terça-feira, 15 de abril de 2025

Do Japão sagrado. Texto escrito algum tempo depois da peregrinação de 45 dias em 2010 e agora partilhado

Ainda acrescentarei imagens neste artigo...

 Escrever sobre o Japão e a sua religião e espiritualidade, e após uma única curta estadia, é tarefa bem difícil, não só pela tremenda riqueza do seu passado, que se estende bem até aos dias de hoje, como também pela vitalidade riquíssima dos seus santuários, cultos e festividades religiosas, os matsuri, além dos seus numerosos e activos grupos e seitas,  antigos ou recentes.
Uma peregrinação de apenas seis semanas e pouco como fiz a alguns dos seus centros tradicionais, isto é, ligados às suas duas religiões principais, o Shintoísmo e o Budismo, e mais até ao Shintoísmo (que significa o caminho do espírito, kannagara no michi, descrito ainda nos textos mais antigos como yao yorozu no kami, o das miríades de espíritos ou deidades), não pode deixar de ser limitada e incompleta, dada a variedade imensa de escolas, tradições, festivais, santuários e templos, espalhados por um território grande e diversificado.
Para sermos mais objectivos, a minha viagem no Verão de 2010 concentrou-se na ida a locais sagrados ou harmoniosos, seja a santuários e templos, seja a montanhas, jardins e rios, para os sentir e contemplar, e neles meditar e orar. As pessoas foram surgindo não só como as presenças locais humanas como também como elos de ligação para outros locais e ambientes. Trata-se pois de uma peregrinação a locais espirituais, associados a espaços sacralizados e em certos casos a práticas não só religiosas mas também esotéricas. Não contactei, nem procurei, qualquer seita, apesar de já ter lido sobre algumas, tal como a ligada Masahisa Goi, de quem li um notável livro, e que é ainda um grupo relativamente dinâmico.
Não pude assim discernir o que distingue animicamente tais praticantes em relação ao japonês normal que cultua o sagrado ou o divino, seja nos santuários ou nos templos, na maior parte dos casos nos dois (sobretudo enquanto peregrino), com a regularidade adequada e que pode ser mensal, ocasional ou diária, seja em sua casa, no seu pequeno santuário ou altar, em geral ligado também aos antepassados (otoke sama), nem compreender se realmente esses grupos permitem e causam um desenvolvimento espiritual maior que as religiões, embora seja natural pois trabalha-se e dialoga-se em grupos e ensinamentos nos quais se entrou por uma escolha selectiva e onde há instrutores ou mestres para esclarecerem ou impulsionarem individualmente... 


Pelo o que me foi dado ver e sentir nos templos e santuários, muitas das pessoas têm neles uma relação rápida com o mundo espiritual ou divino, bastando-lhes visitá-los, oferecer um óbolo, inclinar-se e pronunciar alguma curta oração ou desejo, sendo esta certamente por vezes intensa e sincera. Mas também vi, embora não com tanta frequência, pessoas a pronunciarem mais demoradamente orações, por vezes acompanhadas de gestos rituais (mudras, em sânscrito) com as mãos. E lembro-me num templo budista de Kyoto, uma mulher forte pronunciar as suas orações em voz alta, com os mudras e com a particularidade de parecer estar a emitir uma segunda voz harmónica simultaneamente. 


Vi no santuário considerado o principal do Japão, Ise, uma mulher na postura sentada de seiza, meditando ou orando, demoradamente, com as mãos juntas no peito, perto do muro que delimita o pátio do acesso sul ao santuário externo (gegu). Lembro-me de peregrinos, com a roupa e o chapéu característicos, a recitarem as suas orações acompanhadas do gesto típico de massajarem as contas do rosário, ou ainda de outras pessoas orando mais profundamente, nomeadamente no santuário de Shimogamo, em Kyoto, quando uma mulher me explicou como um pequeno santuário lateral estava consagrado a dois kami e como ali se sentia mais energia. 


Também num dos santuários-montes que mais peregrinei, o de Omiwa, perto de Nara, uma jovem, no local mais alto, tirou da sua mochila um livrinho e leu demoradamente um norito, uma oração antiga shintoísta, em voz alta. E, depois de uma conversa, sempre difícil pela escassez vocabular da língua comum, pedindo-lhe eu para recitar outra vez o norito, para que assim se abençoassem certos objectos, tal como um cristal da serra do Marão, trazido de Portugal (para depositar no cimo da montanha, algo que para elas não se devia fazer, mas que acabaria por acontecer...), ela concordou e, sacando da carteira uma ou duas pedras jóias-amuletos e pondo-as numa espécie de altar, sobre eles pronunciou as orações, acompanhadas pelas minhas, ambas expressas com kotodama, a gentileza e força da verdade da Palavra pronunciada conscientemente.
Dentro da religiosidade normal dos frequentadores dos santuários shintoístas e templos budistas há praticantes mais esotéricos e espirituais como também os membros de seitas e grupos das chamadas novas religiões não desdenham cultuar o sagrado nos sítios tradicionais, tanto mais que estão em locais de grande beleza, harmonia e forças.
Falemos um pouco sobre locais sacralizados: o Shintoísmo, sendo a religião mais antiga do Japão e intimamente ligada e nascida da Natureza, sem estátuas e antes cultuando os kami, as deidades ou espíritos subtis e os agentes dos fenómenos da natureza, e sobretudo as árvores, as pedras, as quedas de águas e as construções sagradas como locais de possível habitação das tais miríades ou 80.000 kami, conseguiu por essa percepção, sensibilidade, reverência e consciência preservar muitas árvores, florestas, bosques, montes e montanhas que foram sacralizados e incorporados nos santuários e assim Ise, Izumo, Omiwa, Kamigamo, Shomigamo, Nikko, Daizen e muitos outros santuários shintoístas (denominados jinja, miya, yashiro, taisha, etc.) têm agregados a si grandes extensões territoriais, nas quais a natureza pura vigora poderosa, permitindo-se assim mais facilmente uma percepção aos humanos do divino nela e a possibilidade dos kami estarem mais perto de nós...
O próprio Budismo, que na sua origem era apenas uma doutrina e uma prática ou caminho (do meio) para se evitar ou sair da ignorância e do sofrimento e chegar à libertação-iluminação, ao chegar ao Japão no princípio do séc. VI e logo sendo adoptado como religião da corte, embora só nos sécs. XII e XII, com as seitas de Nichiren (e o seu simples mantra salvífico Namu Myoho Renge Kyo) e da Terra Pura ou Jodo, do monge Shiran, e a do Zen se estendeu mais ao povo, acabou também por desenvolver uma profunda sensibilidade estética da natureza e do espaço puro, em jardins e artes que ainda hoje sobrevivem na sua beleza e espiritualidade. Este amor à natureza do povo japonês e do shintoísmo, este com milhares de festivais e deidades ligadas ao ciclo anual de estações, à agricultura e à fertilidade, acabou por conseguir trazer até ao séc. XXI e mesmo às grandes cidades (construídas em geral com grande qualidade e harmonia arquitectónica-ambiental), não só esses espaços sagrados dos santuários rodeados de grande bosques ou arvoredos, mas também os festivais e procissões que, periodicamente, fazem descer as divindades do céu ou dos santuários à rua, à gente, fecundando assim o quotidiano com a erupção do sagrado e a participação solidária, fraterna e libertadora de todos os extractos da população. 


Observei e participei em alguns festivais, os Matsuri (da raíz etimológica que significa servir, oferecer), nomeadamente em Osaka, Kyoto, Tokushima e Hoguro, em Dewa Sanzan, e pude testemunhar o entusiasmo dos que participam e como o sagrado está presente, havendo em geral, em certos momentos, ou em todos eles, a presença do clero shintoísta, com a sua gravidade e dignidade masculina, e a graciosidade, reverência e elevação das miko, ou sacerdotisas femininas. 

Em Dewa Sanzan,com a amiga Takako, e onde comungamos o sake...

Nos santuários shintoístas, além da natureza preservada e e reconhecida como sagrada, em que há quase sempre pedras e árvores sacras (shinboku), marcadas com as shime nawa (cordas e papéis recortados em ziguezague pendurados) assinaladas deste modo como shintai, objectos sagrados em que os Kami podem estar ou descer, destacam-se as construções belíssimas, nos seus estilos estruturais característicos, em geral em madeira de cipreste e com telhados em colmo, renovados com a periocidade de vinte anos, e nas quais se encontram o santuário mais íntimo (honden), com os objectos sagrados, além de espaços e construções para a realização das cerimónias, nas quais se destacam as purificações (harae) feitas pelos graves e dignos sacerdotes (kannushiguji) ou pelas sacerdotisas auxiliares, as miko, jovens que, de saia branca e uma espécie de calça vermelha, tingem o espaço de uma sacralidade graciosa que não deixa de lembrar ao ocidental familiarizado com a história as vestais de Roma. Assisti a algumas cerimónias ou rituais, vi tanto sacerdotes como mikos realizarem orações e purificações com os instrumentos que utilizam para o efeito e, no caso delas, também com danças lentas ou movimentos harmoniosos, com as campainhas (suzus) nas mãos, acompanhadas da flauta , tocada por sacerdotes, e que transmitiam ou proporcionavam uma clara ambiência e sensação sacralizante e invocadora dos kami...
Pela dificuldade da língua, ou a brevidade das conversas, não falei se não umas poucas de vezes sobre as práticas esotéricas, nomeadamente das respirações, gestos, sons, visualizações e concentrações mas há muitos testemunhos de diversas fontes e grupos, e assim fui meditando e inspirando-me... 

