quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Cartas de Antero de Quental a Oliveira Martins, bem confessionais e espirituais. Com vídeo da leitura delas.

No Outono ameno de 1889, Antero de Quental encontrava-se na sua tebaida, ou recolhimento, em Vila do Conde, com certa satisfação, pois estava para sair à luz a 2ª edição dos Sonetos completos, enriquecida em relação à anterior de 1886 com várias traduções, entre as quais as francesas, pelo seu amigo Fernando Leal, a quem escrevera em 10 de Outubro confessando-lhe: «Lembro-me dos bons bocados de tardes, este Verão em sua companhia».  E como considerara terminada a sua disposição, vocação e produção poética, a pedido de Eça de Queirós, que estava a fundar a Revista de Portugal, entrara no processo de passar a escrito os fundamentos principais do seu pensamento filosófico, da sua cosmovisão, os quais serão dados à luz em três números da revista, em 1890. Entre as cartas que escreve nesse final do Outono destacaremos duas enviadas a Oliveira Martins, um dos seus maiores confidentes com o decorrer dos anos.
Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894) fora de facto um dos maiores amigos de Antero, embora não seu condiscípulo em Coimbra, e fora o escolhido para escrever o prefácio aos Sonetos, que contudo Antero virá a considerar pouco acertado, nomeadamente no que respeitava ao que Oliveira Martins escrevera acerca do seu orientalismo e budismo, em confidência epistolar a um ou outro amigo, mas isso não impedira que a amizade deles fosse das mais duradouras e íntimas, pelo menos desde 1870, recebendo de Antero Quental um magistério crítico literário e idealista importante e ambos se estimulando, corrigindo e em certos aspectos se complementando.
Resolvemos ler e comentar as duas cartas, conforme se pode ouvir no vídeo, mas vamos agora realçar por escrito aspectos confessionais, proféticos e espirituais valiosos desta pequena selecção do riquíssimo epistolário anteriano.
  Na 1ª carta, diz já estava com vontade de ver Oliveira Martins e que se encontra animado a escrever sobre as Tendências gerais da Filosofia dos últimos 80 anos, a pedido de Eça de Queirós, para a Revista de Portugal, e embora sejam as suas ideias que transmite, afirma-lhe «não é a minha filosofia, aquela que você sabe que eu tenho, com seu método próprio e teorias particulares. Essa, infelizmente, desisto de a expor, porque está acima das minhas forças o fazê-lo - e depois ninguém me entenderia». E mais à frente acrescentava: «Esta ocupação, tem-me feito bem, de sorte que talvez continue, considerando sobretudo que é o único lado por onde posso ser prestável».
Realcemos esta posição solidária, social e comunitária de Antero de Quental, tentando discernir e realizar por onde pode servir melhor o Bem Comum, algo que viveu sempre com grande exemplaridade, desde a adopção das duas filhas de Germano Meireles até à correspondência epistolar e pedagógica com tantos amigos, ou à participação sócio-política, não deixando nunca de especular sobre a Verdade filosófica e política.
 Confessando depois que «no século XVI teria sido um homem de acção, ou com os homens de espada ou com os da cruz: noutros séculos também, doutros modos. Mas hoje sinto-me como fora do meu meio natural e a minha retracção é ao mesmo tempo instintiva e reflectida. Quando a gente chega aos 48 anos tem obrigação de saber para que serve e para que não, e não ir atrás de fantasias. A verdade é que, para o que há a fazer e se pode fazer na sociedade actual, sou duma absoluta inabilidade, um verdadeiro incapaz. Se alguma influência posso exercer sobre os homens é só de longe e pela ideia pura».
De novo afirmações valiosas sobre o amadurecimento e, curiosamente, tanto Antero de Quental como Oliveira Martins morrerão aos 49 anos: - ver realisticamente o que podemos fazer e não nos dispersarmos em miragens e fantasias. E quando não já estamos tão capacitados para a acção que seja pelo pensamento,  escuta e diálogo, oração e meditação que trabalhamos ou contribuímos para o Bem Comum.
E em resposta ao anseio de Oliveira de Martins de Antero de Quental estar ao seu lado na acção política, diz-lhe: «Compreendo bem que Você, sentindo-se tão isolado, anseie por um companheiro e o que me diz na sua carta sobre a necessidade de eu voltar à superfície exprime bem esse sentimento. E eu sê-lo-ia - com que vontade e gosto, escuso dizê-lo - esse seu companheiro de luta, se não me conhecesse incapaz para aquilo do se trata. Tenho pois de me conservar no meu papel, quero dizer na lógica do meu carácter e das minhas opiniões. Serei simplesmente para Você, como até aqui, amigo, confidente e crítico encartado. De resto, quem sabe o que virá? Não recuarei diante de coisa alguma, senão só daquilo que repugnar à lógica e harmonia do meu ser. The right man in the right place».
Este parágrafo mais longo é bem valioso nas caracterizações que faz da fidelidade a si próprio, do cumprimento do seu dharma ou dever, o swadharma, como se diz na Índia: o seu ser que tem uma identidade que é coerente e harmoniosa nas opiniões e carácter,  e que  discerne o que sabe, pode e deve fazer, mesmo contra o meio ou as narrativas oficiais.
E embora agora mais reservada e recolhida, a sua linha  guerreira ou de líder, e quase que adivinhando profeticamente, fá-lo concluir afirmando que não se demitirá do dever e de poder ter de ser «o homem certo e no local certo». E assim foi, pois poucos meses depois  aceitará, a pedido dos estudantes portuenses, com momentos de grande vibração e luta contra o imperialismo colonial inglês, o cargo de Presidente da Liga Patriótica do Norte, de certo modo fechando o círculo ou anel de graças e activismos da sua tão impactante vida. 
A segunda carta, escrita no dia 30 de Novembro de 1899, quatro dias depois, é mais breve mas não menos valiosa pois aí explica como o mau tempo tem contribuído para um "estado de ensimesmamento", que explicita originalmente com um vocábulo novo "emmimesmamento", bem sintomático do espiritual que ele era. Desenvolvendo em seguida considerações  importantes acerca da possibilidade do pessimismo poder desaguar num optimismo transcendente, se as pessoas conseguissem na renúncia voluntária ao mundo fenomenal sentirem gozo e serenidade. 
Sendo tal todavia muito difícil para a pessoa comum, pois mesmo se alguns mais recolhidos ou eremitas (grupo que ele denominará noutras ocasiões Ordem dos Mateiros, numa nota ecológica bem actual) conseguissem chegar a tal estado e "convicção", como  comunicariam suas ideias puras  se nem símbolos  há que as representassem e com poder de moverem as multidões, interrogará ele...
Sabemos porém que Fernando Pessoa, em vários aspectos discípulo de Antero de Quental (e por isso traduziu para inglês muitos dos seus sonetos), prosseguirá esta demanda, e em parte  conseguiu  captar e transmitir bem algumas ideias e símbolos representativos delas na Mensagem, ainda que esta seja em geral mais lida e interpretada historicamente, ficando a sua aspiração e realização mágica, templária e iniciática para muito poucos, de novo. A menos que haja muita gente a conseguir aprofundar bem alguns dos símbolos e versos, e suas mensagens e impulsos operativos e iniciáticos,  gerando um um despertar espiritual, tão necessário face à superficialização,  manipulação e até já opressão reinante, nomeadamente com as narrativas oficiais.
  Oiçamos então as duas luminosas missivas de Antero de Quental hoje em dia facilmente legíveis na valiosa publicação das Cartas, coligida pela Ana Maria Almeida Martins.
                    

Sem comentários: