A Expressão da Liberdade em Antero e os «Vencidos da Vida», um ensaio de Feliciano Ramos, publicado na editorial Império em 1942, é ainda hoje bastante actual pois as inquietações e interrogações anterianas e a demanda intensa do sentido e realização da vida que o ensaio tenta cingir a todos interpelam.
Nesta obra, Feliciano Ramos começa por valorizar a força tremenda libertadora e revolucionária de Antero, expressa nas Odes Modernas, em 1865, mas já circulando desde 1863, quebrando com os ultra-românticos e a escola de Castilho, e cita Alberto Sampaio, grande amigo de Antero: «A lembrança da tempestade, que o livro provocou, conserva-se ainda geralmente viva; ele era de facto como uma planta de flora desconhecida; rebentava sem se saber que ventos lhe trouxeram as sementes, e abria as flores estranhas num ambiente inadequado».
A célebre Questão Coimbrã ou do Bom Senso e do Bom Gosto, na qual participarão tantos escritores e que terá o mesmo um duelo, é o campo da batalha com António Feliciano de Castilho e a escola Romântica (entre nós pouco mágica ou gnósica, algo que Bocage de algum modo já começara a ultrapassar e por vezes como vate mais espiritual "orfizara"), e simultaneamente a entrada da Literatura Moderna, mais realista e naturalista, mas também idealista,iniciada por Antero, Teófilo Braga, Guilherme de Azevedo, Vieira de Castro e a que se juntam em breve Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e outros.
Feliciano Ramos refere então o famoso Cenáculo, a casa de encontro no Bairro Alto, hoje na R. Diário de Notícias, nº 19, escrevendo mesmo que «Eça compara a chegada de Antero ao quarto de Batalha Reis com a vinda do rei Arthur à confusa terra de Galles», logo os iniciando no socialismo de Proudhon; todavia, embora todos avancem no naturalismo estético e realista e numa posição lúcida e crítica das causas da lentidão do progresso em Portugal, Antero de Quental não encontrará plenamente os companheiros, ou as ocasiões de trabalho em conjunto, para os ideais e voos mais éticos, metafísicos, espirituais, libertadores.
Estarão juntos sim nas famosas Conferências democráticas do Casino, mesmo na Baixa lisboeta, junto onde está agora a livraria Sá da Costa, as quais de tal modo agitam as ideias ou revolucionam a pacatez e conservadorismo do meio que acabam por ser proibidas pelo ministro, o Marquês António José d'Ávila e Bolama, o qual será forte e genialmente interpelado e contestado em carta pública por Antero, defendendo sentir-se «no peito coração, dignidade, independência», citando o que «diz também a Carta Constitucional:"Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavra e escritos, ou publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometeram, no exercício desse direito"»
As prisões, perseguições ou assassínios de jornalistas valiosos, tais como Julian Assange, Edward Snowden, Jamal Khashoggi, são fenómenos modernos da mesma mentalidade opressiva e inquisitorial, hoje na sua proveniência maior do imperialismo norte-americano e dos seus aliados mais brutais.
Talvez Feliciano Ramos pudesse ter inserido algumas das palavras que Alexandre Herculano, de algum modo mestre de Antero, acerca de tal repressão escreve a José Fontana, um dos organizadores das Conferências do Casino: «O governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos está acima e além das prevenções da política. Dizer-se que se respeita a liberdade do pensamento, sob a condição de não se manifestar, é pueril. Na manifestação é que reside a liberdade, porque só os actos externos são objecto do direito, e a liberdade de pensar em voz alta é um direito originário, contra o abuso do qual não pode haver prevenção, mas unicamente castigo.»