Relembro as conversas com o guji de Omiwa, com um praticante de shugendo em Fushimi Inari e, num jardim Zen, em Kyoto, com uma mulher que vendo-me a meditar sentou-se ao meu lado e entabulou diálogo comigo, acerca das práticas espirituais e tipos de respiração  que praticava. Utilizei com frequência uma das orações transmitida por Norinaga Motoori, um dos principais doutrinadores do Shintoísmo do séc. XVIII: “Mujo Reiho Shinto Kaji...”, e que significa a invocação da descida divina sobre nós, no maravilhoso caminho espiritual. E consegui também fazer o misogi ou purificação com a água, numa cascata, em rios e no oceano, talvez a prática mais primordial e essencial (como purificação do corpo e alma e abertura ao alto) no kannagara no michi, a religião dos kami, ou shintoísmo. 


Passei, visitei, meditei, adorei em dezenas de jinjas ou santuários, a maior parte deles consagrados a Kami particulares, ou seja, em que os honden consideram-se como albergando certos Kami, do extenso panteão existente e cuja origem está marcada nas primeiras crónicas religiosas, históricas e mitológicas do Japão, o Kojiki e o Nihon shoki, dos anos 712 e 720. Contudo, não senti muito tais Kami em particular, mas sim a invocação ou mesmo a presença do Divino, ou do sagrado....
Não devo porém deixar de mencionar que, após ter dado o meu pequeno óbolo, ter puxado a corda ligada a um guizo, inclinado o busto e batido as palmas (kashiwade, o típico gesto de culto) e orado um pouco, em quase todos os santuários ou Jinja senti uma brisa, qual sopro misterioso, balsâmico, perfumado mesmo por vezes, vir, passar, questionando-me se seria proveniente de espíritos, anjos, kami, ou se mera circunstância material de estarem colocados em zonas que os ventos mais tendem ou gostam de passar e soprar...
A espiritualidade no Japão sente-se e exerce-se muito na peregrinação (junpai) e podemos dizer que cada visitante de um santuário ou templo é um peregrino em pequena dimensão, havendo depois aqueles que passam meses em peregrinações a zonas especiais, pois há várias montanhas e circuitos de santuários e templos, tais como o dos 88 templos da ilha de Shikoku, aquela onde está a cidade de Tokushima, peregrinação da qual o nosso escritor apaixonado pelo Japão do séc.XIX-XX, Wenceslau de Moraes, fala bastante admirador, ou ainda a dos 33 templos consagrados à compassiva Kannon budista, ou a dos santuários shintoístas da zona de Kumano. É nesse esforço contra as dificuldades do caminho e as limitações do corpo que se desenvolve uma energia espiritual irradiante que tanto toca o peregrino como aqueles a quem ele está mais ligado ou próximo, e que ainda hoje sustenta a volatilidade e a aventura peregrinante...
Peregrinação máxima no Japão, quase tão generalizada como a peregrinação a Meca dos islâmicos, ainda que sem nada de obrigatório, pois isso é palavra quase estranha ao Shinto (embora haja interditos e a noção forte de polução ou impureza), é a subida da montanha do Fuji (Fujiyama, e que também cumpri, de noite), algo empinada e árdua nos seus 4. 000 metros e tal de altura, estando no alto um santuário shintoísta consagrada ao kami da montanha (yama, zan). Mas são muitas outras as montanhas consideradas reizan (montanha-espírito) ou shintai-zan (montanha receptáculo do espírito ou do divino) e que nos seus tempos antigos não teriam mais do que uns postes ou pedras no alto, delimitando um recinto (himorogi) de acolhimento e adoração e que com o tempo acabaram por originar as construções de santuários, em pontos intermédios ou nas bases das montanhas, mais acessíveis a toda a gente.
Aspecto importante de espiritualidade comum ao Shintoísmo e ao Budismo é o culto dos jardins sagrados, cuidadosa e muito planeadamente construídos e mantidos, com as suas específicas variedades e princípios, adjacentes aos santuários ou aos templos, e onde se sente fortemente a presença do sagrado ou do divino, e em que a ideia do paraíso terreal aflora facilmente. Aí, céu e terra fundem-se harmoniosamente, com os cinco elementos a circularem ou a interagirem fluidicamente, participando nisso os vários reinos, destacando-se do animal os peixes, em especial as carpas, e as tartarugas, embora garças e outras aves não deixem de trazer a ligeireza e a liberdade que as caracteriza...
Também nas artes do bonsai, ou árvores reduzidas (de que há uma boa colecção no jardim botânico de Kyoto), do ikebana ou arranjo floral, ou mesmo a do chá (que pude participar uma ou outra vez), podemos sentir que elas brotam naturalmente do aprofundamento da grande sensibilidade do povo japonês à natureza, e que tal como os jardins, atingiram no Japão grande requintes de sensibilidade, estética e espiritualidade.
Falámos há pouco a existência nos santuários de certos objectos sagrados (shintai) e realmente eles dão ou aumentam a sacralidade do local, pois são meios do divino se tornar mais acessível sendo por isso também instrumentos ao serviço do divino. Destacamos
da divindade solar Amaterasu o mi kami, o Kagami ou o espelho mágico-sacro, a espada, Kusanagi no Tsurugi, e a joia Yasakani no Magatama. E comum a quase todos os serviços nos santuários os tamagushi, ou os ramos de sakaki com as dobras de papel, e o harai gushi, feito de dezenas de tiras de papel e que se abanam ou sacodem diante da pessoa, e depois à esquerda e à direita, todos eles com funções específicas, em geral purificadoras, e que sacerdotes e mikos, ou mesmo leigos, empunham; no caso do espelho, existente mesmo em casas (nos kamidamas), é uma imagem solar e da verdade muito venerada. Importantes também são os carros ou andores-palanquins, os mikoshi, onde segue, ou que contêm, um mitama-shiro, um objecto sagrado onde o Kami está presente ou actualizável... 

As danças, competições, músicas, cerimoniais, rituais, oráculos e adivinhações que se desenrolam nos templos e seus terrenos (sobretudo nas ocasiões dos festivais) são certamente um dos factores mais fortes de expressão da espiritualidade japonesa, mas convém lembrar ainda que a maior parte dos devotos shintoístas têm permanentemente um contacto com o sagrado em sua casa, através do santuário pequeno ou em miniatura (o kamidana, denominando-se butsudana o budista, que frequentemente está ao lado dele) onde fazem as suas oferendas e orações aos antepassados e ao divino, tingindo assim a casa e o quotidiano com uma maior espiritualidade. E certamente que muitos farão as suas práticas respiratórias, psíquicas e contemplativas diante do seu pequeno santuário...
Que outros factores poderemos mencionar como fazendo parte ou contribuindo para a espiritualidade japonesa?
Sem dúvida a sua cerâmica, os seus designs, as suas indumentárias e vestuários, a sua alimentação e terapêuticas naturais, as suas termas (onseen) as suas artes marciais (com o Bushido, o caminho da cavalaria, coragem e lealdade) e, sobretudo, claro, a literatura, a poesia (com os seus concisos mas tão sugestivos e impressivos haikus) e a arte, nesta a caligrafia, a pintura, a dança, o teatro nô, ou mesmo o desenho animado (anime, frequentemente com temas mito-religiosos) e, no Budismo destacam-se a pintura e a estatuária, pelo que os templos budistas (ao contrário dos shintoístas, mais simples e naturais) estão cheios de estátuas e pinturas (nomeadamente os mandara, suportes diagramáticos para a contemplação) frequentemente de grande antiguidade e qualidade, além dos objectos ritualistas diante dos altares.
Já quanto à teologia e doutrinas o Budismo leva a palma com milhões de obras publicadas, perante a mais modesta fecundidade shintoísta, assente nos antigos livros sagrados (shinten) de crónicas e de orações (norito) e sobretudo nas práticas e rituais praticados seja nos santuários (imperiais ou locais), seja popular, mágica e oracularmente, embora ao longo dos séculos tenha havido várias especulações e aprofundamento das bases, ou das doutrinas ou teologia Shinto, destacando-se Kado Azumamaro, Norinaga Motoori e vários outros autores, sobretudo a partir de meados do séc. XVIII, até para resistirem ao avassalamento que os Budistas causavam, e que levara à criação mesmo cedo do Ryobu Shinto, o Shinto dual, em que os kami eram apenas manifestações (honju) do Buddha, ou guardiões da sua doutrina...
Outro aspecto importante a termos em conta na sobriedade e espiritualidade japonesa é facto do Japão ser um conjunto de ilhas, vulcânicas e assentes sobre placas tectónicas muito instáveis e propícias aos terramotos, já que isso, parece-me, contribui para uma intensificação e concentração de energias, com várias consequências, duas delas são as que perante a transitoriedade e fragilidade da vida humana foram enunciadas em dois famosos princípios de vida ou mesmo conceitos filosóficos: o mono no ahare, a simpatia para todas as entidades, e o naka-ima, aqui e agora, pelo qual as pessoas vivem intensamente o presente seja no trabalho, seja na festa, seja nas purificações e práticas espirituais (harae, e mitama shimuze).
Por outro lado esta intensidade vai tanto dinamizar as pessoas para melhor resistirem às dificuldades e tragédias que constantemente as visitam, como a que a há dias (11-3-11) tragicamente se abateu sobre Sendai, como também impulsioná-las para a realização de objectivos materiais e espirituais, para os quais a beleza e fertilidade da natureza, e dos seus rios, florestas, culturas agrícolas e termas também muito ajudam, gerando as famosas qualidades de gratidão, kansha, a reverência e a sinceridade ou verdade, makoto. Assim as suas pessoas e famílias constituem um povo resistente, feliz, ordeiro, simpático, respeitador, trabalhador, concentrado, prestável, hospitaleiro e belo, e que encontramos tanto na cidade como no campo...
Já quase no final da peregrinação de 45 dias ao Japão consegui participar no monte Haguro, uma das três montanhas (Sanzan) de Dewa, num dos dias mais sagrados, sobretudo para os adeptos do Shugendo, essa mistura ou fusão de práticas e teorias do shamanismo, do taoísmo, do shintoísmo e do budismo, podendo contacar os Yamabushis, os ascetas das montanhas, das quedas de água e das caminhadas, tendo com dois grupos deles caminhado, comunicado e cultuado o divino com o fogo, as orações, meditações, contemplações e olhares, ao som de conchas, sopradas como os nossos cornos de boi lusitanos...
Mas, certamente, a religiosidade e espiritualidade do Japão tem cada um de a descobrir, sentir, viver e aprofundar por si próprio, com as suas osmoses, meditações, reflexões, leituras, práticas, peregrinações e diálogos, e este breve texto é sobretudo um convite, um apelo a sentirmos mais simpatia e atracção por este país e as suas gentes, e a visitá-lo de modo a convivermos e a comungarmos com as suas pessoas e tradições, ou a estudarmos e aprofundarmos mais os seus ensinamentos, qualidades, realizações... e os Kami...
Em Tokushima, junto ao túmulo de Wenceslau de Moraes e das suas duas mulheres, na noite do Bon-Odori, o festival dos mortos, que ainda dancei e filmei (youtube), e que foi, com a subida ao monte Fuji e a entradas e meditações nos santuário de Ise, Omiwa e Fushini Inari, os pontos altos..

