segunda-feira, 11 de setembro de 2017

"Na Morte de Antero". Joaquim de Araújo, 1891. Texto e vídeo de leitura comentada por Pedro Teixeira da Mota.

Neste dia 11 de Setembro, de 1891, entre as 20 e as 21 horas da noite, Antero de Quental, notável pensador, poeta e líder de gerações, abandonava voluntariamente o seu corpo físico, sentado num banco de uma praça pública deserta da cidade de Ponta Delgada, Açores, atravessando finalmente a ponte ou porta estreita e umbral dos mundos do além, subtis e espirituais.
Como se sentiu Antero de Quental antes, no momento e sobretudo depois, não sabemos ao certo, embora alguns dos seus amigos insulares dessem de tal testemunho, registados por José Bruno Carreiro na sua incontornável obra Antero de Quental  Subsídios para a sua Biografia (em 2 vols., 1948, e recentemente reeditada),  e outros  reagissem imediatamente a essa inesperada partida, escrevendo e publicando, sem esperarem cinco anos pelo In Memoriam de 1896 que acolheria os testemunhos dos principais amigos.
Joaquim de Araújo (1858-1917), um dos coordenadores do In Memoriam, talvez tenha sido mesmo quem lançou as primeiras achas para a fogueira sacrificial e celebrante, pois um mês depois da partida de Antero publicava um belíssimo opúsculo, bem ao seu género de amante do livro e da sua composição, no Porto, na esmerada tipografia da rua do Bonjardim, 93. 
Estava bem preparado para isso pois era um bom poeta, um divulgador da cultura portuguesa em Itália, onde serviu como cônsul cerca de treze anos e um grande amigo de Antero desde muito novo,  com Oliveira Martins e Alberto Sampaio aqueles de quem se conservam mais cartas escritas por Antero.
Intitulado Na Morte de Antero, é tão sentido e belo, sábio e de aspiração à iniciação, que resolvemos nesta noite de 11 de Setembro dá-lo à luz da universalidade da Web transcrevendo-o para este texto, e gravando ainda um vídeo com a sua leitura na exacta hora em que Antero de Quental passava para o mundo espiritual há 126 anos. 
A leitura do poema não foi preparada e ressente-se em dois ou três sextetos de não ter dado logo o tom interrogativo final aos versos iniciais, tanto mais que a letra é muito miudinha e difícil de ler. Espero que os comentários e a sinceridade e aspiração compensem quem os ouvir...
                                          
 O poema é de grande beleza e nele discernimos em Joaquim de Araújo o discípulo que vê subitamente o seu mestre desaparecer e se interroga sobre o ensinamento final que recebera e que resume na famosa epígrafe usada por Antero e agora glosada por ele: Morrer é ser iniciado.
Abalado, virando-se em todas a direcções, busca o local onde essa iniciação estará a acontecer, e pergunta mesmo à natureza, ao mar, às florestas, às águias, às velhinhas, aos jovens, quem sabe ou viu passar o cavaleiro sem ventura, armado de fulva armadura mas ninguém lhe consegue responder.
O poema está dividido numa tríade,  numa dinâmica dialéctica, interrogativa, bem compreensível em quem não era ainda o adepto iniciado mas mais o discípulo entristecido, descoraçado. 
Tese: Perante o facto da morte diz-se que "morrer é ser iniciado", mas onde se passa tal, afinal? 
Antítese: É o cavaleiro do santo Graal, quem pode ser iniciado, mas onde está ele ou ela? 
Quanto à Síntese ela não está formulada visto que Joaquim de Araújo interroga-se ainda a
onde deveremos concentrar o nosso olhar interior e coração para pressentir o desincarnado espírito cavaleiro iniciado: - Na encruzilhada, na aurora, no ritual, com os espíritos? Estará ele lá e cá?
                                                MORRER É SER INICIADO
                                                            Antologia grega.
                                                  I
«Morrer é ser iniciado?
Onde? no céu todo estrelado?
Onde? no Nirvana ideal
Soluça o vento, e o mar profundo
Ulula, - triste moribundo -
             Onde, afinal?

Dizei-o, ó almas torturadas,
Que haveis passado nas cumeadas
Dum grande mundo espiritual!
- Morrer é ser iniciado?
Onde? no céu todo estrelado?
Onde, afinal?


Soluça o vento, e o mar profundo
Chora, - gigante moribundo -,
Uiva nas sombras o chacal...
Morrer é ser iniciado?
Onde? no céu todo estrelado?
Onde, afinal?


O cedro no chão estende os braços
Nuvens se alastram no espaço
Duma cor lívida, espectral...
Soluça o vento, e o mar profundo
Geme, - cativo moribundo...
Onde, afinal?

O albatroz passa nos ares,
Abrindo as asas singulares,
Como um sudário sepulcral...
O cedro ao chão estende os braços...
Nuvens se alastram nos espaços...
Onde, afinal? 

Almas irmãs da flor do linho,
Aves de sonho cor de arminho,
Musgo onde a água de cristal
Depôs carícias singulares!...
O albatroz passa nos ares...
Onde, afinal? 

II
Doces velhinhas que fiais
O vosso linho e os vossos ais
À porta branca do casal,
- Viste passar um cavaleiro,
Fulva armadura de guerreiro,
Ao belo sol ocidental?

Pequenos loiros e morenos,
Passou por vós, de olhos serenos,
Um cavaleiro do santo Graal?!
O seu cavalo era selado
Por um profeta venerado,
Que lho doara, por sinal... 

Árvores santas da floresta
Ele passou... calou-se a festa,
Calou-se o canto matinal:
Sabeis acaso onde ele iria?!
Procurar Noiva à Normandia
- Filha de um grande senescal?

Amplo deserto sem palmeiras,
Passou, em rápidas carreiras
Passou por ti, vasto areal?!
Viste o famoso cavaleiro,
Fulva armadura de guerreiro,
Ao belo sol ocidental?

Campo sem fim das verdes ondas,
Que à lua branca e triste sondas 
O coração angelical,
Passou por ti, sobre o teu leito,
Acaso em lágrimas desfeito,
O cavaleiro do San Graal?!

Fadas: - divina Melusina,
Doce Titânia pequenina,
-Hércules dorme ao pé de Omphale
E ele, que é bom, foi acordá-lo
De ponto em branco, em seu cavalo
Por combaterem contra o Mal?! 

Montes: Titãs agrilhoados
Das tempestades embalado,
- Órgão de estranha catedral,
Alumiou-vos a figura 
Do cavaleiro sem Ventura
De sete estrelo ao peitoral?! 

Águias, pairando no Infinito,
Sem um gemido, sem um grito
Águias do voo triunfal,
Ele buscou, - espaço em fora,
Uma visão Libertadora
Em região primaveral? 

III 
Na encruzilhada, canta o Galo...
Vem os Espíritos cercá-lo...
Vai começar o ritual...
Morrer é ser iniciado?
Onde? no céu estrelado?
   Onde, afinal?»
 
Porto, Noite de 9 de Outubro
Rua de Santa Catarina, 616.»
 
E transcrito na Madragoa lisboeta, no dia e hora da partida de Antero, 11 de Setembro, pela noite a dentro, então, agora e sempre na comunhão da Consciência mais plena do Espírito e da Divindade...
Poderíamos acrescentar ainda alguns comentários às referências ao santo Graal, ao cavaleiro, ao sinal que lhe foi dado por um profeta, tal como Fernando Pessoa também põe em epígrafe inicial da Mensagem: Benedictus Dominus Dei qui dedit nobis signum.
Ou ainda às Fadas (cantadas por ele na Antologia Poética que compôs para as crianças), à Melusina e à Titânia  pequenina, esta provavelmente também em alusão a uma das jovens musas de Antero de Quental estudante, das Primaveras Românticas, e ao poema A Fadas que as evoca.
Das perguntas iniciais postas pelo discípulo, se a iniciação se passa num Nirvana ideal, no céu estrelado e infinito, ou mais interiorizado no coração do coração, chegamos à encruzilhada na qual Joaquim de Araújo se encontra com a figura tutelar do galo de Sócrates, de Apolo, de Jesus Cristo, simbolizando o que sobe ao alto, afugenta as trevas do mal e anuncia ou ergue a Luz vitoriosa...
E quem serão os espíritos misteriosos que o cercam, iniciadores ou mães e mulheres parturienses, seres que o ajudarão na passagem?
Ritual de morte e renascimento, no céu e no íntimo do coração, afinal talvez só claro no olho espiritual de quem já esteja desperto, e portanto iniciado ou entrado mais conscientemente no caminho do espírito e da imortalidade...
E quando Joaquim de Araújo, após ter sido assaltado em Itália, regressa a Portugal e morre semi-consciente em Sintra, como o subtil contista e memorialista Júlio Brandão narra  https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2019/05/joaquim-de-araujo-homenageado-por-julio.html, terá Antero de Quental conseguido descer e dar-lhe a mão?Passados estes anos, não muitos, que possam Antero do Quental e Joaquim de Araújo resplandecer como estrelas no firmamento da nossa alma e na Consciência Divina, e nos inspirem e tornem mais firmes no caminho da Harmonia, do Bem, da Verdade, da Divindade...
                                        
Contracapa de A Morte de Antero, de Joaquim de Araújo, com a Íbis do Egipto e do Deus Thot como símbolo tipográfico, ante-sucessora da escolha para a empresa tipográfica de Fernando Pessoa, talvez inspirado pela tradição de Antero de Quental (aprendiz de operário na Imprensa Nacional de Lisboa e em Paris) e de Joaquim de Araújo.

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