A dinâmica metafisica e espiritual de Antero de Quental está em geral bem vista neste ensaio por Feliciano Ramos e vale a pena ouvi-lo mais detalhadamente no seu 2º capítulo, O Supra-sensível e a inquietação metafísica n'«Os Sonetos»:
«A sua altíssima sensibilidade metafísica não só o tornou um precursor do espiritualismo do séc. XX, como o levou a escrever Os Sonetos, cuja perenidade especulativa e sentimental será indestrutível (...) Antero foi sempre agitado pelas maiores inquietações supra-sensíveis e por uma ansiedade transcendental que o transfigurava por completo. Ele notou bem a presença dessa idealidade que lhe tomava o espírito, e muito lucidamente, se julgava místico e sonhador. Vinca-se já esta compleição visionária nas Odes Modernas e nas Primaveras Românticas, mas é particularmente em os Sonetos que ela adquire maior expansabilidade. Vê-se nessa obra que a miragem vastamente o estonteia. Os Sonetos lançam-nos num mundo novo e são a criação portentosa duma alma sedenta de infinito e mistério. Nunca na literatura portuguesa a imaginação de um poeta se revelou mais criadora e activa»...
Deste passo de Feliciano Ramos, uma frase poderemos reflectir mais: «Vê-se que a miragem vastamente o estonteia...»
Foi Antero de Quental vítima de miragens e ilusões? Ou mesmo de uma nevrose hiperactiva e depressiva? E de projecções excessivas de ideias e noções filosóficas, ou mesmo de personificações fantasiosas de figuras clássicas ou míticas de valores ou entidades em si neutras, tais como a Morte, a Razão, a Verdade, e que assim vestidas ou investidas, cultivadas ou adoradas por Antero de Quental, em diálogos subjectivos, o enfraqueceram ou iludiram?
Ou foi também a imensidade do infinito e dos seus mistérios do amor, do sofrimento e da morte que fatalmente realçaram, em quem tanto tentou adentrar-se nele, aliado a certas incapacidades de corpo e de ânimo, desde 1874 desencadeadas e que correspondiam a fragilidades já herdadas do seu sistema nervoso e temperamento, que o encaminharam para o seu percurso e fim?
Talvez Feliciano Ramos exagere ao considerar que Antero de Quental perdeu, e diremos nós, um certo horizonte e foco firme, ou a visão clara e precisa pois, mesmo nos seus idealismos ilusórios e escolhas menos acertadas de culto, a sua menos clara ou menor orientação face à contingência e fragilidade da vida, a melancolia ou o pessimismo que sentiu, foram confrontados e assumidos como ponte de passagem e via crítica para se chegar ao transcendentalismo positivo, à crença na espiritualidade substancial do ser humano e do Universo, ao espiritualismo completo e panpsiquismo, como ele foi realizando cada vez mais e que transmitirá em carta de 14-XI-1886 a Jaime de Magalhães Lima: «...é muito certo que não são os sistemas que nos salvam e nos põem no bom caminho. O que nos salva é a obediência cada vez maior às sugestões daquele demónio interior, é a união cada vez maior do nosso ser natural com o seu princípio não natural, é o alargamento crescente da nossa vida moral nas outras vidas não morais, é a fé na espiritualidade latente mas fundamental do universo, é o amor e a prática do bem, para tudo dizer numa palavra. É por isso que a melhor filosofia será sempre aquela que melhor auxiliar a compreensão e a prática da virtude»...
Afirma também Feliciano que Antero de Quental fora «um espírito absolutamente fora da órbita positivista,» e ao confirmar a sua predilecção pela conversa, pelo diálogo mais do que pela escrita, observa como Antero colheu da natureza muitas das imagens e metáforas que utiliza na sua demanda da Esfinge do Universo mas que «da interrogação nenhuma resposta positiva advém», resultando o seu tormento metafísico não só dessa oscilação de dúvidas mas também das antíteses ou oposições que o dilaceravam, e que os Sonetos tanto revelam.
Embora já na época da preparação da publicação definitiva (1886) dos Sonetos, em Vila do Conde, Antero tivesse alcançado uma visão espiritual e transcendental em certos aspectos elevada, mas que diz estar reflectida apenas em alguns dos seus últimos sonetos, será de facto só pelo pensamento filosófico e sobretudo no ensaio publicado em 1890, as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, que tal será finalmente passado à posterioridade, talvez como o fruto mais sazonado da sua aventura poética, terminada uns anos antes (1884), e da sua demanda metafisica, esta infindável e que ele desejaria ainda mais completa mas para a qual já não tinha forças. Todavia, também na sua vasta correspondência estão transmitidas com grande beleza e elevação muitas centelhas ou mesmo aspectos das suas questões e doutrinas, aspirações e realizações, de grande valor psicológico e espiritual.