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Do amor e culto dos pés santos e suas medidas e pegadas, no caminho da vida e verdade. Maria, mãe da Graça.

 Do culto e amor dos pés puros e suas medidas e pegadas, no caminho da vida, virtudes e verdade.

A importância dos pés na peregrinação da vida é um dado adquirido pelos que caminham ou caminharam muito. Seja pelo que sofreram,  conseguiram, ou a segurança, prazer ou alívio que sentiram...
A sacralização dos pés é pois natural dada a sua maravilhosa anatomia, bela apresentação, extraordinária capacidade de utilização (pense-se nos que pintam com os pés), e simultaneamente a fragilidade face aos mil acidentes da vida, que quase todos já experimentaram, a via crucis...
Para quem conhece as tradições orientais da circulação da energia, prana ou ki por centros de força e meridianos, alguns destes terminando ou começando nos pés, ou ainda as técnicas ocidentais da reflexologia e massagem metamórfica, sente bem justificado o seu cuidar, massajar ou cultuar.
Tal acontece mais tanto entre as pessoas que se amam, como nas que sabem utilizar bem, apreciar e massajar os pés, e ainda na adoração  dos gurus ou mestres através dos pés, muito prevalecente na Índia; onde os fundadores das religiões, tal Budha e dos avatares, ou descidas-incarnações da Divindade entre os humanos, tal Rama e Krishna, recebem também um culto forte e exemplar, pois pelos pés o espírito aterra no solo, e pelos pés nus liga o Céu e a Terra...
Um dos cultos que entre nós, Portugal mas não só, existiu é o das pegadas ora de Jesus, ora de Maria, ora de algum santo e santa, ou mais recuadamente de moiras, e que se descortinam, ou legendariamente se atribuem, em penedos e santuários, tal no cabo Espichel, na serra de Sintra e em vários locais do Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes
Outro culto é o das medidas do pé em forma, e que apresentamos um exemplar, e haverá certamente outras versões  perdidas, no fundo extraviadas do grande e em falta Museu Devocional de Portugal. Referimo-nos à medida do pé de Maria, mãe de Jesus, e que se usava para estimular a devoção, oração e contemplação. E talvez para se venderem nas suas cópias, que prometiam indulgências...
O exemplar que conhecemos é um paciente trabalho artístico sobre papel de início do séc. XIX, com 14x28 cm (e dobrado fica fechado e protegido), pois entre as quatro orlas que fazem de aura protectora ou irradiadora do pé-alpercata (7x20 cm) e da mensagem escrita (que está encimada por uma estrela de oito raios com um sol de dois círculos ao centro), desenhou-se um denteado de triângulos preenchidos de belo efeito e que faz até lembrar a decoração geométrica dos ídolos placas em xisto.
Desconhecemos se esta cópia do original foi única ou se foi produção dum devoto, dum artista ou provavelmente dum monge ou soror dum mosteiro. E ignoramos se foi e é uma cópia fiel da alpercata ou sandália existente (certamente lendária), ou se é apenas uma criatividade própria a partir de se ter ouvido...
