Se considerarmos a vida de Erasmo de Roterdão (28.10.1467-12.6.1536), filho ilegítimo de Gerard, um sacerdote itinerante dos Países Baixos (então pertencentes ao ducado de Borgonha), e de Margarida Brand, filha de um médico, e portanto praticamente educado sem pai pela mãe e desde os quatro anos nas escolas religiosas da região, e desde os onze, em Deventer, na época grande centro de tipografia nascente (editaram-se 450 incunábulos), na escola dos Irmãos da Vida Comum, que lançaram o movimento da Devotio moderna, menos escolástica e formalista e mais afectiva, piedosa e aberta ao estudo da Antiguidade, e onde ensinavam mestres humanistas, tais como Alexandre Hegius e Rudolfo Agricola, observaremos que cedo desabrocharia o seu génio literário, impulsionando-o para um mundo mais elevado de valores e princípios, e uma visão do mundo bastante mais ampla, culta, espiritual.
Sensível, inteligente, muito auto-consciente, teve de entrar pela morte da mãe e do pai, em 1484, para o mosteiro dos Agostinhos em Steyn, onde professa e utiliza bem o remanso conventual para os estudos tanto religiosos como clássicos, escrevendo então duas obras que só publicará mais tarde, o De Contemptu mundi, Do Menosprezo do mundo, onde escreve já com grande universalidade:"os pagãos que só conheciam a luz da Natureza não estavam na escuridão pois eram iluminados pelos raios que brilhavam da luz imortal e nós podemos usá-los como escadas. Porque aquele que tenta escalar as ameias do céu cai no desagrado de Deus, mas o que sobe degrau a degrau não será derrubado". E o Antibarbarorum, onde defende os estudos da antiguidade clássica e a combinação da erudição profana com a religiosa e a elegância de língua e estilo, atrevendo-se mesmo a interrogar magistralmente os mais conservadores: "Dizes-me que não devíamos ler Virgílio porque está no inferno. Achas que muitos cristãos, cujas obras lemos, não estão no inferno? Não nos compete discutir se os pagãos antes de Cristo não foram condenados. Mas, se me autorizarem a raciocinar, ou eles estão salvos, ou então ninguém se salva"...
É ordenado sacerdote pelo arcebispo de Utreque, em 1492, e pouco depois o bispo de Cambrai, Hendrik van Bergen, nomeá-lo-á seu secretário e começará (primeiro, durante dois anos com ele), a sua vida itinerante e de estudioso (desiludindo-se com o escolasticismo da Universidade de Paris e só em 1506 doutorando-se na Universidade de Turin), tutor e pedagogo, escritor, tradutor, e por fim conselheiro de reis, imperadores e papas, viajando constantemente, e indo a Itália, Alemanha e Inglaterra (a 1ª vez, em 1499, a convite de um dos seus alunos, encontrando-se com Thomas More), em geral de cavalo ou burro, os quais por vezes enalteceu em cartas divertidas para os seus amigos correspondentes.
O que busca ele ao princípio: a combinação das letras antigas greco-romanas com o cristianismo. Uma educação mais moderna, menos impositiva e escolástica, mais atenta à natureza, ao sentimento, à descoberta própria, ao conhecimento objectivo, para isso contribuindo com vários manuais escolares e livros educativos, e com a recolha dos Adágios (1ª edição de 1500, com 800, e a última, 1533, com 4.151) que se tornará o grande tesouro de Minerva ou da Sabedoria antiga ao dispor dos estudantes e humanistas, com traduções em toda a Europa, e os Colóquios (1ª edição, sem a sua autorização, em 1518, última em 1533), e que ao longo das sucessivas edições acrescentadas se tornam cada vez mais divertidamente críticos da sociedade e da religião praticada, chegando por isso a entrar no Índice dos Livros proibidos, tal como outras das suas obras causticadas pelos teólogos mais ortodoxos e reaccionários, tais como os franceses Noël Beda e Petrus Sutor, o dominicano castelhano López Zuñiga, o dominicano inglês Edward Lee e o veneziano Girolamo Aleandro, violento repressor do protestantismo e que esteve presente e furibundo ao ter de assistir ao auto de Gil Vicente, hoje perdido (certamente por isso), o Jubileu dos Amores, representado 1531 em Bruxelas, na casa do embaixador português D. Pedro de Mascarenhas, corajosamente já que Aleandro era legado papal e a peça troçava das indulgências e excomunhões de que Aleandro tanto gostava. Outros tempos, quando Portugal era independente e tinha cavaleiros do Amor escritores como Gil Vicente, Damião de Goes, D. João de Castro, Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos, Fernão Álvares do Oriente ou mesmo António de Sousa Macedo, citando Erasmo e a Prisca Teologia.