Como sabemos a interpretação e valorização deste seminal ensaio da Tendências Gerais da Filosofia tem sido muito diversa (sendo a de Leonardo Coimbra das melhores) e atentemos então no que sentiu por vezes com bastante claridade Feliciano Ramos, e transcreveremos até o início do seu terceiro capítulo intitulado A Liberdade Suprema nas Tendências Gerais da Filosofia: «À medida que os paladinos da ciência experimental e os apaixonados do Positivismo viam crescer a sua descrença na metafísica, Antero, com indomável coragem intelectual, ficava esperançosamente à margem da disputa e abria os seus artigos sobre as Tendências gerais da Filosofia, publicados na revista Portugal (1890), por um acto de confiança espiritualista, afirmando logo de entrada: a filosofia é eterna como o pensamento humano».
Feliciano Ramos expõe depois a dialéctica anteriana de critica à relatividade do conhecimento científico «que carecia simplesmente de ser completado pelo que Antero chama a penetrante luz transcendental, que permitiria atingir o ser íntimo e a realidade substancial das coisas. E como penetrar nessa zona obscura? O instrumento da exploração agora será a consciência, a qual goza não só do privilégio de ter em si a noção do que não é sensível, mas também do poder da percepção imediata desse extracto mais fundo de ser inacessível da região superficial da pura sensibilidade»
Detenhamo-nos um pouco, pois por vezes as enunciações filosóficas e metafísicas ainda que correctas em termos de princípios e de discursividade lógica não são tão facilmente actualizadas ou realizadas no quotidiano.
Esta penetrante luz transcendental consegue assim tanto atingir o ser íntimo humano ou das coisas? Ou brota ela mesmo desse íntimo ou imo espiritual do ser?
Se alguns místicos e filósofos atingiram tal dimensão íntima, como Antero de Quental também confessa referindo por exemplo que conseguiu «chegar teoricamente até aquela profundidade de compreensão do «homem interior», como eles diziam, a que os místicos chegaram», isso não impede que seja uma tarefa bem difícil de se passar da teoria à prática, em geral muito oscilada ou ondulada pela personalidade e a mente e que ele próprio provavelmente sentiu e confessa frequentemente, dada a nevrose que desde 1874 o atacou, com tantos problemas até de postura vertical, sentado, para poder meditar, por exemplo.
Será pois sempre um mistério discernir quanto veio do amadurecimento doutrinal e quanto veio de tal presença do Homem interior, ou como se denomina na tradição persa o Homem Universal, ou no fundo o Espírito, no aprofundamento da interioridade e da ética, manifestado nele sempre como aspiração de conhecimento filosófico e espiritual libertador e gerando certa serenidade bem visível a partir da década de 80.
Vemos então tanto em Feliciano Ramos como em Antero de Quental como que uma exagerada confiança no nosso acesso ao Espírito, sendo este visto simplesmente como uma energia universal e como dinamismo idealizante que seria até Deus, o que não é correcto. Descreve Feliciano Ramos o espírito como «uma força autónoma, que se conhece na sua íntima natureza, que é causa dos seus próprios factos e só às suas próprias leis obedece, e consequentemente, existe em si e em si encontra a plenitude. Pender para essa plenitude é elevar-se à realização de um ideal que Antero designa por Deus».
A pouca consciência e identificação com o espírito individual que as pessoas têm na sua consciência normal, o envolvimento com tudo o que o nos rodeia e o embaraça e o difícil discernimento do que é o Espírito universal e Divino e o espírito humano (uma simples centelha) são factores de peso no dificultar-se da realização espiritual interna e que não foram bem tomados em conta por Antero e assim a entrada no mundo espiritual, além do acolhimento nobre e idealista dos valores e ideias, não se realiza tanto na prática. E na sua ânsia de Absoluto vai admitir talvez demasiado rapidamente um saber total, ou como refere mais de uma vez, a coincidência entre o ser e o saber, algo que dificilmente se pode realizar mais do que parcelarmente, momentaneamente ou então apenas numa iluminação tipo búdica sempre tão subtil quão rara....