Quanto ao seu uso, se fosse na Índia não teríamos dúvidas que as pessoas tocariam a testa com o desenho. Em Portugal, pensamos que talvez beijassem a imagem, ou rezassem diante dela ou ainda andassem com ela no bolso do casaco. Mais curativa paracelsicamente seria deporem um pé sobre ela e invocar ou evocar forças e  bênçãos.
Quanto à contemplação mais demorada dela, na totalidade ou em pormenores e na assimilação no corpo e alma do devoto que a possuía ou do peregrino que a contemplava, apenas poderemos intuir...
Vamos transcrever a legenda e compreender talvez melhor este invulgar e belo ícone português:

«Medida exactissima de pé da Bemaventurada Mãe de Deus tirada da sua verdadeira alpercata   que se venera com grande devoção em um mosteiro de Hespanha. O Pontífice João XXII [1249-1344]  concedeu 300 anos de indulgências a quem beijar 3 vezes esta medida  e rezar três vezes a ave Maria: o que também foi confirmado pelo Papa Clemente 8º [1536-1605] no ano de 1603.
Esta indulgênci
a não havendo prescrição de um ano se pode adquirir quantas vezes quiserem os devotos da Santíssima Virgem Maria. Pode aplicar-se pelas almas do Purgatório. (...)
Maria, Mãe da G
raça rogai por nós». 

Já um outro exemplar do mesmo culto, apresenta outra imagem: 

                                           

Encontrámos pois na web esta versão  bela do culto da medida do pé, a qual reza assim: "Medida do santíssimo pé da Bem Aventurada Virgem Maria Mãe de Deus, tomada de um calçado da mesma Senhora o qual existe no mosteiro de Saragoça em Madrid. O Santo Padre João XXII  concedeu 700 anos de indulgencia às pessoas que beijarem três vezes esta bendita medida e ao mesmo tempo rezarem três Ave Maria, alcançarão ainda: livramentos de todos os males. Confirmada pelo Santo Padre Clemente VII no ano de 1604, Aquelas pessoas que as trouxerem consigo serão livres de morte repentina» 

Este exemplar, captado na página de araujoelcatolico tem algumas diferenças:a imagem de Maria é transmitida, promete-se o livramento de morte repentina a quem andasse com a estampa, alonga-se o prazo da indulgência e explicita-se que tal relíquia se encontra num mosteiro de Saragoça. Desconhecemos se existiu em algum mosteiro seja de Saragoça, seja de Madrid. De realçar a possibilidade de se orar diante do Santo Pé pelas almas já partidas da Terra com melhores efeitos, o que é bastante original ao nível de transmissão psico-mórfica subtil e ígnea, e na realidade o fogo do Amor une o Cosmos...

Caminhemos na verdade, no amor, na coragem e saibamos amar-nos pelo coração dos pés à cabeça! Aum Agni Ignis Aum...

domingo, 6 de abril de 2025

Um poema às árvores sagradas, e aos plátanos da avenida das termas de Caldas do Moledo, escrito junto ao rio Douro.

 

No meio dum caderno diário de bolso de 76 páginas escrito em 2010  na serra da Estrela e numa peregrinação ao rio Douro encontrei quatro poemas. Passo a transcrever um deles, o segundo, escrito já de Caldas do Moledo, na margem do tão divino rio Douro:

Árvores sagradas, na serena seidade
ligando o Céu e a Terra sempre.
Humanos dedicados à Divindade
amando o Universo no eterno presente.