|
O expurgador inquisitorial deste exemplar da Cosmografia de Münster não resistiu a molestar a efígie do sábio e determinado Erasmo. A sanha costumeira contra a sua lucidez, ou a de outros considerados heréticos, era "autor danado".
|
Erasmo esforça-se por uma renovação do Cristianismo, pelo regresso às fontes e por uma leitura mais frequente e viva dos Evangelhos, recuperados, cotejados, rectificados, anotados, propondo mesmo que sejam traduzidos em línguas vulgares, o que na altura suscitou grande oposição, nela se destacando o cartusiano Petrus Sutor, ou Pierre Costurier, teólogo sorbónico que publica em 1524, com forte e bela portada, o De Tralatione Bibliae, et novarum reprobatione interpretationum, muito indignado com as inovações e propostas de Erasmo, que tentou em vão por correspondência convencê-lo da utilidade de mais pessoas terem acesso às Escrituras sacralizadas.
|
Erasmo, por Hans Holbein, o jovem, numa gravura oferecida pelo prof. Pina Martins.
|
A visão de Erasmo era profunda e sincera: houve e há uma Filosofia de Cristo. Uma boa nova, uma mensagem acessível a todos, uma piedade douta praticável por qualquer um, enquanto amor ao próximo e a Deus, e um conhecimento mais aprofundado do relacionamento entre o divino e o humano, que certamente deve culminar em virtudes e graças, ou mesmo estados de sublimidade e êxtase, tais os que o apóstolo Paulo menciona.
É pela disposição anímica de seguir correctamente o Cristo, «que é caridade, simplicidade, paciência, pureza, ou seja, tudo o que ele ensinou», que o crente em Deus, no Cristo e no corpo místico da Igreja avança na vida e no aperfeiçoamento, para se tornar também um Cristo, que significa um ungido: «todos os que renasceram em Cristo, são Cristos», dirá mesmo no Da Concórdia amável na Igreja, escrito para harmonizar os conflitos intra-cristãos e uma das suas últimas obras, de 1534, tal como o Da Preparação para a Morte, a qual virá na noite de 11 para 12 de Julho de 1536, as suas últimas palavras sendo: "Amado Deus", ou se quisermos "Querido Deus", e pronunciadas na sua língua natal, que nunca usava, na linha do renascer ao morrer, ou no dito grego tão glosado entre nós (por Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa, e já desenvolvido no blogue) "Morrer é ser iniciado"...
Como contrapartida de tal espiritualidade directa houve desde cedo uma desvalorização dos votos ("o hábito não faz o monge"), das cerimónias, dos sacramentos, dos jejuns, das peregrinações e das superstições populares, pois a religião é sobretudo interior, intenção, aspiração, paz, comunhão, expansão, e logo universalidade, comunhão com os vivos e os mortos e sobretudo com a Divindade.
Observa a constituição tripla do ser humano, corpo, alma e espírito, ou ainda a dualidade da alma terrena e a alma celestial, esta dotada dos sentidos subtis espirituais e várias vezes exprime-a vigorosamente, tal como no Enchiridion, o Manual do cavaleiro Cristão (1ª edição, 1503) que tantos efeitos teve em Portugal e Castela (como nos nossos dias Marcel Bataillon e Pina Martins demonstraram), e onde nos adverte com tanta actualidade: «quando os olhos do coração estão obscurecidos para que não vejas a Luz evidentíssima que é a verdade, quando não captas com teus ouvidos interiores a Voz divina, quando careces completamente do sentido do absoluto, pensas que a tua alma estará viva? (...) Se o teu próximo é mal tratado, porque é que a tua alma não sente nada?»
Que actualidade tremenda, face a tanta pessoa aceitando impávidas, indiferentes ou até apoiando a crueldade dum genocídio racial... O caminho cristão é ascendente mas solidário com o próximo, e a passagem do mundo material ao espiritual, pela contemplação, a oração, a meditação, o jejum, a simplicidade, implica sempre a empatia e compaixão, pois o ser humano é uma grande família, a fraternidade é a realidade original e que se clama diariamente na oração do Pai Nosso, sendo o Cristo o amor que conglomera todos os seres num só ou na Unidade.
Salientemos os grandes valores transpessoais para Erasmo: a unidade humana e europeia, o corpo místico da humanidade, o Logos, Sermo ou Palavra de Deus que vive nas escrituras sagradas e que está imanente nos seres, e que pelo diálogo e colóquio lhes permite entenderem-se e evoluírem na compreensão mútua e do Universo.
Deveremos distinguir realidades e valores humanistas espirituais dos transpessoais, ou são basicamente muito semelhantes ?
Na época a palavra transpessoal não existia: a psicologia transpessoal é dos nossos dias e representa uma tentativa de incorporar na ciência da psicologia tanto níveis e experiências outrora presentes sobretudo no corpo mágico, religioso e iniciático como teorizações e comparações de estados modificados de consciência como ainda observações e resultados da física moderna e das neurociências, deixando para trás o termo espiritual e tentando ir para além da persona, mas contudo não conseguindo grandes impactos nas consciências e sociedades humanas, caindo em teorizações e equivalências excessivas de estados psíquicos não vivenciados (caso de Ken Wilber) e vindo a surgir mesmo, no vazio das religiões, e sobre as novas eras, canalizações, transmissões galácticas e adorações da ciência, um travestimento do transpessoal e do humanismo, com o denominado transhumanismo (que é mais um infrahumanismo diabólico) da Nova Ordem mundial, e do super-egoísta Fórum Económico Mundial oligárquico. O que poderemos fazer, de acordo com a alma genial de Erasmo e dos seus confabulatores, como foi o nosso Damião de Goes, já na altura entrando em defesa dos Lapões e dos Etíopes vitimas de certas opressões hoje de novo rampantes?
Quando aprofundou o fenómeno religioso, a mensagem de Jesus e o estado da Cristandade, Erasmo valorizou o poder transformador do estudo, do esforço, do amor, e realçou a importância da congregação ou união de sensibilidades, aspirações e valores afins, e portanto do trabalho em grupo, realçando a magia da oração, por Cristo expressa axiomática e perenemente no dito: "onde dois ou três se reunirem no meu nome ou vibração, eu estarei entre eles". Este estar (com discernimento) em rede de pessoas e grupo afins, para resistir, regenerar e elevar, é então fundamental tarefa dos nossos dias, tal como também a comunhão espiritual com o corpo místico da Igreja e da Humanidade, o que devemos fazer pelas nossas meditações.
No seu Modo de Orar a Deus (1ª edição, 1524) que eu publiquei nas edições Maitreya, há um bom trabalho de discernimento das modalidades de relação do ser humano com a Divindade, ou a sua concepção de Deus, e como devemos chegar à experiência da Presença divina em nós. Também da sua vida, temos alguns registos de experiências espirituais que observou ou que lhe aconteceram e mencionaremos duas delas. A primeira está no que nos diz nas biografias de Jean Vitrier, John Colet e Thomas More, enquanto seres de realização espiritual, e profundamente cultores da religião do coração e do espírito, e exemplificaremos com o guardião franciscano, em Saint-Omer, Jean Vitrier, com quem esteve um ano entre 1501 e 1502: "era um ser cheio de ardor pela piedade, entrava quase em êxtase nos sermões e fazia senti-lo aos ouvintes. O seu sucessor no convento disse dele que toda a sua vida não era senão um sermão sagrado."
A segunda é a valorização da psique e do que nós chamamos algo limitadoramente inconsciente, nomeadamente dos sonhos que por vezes narra, tal o da visita de S. Francisco de Assis que o considerou um amigo da ordem Franciscana, e lhe disse que fazia bem em criticar os frades e que prosseguisse no seu caminho. Erasmo apresenta o sonho com uma grande naturalidade, interpreta-o como uma experiência espiritual normal, evidenciando que os mortos para o corpo físico e a Terra e os vivos, mas em geral mortos para os mundos espirituais, podem comunicar nos sonhos.
Nos nossos dias quantos conseguem ter tais sonhos e senti-los e interpretá-los como vivências das almas, não limitadas pelo corpo e o cérebro físico?
E não será que tal se torna cada vez mais difícil não só pela descrença em relação à comunicação anímica ou telepática mas também pela acumulação de lixo que as pessoas deixam estabelecer-se nas cabeças e almas com tanta informação e desinformação televisiva, internética e audiovisual?
Valoriza então a sobriedade (e hoje não ver televisão ou sobretudo noticiários e comentadores avençados é fundamental), a disciplina, a ordem, a purificação, tão presentes nas tradições e ensinamentos religiosos e iniciáticos para que o ser espiritual possa emergir da personalidade humana aperfeiçoada, mais completa, harmoniosa, individualizada, algo de que Erasmo estava bem consciente, nomeadamente quando afirmava que devia ao seu amor e dedicação aos estudos não se perder na profanidade dos meros prazeres do mundo. E nesse sentido, ele dizia “O ser humano não nasce, faz-se”, o “Faz o que amas, ama o que fazes” e ainda “O que tens de melhor, partilha-o com os outros”.
O erasmismo, enquanto livre indagação e interpretação das escrituras e dos ensinamentos religiosos, enquanto valorização da vida interior e da piedade douta, enquanto combinação do conhecimento profano e do sagrado, enquanto lucidez e bom senso na vida social, e enquanto predominância do espiritual sobre o material, nomeadamente nos aspectos culturais e religiosos, não morreu com Erasmo e continuou em muitos pensadores, religiosos e criadores.
|
Erasmo visto e desenhado por Albrecht Dürer.
|
Em termos artísticos poderemos dizer que Hans Holbein, Albretch Dürer, foram dois pintores que receberam as suas influências já que o pintaram, já que estiveram expostos à irradiação serena do mestre do Humanismo, quanto este posou para eles, e de Dürer sabendo-se que instou para que interviesse mais nos conflitos de então, e quem sabe se a icónica Melancolia deve algo a isto. É interessante referir que Erasmo teria achado que não o tinham captado bem, e isto remeter-nos-ia para a imagem ou imagens que fazemos de nós, como elas são proteus, e como ora resistem ora se alteram com o tempo e o amadurecimento, e como no fundo tal se relaciona com o mito e missão que nos atribuímos, com nosso papel e a nossa imagem, no fundo o arquétipo ou estrutura funcional principal em nós, e que em certos seres está mais próxima da verdade essencial ou íntima deles, da sua vera identidade monádica, em Erasmo muito ampla e profunda na manifestação.