Ora se sabemos que Antero cogitou, e em especial através da filosofia de Proudhon, Leibnitz, Hegel, Kant, Hartmann, Schopenhauer e Fitche, noções e níveis do ser como inconsciência, espírito, razão, mónada, absoluto e que fez leituras acerca das religiões antigas, Budismo e Nirvana, misticismo cristão medieval, restaria saber que intuições e visões ele alcançou e que consubstanciaram os aspectos mais próprios ou originais da sua síntese do idealismo e do espiritualismo, vasada como substância no próprio átomo-força, tal como refere na sua obra e epistolografia, chamando-lhe um «misticismo moderno, um misticismo científico e positivo».
Talvez assim pudéssemos compreender melhor até as razões filosóficas que poderão ter visto como autorizável eticamente o seu suicídio pessoal ou fim corporal físico, que não anímico-espiritual já que é imortal, e neste aspecto anímico o mistério permanecerá sempre quanto ao que pensaria ou anteveria Antero no post-mortem, e seja nos últimos dias seja nos últimos minutos?
Para Antero de Quental o dinamismo psíquico do espírito em nós visa a liberdade e a ligação com a Verdade e o Divino, e realiza-se pela ética e a vida moral que vamos desentranhando de nós pelos nossos actos, pensamentos e sentimentos a qual que faz diminuir o ego, expandir o espírito e abrir-nos aos níveis mais profundos e impessoais onde a Justiça e o Bem, a Compaixão e a Pureza brilham. E nisto ele é brilhante.
Talvez tenha faltado um pouco a Antero a experiência do Espírito individual, a visão e ligação com a centelha espiritual dentro de si mesmo. Talvez também tenha faltado a ligação aos mestres e ao Anjo e à Divindade nele.
Mesmo assim quanto não conseguiu ele, sobretudo pela sua ardente aspiração, pela sua lúcida razão e pelo intenso sentimento, pelas suas constantes reflexões e meditações, e pela poesia e as cartas aos amigos nas quais nos transmite tantas profundas e belas impulsões de bem, de verdade, de justiça, de liberdade?
Se voltarmos ao valioso ensaio de Feliciano Ramos, entraríamos no seu quarto e último capítulo, intitulado O Grupo dos Cinco e a decadência do Naturalismo, e onde passa em revista a evolução do naturalismo para o culto de valores espirituais nos quatro escritores amigos de Antero que constituíram com ele o chamado Grupo dos Cinco: Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e Oliveira Martins, questionando se eles teriam mudado de rumo, ou seja, se fora a influência de Antero que os levara a saírem do fenomenismo e naturalismo algo materialista e a abrirem-se mais a certo idealismo, simbolismo e espiritualismo. E conclui que sim, mostrando em todos eles as obras ou os traços que rescendem tal subtil magistério, influxo ou comunhão anteriana.
Neste sentido podemos nós ainda acrescentar que a vida e morte de Antero de Quental foi crística, isto é, ungida e ungidora, sacrificial, pois ao morrer tão só e e algo desamparado terá suscitado nos seus amigos uma certa reconversão para uma maior intuição e vivência da alma-espírito, até por não terem conseguido intuir a crise amarga de Antero e de o impedirem de se ter adentrado pelos portais da morte radicalmente, algo precocemente.
Mas quanto ao ter sido precocemente ou não é difícil sabermos se Antero esgotara a sua força de vida e paciência ou, ainda, se já cumprira a sua missão?
Terminemos este pequeno escrito com uma última citação de Antero de Quental, escolhida pelas mãos e coração de Feliciano Ramos, de uma carta dirigida em 1886 a Jaime de Magalhães Lima, certamente um dos grandes amigos e discípulos de Antero: «o que mais me alegrou na sua carta foi o dizer-me que começava a sentir, nestes últimos tempos, um renascimento dos antigos sentimentos religiosos, embora transformados, e uma invencível necessidade de idealismo. Alegrou-me isto e queria simplesmente dizer-lhe que cultivasse e cuidasse com amor esse novo rebento da profunda raiz, que cuidava morto, porque essa será a árvore da bênção, que lhe há-de dar sombra para o resto da vida».
Saibamos nós trabalhar e cultivar a árvore da Tradição Espiritual Portuguesa onde Antero de Quental tanto se esforçou e notabilizou...
Um cedro, axis mundi lisboeta, ao Príncipe Real...
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