Fundações da coluna vertebral
encostadas às grandes árvores.
Ouvidos captando os piscos e o infinito,
o nosso coração flamejante e bendito.

Rasgar os véus das limitações e medos,
desabrochar mais plenamente o espírito.
Seres criadores, fortes em grupos irradiantes,
capazes de arderem no Amor Divino.

Criar, regenerar, ousar, elevar e ser
eis uma regra e escada por onde ascender
dentro e fora, na aura e no coração 
flamejar e comungar com brisas e almas,
ser a palavra Divina, Amor Sabedoria em acção.

sábado, 5 de abril de 2025

Doze pinturas de Nicholai Roerich realçando a missão histórica e espiritual da Rússia, tal como vemos nos nossos dias. Boas para contemplação.

 Doze pinturas do mestre russo  Nicholai Roerich (1874-1947) que contêm imagens e símbolos  da missão histórica e espiritual da grande Rússia, neste momento tão invejada e atacada pelos parvinhos ocidentais mais fanáticos no seu ódio à Rússia, aos seus grandes seres e ao seu destino-missão-dharma, tão sondado e anunciado por S. Sérgio de Radonega, S. Serafim de Sarov, Dostoievsky, Berdiaef, Soloviev, Bulgakov, Florensky, Alexander Dugin, e sua filha Daria Dugina Platonova (muita luz e amor na sua alma martirizada!)

                  
Uma das almas heroicas da Rússia, invocando o fogo cósmico e a sua invencibilidade!
Vencer as forças não razoáveis, ou mesmo demoníacas. O herói vence a mítica serpente dragão, Zmei Gorynych. Pintura de 1942.
                  
A Mãe do Mundo, o Princípio Feminino da Divindade, contendo e oferecendo-nos como face de Deus a bandeira da Pax pela cultura, a verdade, a ciência, a religião, o amor, a multipolaridade.
A Bandeira do Pacto da Paz, criada por Roerich, em 1935, nas vésperas da II grande Guerra, no  para proteger cidades e monumentos e que foi apoiada por alguns governos.
Ler livros, escrever bons livros é uma arte que liga harmoniosamente a Terra e o Céu, e pela qual entramos no Livro dos Livros ou Livro da Vida.
"O Mensageiro", apressando-se no fogo do seus propósito emissão. E assim somos todos nós, se não nos deixarmos iludir, amilhazar, infrahumanizar..
O Espírito Santo, entre Anjos ou Arcanjos, pintado por Nicholai Roerich, numa abóbada de uma igreja, numa boa mandala para contemplação e invocação em nós..
Uma das pinturas contempladas para cura: S. Pantaleão, mestre das ervas medicinais, e de quem relíquias chegaram a Portugal, Porto, Tomar...
Uma das bandeiras do Futuro, com a representação do mestre dos reinos Himalaicos, Himaváticos.

S. Sérgio de Radonega (1314-1392), mestre espiritual da Rússia, lembrando-nos que devemos aceder ao templo divino na terra, no íntimo da nossa alma
S. Jorge, os santos e mestres, vencendo com a Rússia as forças demoníacas do planeta, e podemos dizer, sem errar muito na actualidade, da oligarquia ocidental, dos políticos e jornalistas europeus vendidos ao Fórum Económico Mundial e à Open Society, da NATO e da desgraçada direcção da União Europeia...
Que o futuro da Humanidade seja feliz e bem iluminado pela Divindade e pelos grandes seres. Que a multipolaridade justa e fraterna triunfe... Aum Agni Aum.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Um espiritual ou dervishe persa responde há 800 anos a um tirano, ou aos que hoje querem atacar o Irão. Do Gulistão, do perene Saadi...

Nestes tempos, em que muita gente se interroga até onde irá a ganância de poder opressivo da oligarquia globalista e dos impérios norte-americanos e sionistas, ou seja, se o catavento do Donald Trump, impulsionado por certos grupos de pressão, atrever-se-á irresponsavelmente a atacar o Irão, tal como alguns dos melhores comentadores políticos receiam,  será talvez o mais indicado confiarmos nas forças do Bem e da Divindade e, pelas nossas meditações e palavras, emanarmos as melhores energias para o planeta e os intervenientes mais decisivos e seus aliados. E sintonizarmos com a sabedoria e coragem perene dos iranianos.

Em verdade, a tradição cultural do Irão é assombrosa, imensa e está viva nos milhões dos seus habitantes, como eu constatei há uns anos quando fui convidado a pronunciar algumas conferências sobre a poesia e espiritualidade persa, e até as suas relações com a que se desenvolveu em Portugal e na expansão portuguesa no Oriente.

