quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O heróico general Nogi, japonês, e a crítica ao seu suicídio em 1913, por Gomes dos Santos, no Jardim de Académus, 1915..

Passou há poucos dias o 106º aniversário da morte do famoso general Nogi, ou conde de Nogi, o conquistador de Port-Arthur aos russos e da batalha de Mukden, decisivas para o fim da guerra russo-japonesa de 1904-05, celebrada com o tratado de paz de 29 de Agosto. Foi doze anos depois, a 13 de Setembro 1912, que resolveu cometer o seppuku, ou hara kiri, para acompanhar o seu Imperador, até então Mutsuhito e desde o momento da morte Meiji Tennô, quando se realizava o cortejo fúnebre imperial, em Tóquio.
Refere o nosso maravilhoso Wenceslau de Morais, tão pouco cultivado nos nossos dias, no seu Relance da História do Japão, que «os restos de Meiji Tenno foram transportados para Momoyama, um aprazível subúrbio de Kyoto, a cidade das grandes tradições, a cidade santa; e ali se lhes deu repouso, num soberbo mausoléu. Pouco após, em Tóquio, erigia-se um magnificente templo shintoístico, em homenagem ao espírito do imperador defunto, o qual, segundo as crenças da religião de Yamato, paira divinizado no espaço, protegendo ainda o seu povo...»
Nogi e a sua mulher Shizuko. Os dois filhos tinham morrido na guerra russo-japonesa, donde ele fora um dos grandes heróis.Terá sido um factor para o desprendimento terreno voluntário...
Nascido em 1849, em Edo (Tóquio) filho de um samurai, com uma carreira brilhante militar, tendo aperfeiçoado os seus conhecimentos militares uns dois anos na Alemanha em 1887 e absorvido alguma cultura ocidental, Nogi não deixou de seguir o que a sua tradição e código de honra guerreira lhe permitia e de certo modo ensinara. 
Aliás já antes, por aspectos militares, como o de ter perdido uma vez a bandeira imperial em batalha,  ou pela morte de 56.000 japoneses no ataque a Port-Arthur, se quisera suicidar, sendo demovido pelo próprio imperador. Tais factos deverão ter contado na  decisão de se sacrificar, explicada aliás num pequeno escrito que deixou, já que  permanecera  em vida porque o imperador assim o determinara. 
Nogi, perante o seu altar portátil da pátria e do Imperador, prepara-se para o seppuku...
Entre nós, além de Wenceslau de Moraes que relata em alguns dos seus livros as peripécias da guerra russo-japonesa e os tratados de paz, e num dos capítulos das suas Cartas do Japão, a morte do imperador e do seu fiel general Nogi, e de Reinaldo Ferreira, o Repórter X, que lhe consagra um texto que um dia abordaremos, é Gomes dos Santos (1881-1918, autor de várias traduções católicas e de uma crítica ao espiritismo), no seu livro, de atentas reflexões culturais ou até mesmo psico-espirituais aos acontecimentos que presenciava ou lia, em cinquenta capítulos (um deles crítico das aldrabices dos cabalistas e ocultistas parisienses), intitulado Jardim de Académus, publicado no Porto, em 1915, mas escrito e prefaciado em São Paulo, Brasil, que dedica a Nogi um capítulo, intitulado Ritos de Morte, no qual elogiando  a sua "cultura ocidental", as suas capacidades tácticas e guerreiras, verbera-lhe contudo o ter-se deixado levar pela ancestralidade, numa hora em que mais do que nunca eram necessários homens sábios para apoiar o novo imperador que deveria suceder ao falecido.
 
 Se o questionar da legitimidade ética ou moral do suicídio é algo que sempre aconteceu, sem dúvida que a Humanidade nunca conseguiu chegar a uma certeza sobre o bem ou o mal de tal acto, não só porque nunca se sabem bem as razões nem as consequências dele, como também se desconhece o conteúdo do eventual código de princípios que rege a vida humana, mau grado tantos séculos e tantas religiões mais ou menos reveladas ou inventadas que a humanidade já leva às suas costas. 
Ou seja, não se sabe bem se a ordem divina do Universo e os princípios da evolução humana serão taxativamente contra tal abreviar da vida humana individual no corpo terreno, algo aliás hoje no séc. XXI muito em discussão acalorada, devido à, já permitida em um ou outro país, eutanásia de doentes sem possibilidades de cura ou em estado de demasiada degradação consciencial ou extrema dor. 
Talvez não se tenha considerado suficientemente nestes casos a purificação psico-espiritual, nomeadamente ao se vencer o egoísmo e comodismos e ao suportar a dor, que acontece nesses períodos, não só no doente como nos familiares, e dos efeitos benéficos, correctivos, fortificadores ou libertadores que podem de tal sofrimento advir...
Tal complexidade de avaliarmos o suicídio, ou  o abreviar da vida terrena, é acrescida pelos seres que saem do seu corpo conscientemente e morrem, como ilustrou Paramahamsa Yogananda em 1953, os grandes ou notáveis seres que se suicidaram ao longo da história, e os casos frequentes de casais de longa data nos quais morto um logo o outro se fina rapidamente...
Entre nós os casos de Antero de Quental, Camilo Castelo Branco,  Mouzinho de Albuquerque,  Manuel Laranjeira,  Soares dos Reis,  António Carneiro, são exemplos de seres bem valiosos mas que claudicaram a  dado momento face à vida penível (física, mental ou moral) que tinham e seriam no entendimento vulgar condenáveis por fraqueza ou para alguns, com mais noções espirituais, por com tal acto dificultado a sua entrada no mundo seja paradisíaco, seja mais elevado e sem sofrimento, podendo ficar muito mais tempo a sofrer no além de que se tivessem ficado a viver na Terra até ao fim do seu tempo...
Por exemplo, quando Antero de Quental partiu, diremos algo samuraicamente, desagradado do estado em que se encontrava a sua capacidade psico-corporal de interagir criativamente com a Humanidade e a Verdade, o que se fez ouvir mais nas reacções dos seus amigos não foram condenações, mas apenas justificações, como podemos respigar das cartas dos que privaram com ele nos últimos dias, por Ana Almeida Martins cuidadosamente compiladas no seu Antero de Quental e a génese do In Memoriam:
«O cérebro estava doente; imagens tenebrosas na sua imaginação; ofuscamento da sua razão; aspirações áricas, budistas, para o não-ser; agonia hipocondríaca; medo de enlouquecer; a morte andava a seduzi-lo à muito...»
Mas certamente não sabemos bem as consequências para ele no além, pelo que não devemos julgar de ânimo leve tais actos que, embora trágicos e provavelmente nocivos, podem acontecer por diferentes razões a muita gente, competindo-nos antes orar ou enviar as melhores energias ascensionais...
Oiçamos então Gomes dos Santos, no tal capítulo, Ritos da Morte, no seu começo e fim, e com sublinhados nossos nas partes em que transparece mais a sua visão algo distorcida de superioridade civilizacional ocidental, e entre parênteses rectos as nossas correcções-apreciações:
 «No momento em que os frios despojos do imperador Mutsuhito desciam à derradeira morada, escoltados por trechos de música bárbara e por uma multidão silenciosa e recolhida, o general Nogi e sua mulher, à passagem do fúnebre comboio, abriam o ventre com o sabre e expiravam numa sangueira de matadouro...
Este duplo suicídio, em homenagem à memória do defunto imperador, não pareceu impressionar excessivamente a raça nipónica, que ainda guarda uma estranha fidelidade às suas longínquas tradições. A nós, povos civilizados, o acto bizarro, revelando o afecto consagrado ao príncipe morto, pareceu-nos destituído de todo o carácter racional.
E contudo, o general Nogi era um civilizado, - tanto quanto pode sê-lo um japonês (...)»
 Comete Gomes dos Santos alguns erros, pensando que Nogi fizera o seu curso na Europa e que absorvera muito da sua cultura, e biografa-o depois assim:
«Um dia Nogi foi chamado a conduzir os seus soldados ao campo de batalha; e, ainda aí, não se diferenciou sensivelmente de um general europeu. Com uma táctica irrepreensível, justamente elogiada pelos adidos militares estrangeiros, o general ilustre pôs cerco a Porto-Arthur e obrigou a cidade a capitular, depois dum memorável assédio que permitiu verificar os seus profundos conhecimentos técnicos. A Vitória fez voar o seu nome de terra em terra; e a sua fisionomia simpática foi emoldurada, das colunas das revistas dos dois mundos, entre adjectivos de primeira grandeza, daqueles que a publicidade avara só concede gratuitamente aos génios.
 Nos últimos dez anos, Nogi perlustrou os caminhos difíceis da glória e atingiu os inacessíveis cimos do poderio. Foi embaixador, ministro, conselheiro. Recebeu memoriais, dedicatórias, sonetos, descomposturas, serenatas. Foi entrevistada por uma nuvem de jornalistas, devorados por essa febre de curiosidade insaciável que é a característica da sôfrega vida moderna. Manifestou espírito, humor, - a graça adorável do europeu de cultura requintada, inexcedível na causerie. Nogi, em suma, parecia um homem que se movia à vontade dentro das ideias modernas, vivendo num pais de biombos pintados e de papel de seda com a nostalgia de quem vive no exílio.[Que exagero de Gomes dos Santos, tentando ocidentalizar ao máximo Togi,como veremos ainda mais na continuação...]
E eis que esse homem intensamente civilizado, perante essa coisa banal que é o féretro dum outro homem - trata-se dum mendigo ou dum príncipe, - tomba examine com o ventre golpeado pelo sabre, tendo sacrificado a vida a uma superstição tradicional.
Assim, num minuto, toda a obra de cinquenta anos de civilização e modernismo, de cultura e princípios foi varrida por uma dessas rajadas de atavismo, pela sobrevivência dos longos e seculares costumes transmitidos ao carácter japonês nalguma parcela minúscula de sangue. (...)». 
Mais uma vez, Gomes dos Santos diminui o valor de princípios de honra samuraica que sempre acompanharam Nogi, ilustrados até pelo elogios que alguns historiadores ocidentais fizeram ao seu alto código de respeito no tratamento dos adversários durante e após as batalhas e que transmitira às suas tropas. 
Nogi com o general russo Anatoly Stessel, e outros oficiais, após a rendição de Port-Arthur.