Certamente que uns conservam uma imagem generosa de si mesmos enquanto doadores ou beneméritos, outros de belos Donjuans, outros de ferozes Quixotes ou Torquemadas, mas difícil é vermo-nos como somos na realidade actual e na temporalidade pluridimensional: corporal, seja emocional, mental, anímica e espiritual e inserida na interactividade karmica com todos os seres que afectamos ou nos afectam.
|
Uma ilustração de Hans Holbein para o Elogio da Loucura: um sorbónico opositor do conhecimento livre e de Erasmo, que teve no síndico da Universidade de Paris, a Sorbone, Noël Beda, o expoente máximo.
|
O auto-conhecimento, a gnose, é fundamental, o ver-nos sem ilusões, com o olho simples e nesta linha o genial Elogio da Loucura é um apelo a que vejamos por quantos lados ou facetas estamos desequilibrados, manipulados, egoístas, violentos. Ver-nos lúcida e desmitificadamente, e sabendo desmistificar os outros, as instituições, as doutrinas, os dogmas, as modas, as narrativas oficiais é fundamental
Erasmo neste aspecto foi exigente e ousado: criticou reis, teólogos, frades, não-pacifistas, gananciosos, aduladores, hipócritas, os Descobrimentos de conquistas e negócios, os pseudo-mestres e santos, a exploração da credulidade pública, a arrogância, a brutalidade.
Para haver a metanóia propunha um coração sincero virado para Deus e a sua invocação misericordiosa sincera ou unânime na alma, pelo que criticou o excesso de imposições sobre o que devíamos acreditar, valorizando antes o coração puro, simples, que arde por si mesmo em aspiração pelo bem e a verdade.
Criticou a oração a Jesus, a equiparação de Jesus e do Espírito Santo a Deus, pois a sua visão da Trindade não era a mesma da teologia da época. As interpolações que se fizeram por causa do Espírito Santo, nomeadamente o versículo em Mateus, 28, 16-20: "Ide (...) e baptizai em nome do Pai, do Filho e do Espírito", foram por ele desmontadas, já que não existiam nas versões manuscritas mais antigas.
Propôs pois a relação directa com a Divindade, denominada por Jesus Deus Pai, e um estado de ânimo puro e logo de oração ininterrupta, que poderemos explicar como de plena atenção e boa vontade. E a desidentificação ao corpo físico como sendo a totalidade do nosso ser, e antes a assunção de um corpo psico-espiritual, com os sentidos subtis da visão e da audição.
Valorizou com o tempo e talvez face ao protestantismo a comunhão com os santos, com os anjos, o corpo místico colectivo da humanidade, a antiga alma mundo, e a existência de uma tradição perene, de uma sodalidade de conhecedores e espirituais ao longo dos séculos, que Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, no humanismo italiano, tinham bastante desenvolvido.
|
Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, num fresco
pintado em 1488
por Cosimo Roselli e ainda hoje contemplável na igreja de Sant'Ambrogio,
Florença. |
Valorizou os arcanos dos textos sagrados, nos aspectos filológicos, históricos, e sobretudo espirituais ou anagógicos deles, ou seja, os que remetem para o mundo do além depois da morte e o celestial, , ou mesmo neste mundo, para o corpo subtil e os seus sentidos, órgãos e capacidades espirituais. E aqui e acolá o êxtase, a expansão da consciência, a união com a Divindade, a sensação do infinito, a comunhão com o Amor primordial, a saída do corpo, a inspiração da alma mundo, surgem. Dos erasmianos, ou dos leitores, que o prosseguiram encontramos alguns místicos que estiveram em Portugal, tais como Francisco Monzon e Frei Luís de Granada, que o leram e citaram e que ainda puderam, por breve tempo, valorizar a meditação, a contemplação, a ligação directa, que cedo, com a Contra-Reforma, seriam consideradam perigosas ao poderem ser conducentes às heresias do quietismo, dos alumbrados, do iluminismo.
