder ser grande e bom é direito que a todo assiste: filhos de Deus, a todos deu alma imortal com que a ele se elevem, desenvolvendo-lhe nobres instintos»,  mas deve-se reconhecer que há muitas causas que os impulsionam ou que os abatem e sufocam, apontando como as principais «a história do povo, o clima e natureza do solo que habita, e a raça que descende.
É a história incentivo de desenvolvimento moral quando mostra, engrandecendo-a através do prisma de interpostos séculos, a vida, os feitos, as virtudes e os cometimentos dos que antes de nós foram na terra, e faz assim nascer na alma do povo a nobre emulação, o desejo ardente de os igualar naquilo em que foram grandes, talvez até de os exceder.
A raça, pela pureza ou então pelo cruzamento de vários sangues, exerce sobre o carácter dos povos a mais poderosa influência. Vereis o ousado Espanhol, em cujas veias gira sangue de Romanos, Godos e Árabes, ardente nos desejos, exaltado nas paixões, ambicioso e aventureiro, contrastando com o Inglês fleumático, o Holandês empreendedor e paciente, ou o Alemão situado e pensador».
No 4º capítulo Antero de Quental considera que pelo «abençoado solo de Portugal» passaram «mil gerações, raças diversas», «Celtas, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Godos, Árabes, tudo por aqui passou, aqui viveu, pensou, sentiu, chorou ou exultou» para fazer erguer-se «um povo rico de força, de seiva, de recordações, de glórias no passado, de aspirações e de esperanças no futuro.»
Bela e original é a sua visão de insular, de açoriano do movimento dos Descobrimentos, discernindo-a numa apetência do Infinito: «Embalados pelo murmurar das vagas em descanso, que se espraiam indolentes nos areais, ou por seu rugido feroz, quando de encontro às rochas se vem despedaçar, não podiam os generosos filhos desta terra, tê-la senão como pátria de adopção. A outra, a verdadeira, aquela atrás de que se lhes ia a alma inteira, eram as ondas espumantes, o pego imenso aonde o espaço é sem medida e o horizontes em limites!...». E conclui-o, vendo o Infante D. Henrique como «um vulto gigante imortal, porque a tudo deu o impulso, a primeira ideia».
No 5º, 6º e 7º descreve a traços largos a evolução de Portugal desde os romanos e bárbaros da Europa central até às lutas de cristãos e árabes, até começar a emergir na Idade Média a literatura: «Povo, então ainda na sua idade heróica, poeta, porque, como diz Chateaubriand, nessa idade todos o são, já sem seu seio vira nascer mais de um trovador enamorado suspirar as magoadas endeixas de Egas Moniz, e, ao escutar o Rouço da Cava [um dos primeiros textos e poemas na língua galaico-portugueses, talvez do séc. VIII, referente à derrota dos Visigodos, em 711. Será o proto-esoterista Faria e Sousa a transcreve-lo pioneiramente na sua Europa Portuguesa, 1680], aprendera a detestar a traição e os traidores. Já Vasco de Lobeira, no seu Amadis de Gaula, romance de cavalaria, poema, que assim se pode chamar, dos altos feitos de então, ensinara ao povo como a bravura se pode casar com a galantaria e nobreza», concluindo que faltava ao Portugal de então o estudo e desenvolvimento científico, citando Alexandre Humboldt, porque «todas juntas não formam mais do que uma só ciência, todas tendem a um único fim, o estudo de Deus nas suas obras, ideia do infinito, que toda a criação revela, quer a estudemos na alma humana nas leis da sua razão, nas suas relações, quer na natureza física do Universo, na rotação dos planetas, nas transformações da matéria, e nas leis que a elas presidem. Todas se ajudam, porque todos brotam do mesmo centro.»
E terminando assim, poderemos pensar que aspectos biográficos, ou então dinamizadores, do Infante D. Henrique teria ainda pensado Antero de Quental, mas que não passou à escrita?
 
Talvez referisse o lema adoptado pelo infante, o Talent de Bien faire, que Fernando Pessoa veio a glosar para uma Ordem espiritual de Portugal, da qual a Ordem de Cristo de que o Infante era o Governador serviu de algum modo de base especulativa e simbólica, num lema que nos diz para  sermos o melhor possível, na vida material, psíquica e espiritual, ou ainda realçaria a sua forte devoção ao divino e a sua visão futurante e universalista?
Mistérios...
                            Última vinheta do belo opúsculo juvenil de Antero de Quental: Clarear as trevas do centro, ou trazer a tonalidade azul do céu à terra e à arte?

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