Mas com o parágrafo seguinte ainda mais preconceituosa se torna a explicação do que se passara:
 «Cinquenta anos de leitura dos filósofos, de vida europeia, de adaptação aos costumes civilizados, não defenderam o guerreiro nipónico contra um sacrifício banal e estúpido que os samurais praticavam nos séculos antecristãos. Debalde lhe inoculamos no cérebro os costumes e crenças que constituem o fundo essencial e invariável da nossa moral. Debalde o pretendemos abroquelar, com as pacíficas cerimónias que dedicamos aos mortos, impregnadas de espiritualismo, contra a sanguinária prática dos seus antepassados. O verdadeiro nipónico, que no fundo era o general Nogi, ressurgiu, de sob o verniz superficial que o cobria, na primeira circunstância que abalou o seu equilíbrio moral. E eis que esse homem, que tanto contribuira para a glória do império de Mutsuhito, dominado momentaneamente por uma regressão ancestral, o rebaixa à categoria desses reinos selvagens de África, onde a morte do soba é o pretexto de horríveis e voluntárias carnificinas...»
Os três parágrafos finais do capítulos Ritos de Morte, falam assim:«O suicídio jamais constitui uma forma recomendável de heroísmo; antes é, na maioria dos casos, a sua negação. Há mais coragem em viver, lutando e sofrendo, com virilidade e grandeza, do que em subtrair-se à dor e ao desespero pela fácil pressão dum gatilho ou pela ingestação de toxinas fulminantes. E a imprensa, que eleva o suicídio de Nogi às alturas da heroicidade suprema, está contribuindo, com a funesta apoteose, para uma regresso às épocas bárbaras que deixaram na história um longo rastro sangue.
Guarde o Japão moderno o seu herói, se assim quer, mas não nos imponha, com o vestígio do seu rápido e indiscutível progresso o culto por essas práticas grosseiras reveladoras do seu estacionamento moral.
O Japão já tem as suas metralhadoras, os nossos navios, os nossos jornais, as nossas gravatas, a nossa literatura - todas as nossas qualidades e todos os nossos defeitos. O que não tem, ainda, é o nosso senso, a nossa concepção moral. E o ventre aberto de Nogi mostra que jamais virá a ter a nossa civilização, ainda imperfeita, decerto, mas incomparavelmente superior à da raça amarela
 Que poderemos concluir, distanciando-nos da muita  superficialidade superior de ocidental civilizado incapaz de se pôr no coração e ambiente do outro, senão aspirar a que haja mais capacidade de sentir e acolher o ser e a mentalidade dos outros, certamente discernindo o que nos parece melhor ou pior, e  orar para que os seres humanos aprofundem mais o auto-conhecimento do ser espiritual e o conhecimento dos mundos subtis e espirituais donde viemos e para onde deveremos regressar, com mais ou menos facilidade, qualidade de corpo espiritual e celeridade, quando morrermos, de modo até para estarmos mais conscientes da vida no post-mortem e como o suicídio a pode afectar muito dolorosamente...
Poder-se-á perguntar se o Conde de Nogi já cumprira a sua missão na Terra e  podia partir consciente espiritualmente, podendo pois num caso especial suicidar-se, abandonar o seu revestimento terreno e partir como alma-espiritual com o Imperador, ao seu lado, de certo modo escoltando-o e apoiando-o na entrada e passagem pelas zonas ribeirinhas do mundo invisível ou subtil psico-espiritual?  Mistério...
Restará ainda mostrar alguns poemas e algumas imagens que conservam a memória de Nogi e de sua mulher (que lhe terá dito e sentido?) em jardins e santuários shintoistas, religião na qual foi considerado logo como um Kami, um espírito venerável, estando preservada a sua casa como museu. 
                       O torii, portal, e as duas lanternas, toro, marcam a entrada numa zona consagrada ao mundo invisível dos kami, e no caso o do ex-general Nogi, agora um espírito protector da pátria....
 O conde de Nogi escreveu alguns poemas no estilo chinês, kanshi, depois famosos,  após as batalhas e a morte dos filhos, e um no fim da guerra russo-japonesa no qual afirma:
«Milhões do Exército Imperial numa cruzada contra os bárbaros poderosos,
O cerco e a batalha resultaram numa multidão de corpos mortos.
Não quero ver os que regressam a casa pois estou envergonhado,
Pois apesar do triunfo são tão poucos os homens que voltam.»

Resta-nos orar ou aspirar a que os seres tenham mais condições e capacidades de se realizarem mais plena e libertadoramente na sua peregrinação terrena e terem assim uma passagem luminosa e lúcida para o mundo espiritual, no seu devido tempo e sem sofrimento,  violência ou medo, antes em amor e paz...

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