Deste modo a tarefa das pessoas tomarem por si mesmas o conhecerem-se, de se ligarem a Deus, de salvarem-se, acabou outra vez por ser diminuída e enfraquecida pelo ênfase na condição de pecadores, e da necessidade da ascese, dos sacrifícios, dos jejuns, das cerimónias, dos sacramentos e penitências, que frequentemente afastaram os cristãos da possibilidade de respirarem o espírito, antes se curvando demasiado sob a carga e a cruz que lhes foi posta às costas, ainda que sem dúvida Erasmo valorizasse o esforço, o sacrifício, o sofrer dores, purificadoras e estimuladoras, tal como dizia: Ego aliam artem notoriam non novi nisi curam, amorem, et assiduitatem, " Eu não conheço outra arte de conhecimento que o curar, amar e perseverar.”
O seu Enchiridion milites christiani, o Manual do cavaleiro cristão foi na época uma revolução. Era como se de novo Jesus falasse na Terra. Não era que não tivesse havido já a Imitação de Cristo, proveniente dos Irmãos da Vida Comum, onde Erasmo estudara, ou as obras de S. Agostinho e de outros a apelarem à conversão e à ligação a Deus. Mas foi a obra de Erasmo, com a nova versão traduzida do grego para latim em 1515 (e bem anotada) do Novo Testamento, e sobretudo com as Paráfrases aos Evangelhos e Epístolas, que abriu nas pessoas os corações para a humanidade e sabedoria de Jesus e os olhos para a riqueza espiritual da leitura dos Evangelhos, algo que os protestantes assumiram posteriormente com força, ainda que se tenham deixado cristalizar em dogmatismos redutores da afectividade humana e da intermediarização dos santos e anjos e ainda do valor das leituras ou hermenêuticas espirituais, reduzidas portanto às literais e a uma fé quase cega, algo que Erasmo sempre considerou insuficiente pois havia uma mensagem oculta que era preciso encontrar, com o esforço do livre arbítrio bem utilizado.
Há ainda erasmismo nos dias de hoje? - Sim, certamente, há os que escrevem sobre Erasmo e traduzem-no, mesmo que se mantenham nas balizas das doutrinas e dogmas da Igreja e não na livre investigação erasmiana, e na não subordinação a capelinhas, dogmas e imposições exteriores. Outros estudam as suas obras com adesão a Erasmo, ainda que certamente o seu Erasmo até possa não ser o dele. Outros que o leem regularmente estimam-no como um grande ser, um amigo para eternidade, um mestre que cruzou os céus ocidentais numa época de charneira, tentando manter a unidade e universalidade de uma Europa culta, unido pelo latim, o culto das belas letras e o cristianismo ético e são.
Erasmo continua a ser hoje um modelo de independência, de livre busca da verdade, da resolução dos conflitos pelo diálogo, pela paz, dentro do reconhecimento da unidade das religiões e povos, na época pondo em causa a guerra contra os Turcos ou as conversões que se faziam nos Descobrimentos quando os próprios religiosos é que se deviam converter antes em si mesmo e a Si mesmo.
Com o seu nome dado ao programa europeu de intercâmbio estudantil, com as suas obras a serem ainda reeditadas, com um espólio fabuloso de mais de 3.000 cartas, temos de reconhecer que ainda há muito por fazer para que as suas compreensões e mensagens possam ser mais assimiladas pela humanidade dos nossos dias e este texto para o aniversário de Erasmo em 2024 insere-se nessa continuidade de erasmianos e cumpre assim, de seu amigo John Colet, deão do colégio de S. Paulo em Londres, e para o qual Erasmo escreveu um belo sermão do Menino Jesus, que nos nossos dias Eugenio Assensio e José V. de Pina Martins estudaram e muito apreciavam, a profecia de que "o nome de Erasmo nunca perecerá". E por nome, entendemos tanto a memória do seu ser, vida e obra, como a essência que se filtra ou destila através da leitura e reflexão sua e dos textos sagrados que traduziu ou comentou, e ainda a inspiração, comunicação e comunhão que possamos ter com ele enquanto espírito imortal, quem sabe se tão irónico e crítico (para nós) quão lúcido e clarividente.
|
Sancte Erasme, ora pro nobis, ora cum nobis. Aum, Amen. Deo gratias!
|