Nesses quarenta dias de peregrinação por cidades e universidades, mesquitas e centros, pessoas e sábios, trabalhei com algumas pessoas na tradução de textos de Hafiz e Saadi, e partilhei até já alguns frutos neste blogue. Uma história do Gulistão, que já tinha apresentado, é tão curiosa e actual que a transmito noutra versão, para não perdermos a esperança de que a impunidade criminosa não vencerá  e que os dirigentes injustos podem ser reeducados, detidos, castigados. Oiçamos então o grande Saadi, nascido em Chiraz provavelmente em 1213, e a voz da sabedoria da grande Alma Persa, agora a ser ameaçada perigosamente.
«Um dervishe, cujas orações eram respondidas ou abençoadas, apareceu em Bagdade e Hejjaj ibn Yusuf [661-714, famoso general e governador da dinastia Umaiade], foi informado e resolveu chamá-lo e dizer-lhe:
“ - Pronuncia uma boa oração por mim” [ou, Abençoa-me com um boa oração]".
O dervishe não demorou a responder-lhe: “- Ó Deus, toma-lhe a sua vida”.
Al-Hejjaj ibn Yusuf, muito admirado, exclamou: “- Por amor de Deus, que tipo de oração é essa?”
O dervishe retorquiu:”- É uma boa oração para ti e para todos os que te estão sujeitos”...

 Ó poderoso atormentador dos mais fracos,
Até quando continuarás a comportar-te assim?
Qual é a utilidade do teu governo?
Já que causas sofrimento às pessoas, é melhor que morras.»
 
 A lição ou moral da história é simples: a conversão, demissão ou mesmo o desaparecimento dum dirigente mau, cruel, diabólico pode ser pedido ou orado à Providência divina, e aos seus agentes ou intermediários, sejam os santos e santas, os mestres, os anjos e arcanjos, para que se realize para o bem de todos (faça-se a Vossa vontade) e mesmo dele, que não incorrerá assim em mais consequência negativas, ou karma.
Possam os povos, e no caso concreto os iranianos e os das regiões limítrofes,  não serem sacrificados à hubris imperialista anti-iraniana e escaparem da inveja, da opressão e da guerra.
Possam a multipolaridade e o direito à auto-determinação democrática não serem destroçados pela ganância autoritária da oligarquia globalista, liderada pelos USA, União Europeia, Reino Unido, Israel e NATO.
Triunfem o discernimento, a justiça, a fraternidade e a paz na Humanidade e na Terra Mãe, que merece mais agricultura e alimentação biológica do que bombas e ruínas de cimento. 
Floresça a Primavera em paz e Amor!
  

domingo, 30 de março de 2025

(des) Velamentos de Pedro e Inês. Algumas imagens da exposição no Museu do Vinho de Alcobaça. E com o texto do meu contributo.

Cartaz da exposição de curadoria do Alberto Guerreiro, com uma das notáveis fotografias de Jorge Prata. Seguem-se dois dos trabalhos da Maria De Fátima Silva.

                                           

As fotografias dos túmulos, por Jorge Prata, numa imagem da autoria do Alberto Guerreiro.

           Três imagens das belas pinturas da Nélia Caixinha, baseadas nos sublimes túmulos:

                                           As alegres e multicoloridas  pinturas da Joana Guerra...

 
O delicado e original trabalho de João Leirão e Cristina Henriques
As apresentações, primeiro pelo director do Museu, Alberto Guerreiro e depois pelos artistas, nesta imagem a da Maria da Fátima Silva, perante um público bem interessado.
Nélia Caixinha
Joana Guerra explicando a sua obra.
O Céu dando sinais do Amor "até ao fim do mundo", que devemos viver...
Nelson Ferreira apresenta o seu sacro trabalho de ícones russos e gregos.
Uma fotografia do relicário de Inês, por Jorge Pratas...
São Nicolau, pintura de Nelson Ferreira, e moldura em prata russa.
Imagens da notável conferência de Jorge Pereira Sampaio, na 2ª imagem mostrando o relicário com cabelos de Inês..
O relicário de Agnes: seus louros cabelos, sete séculos nos interpelando: o que fazemos de amor e de bem?
Uma assistência paciente, pois a valiosa conferência foi de mais de uma hora  e prolongou-se num animado diálogo
Fotografia de todos os artistas participantes, rodeando o Alberto Guerreiro, director do excelente museu.
Fotografia da frente do painel, e tal como a seguinte captada pelo João Leirão, onde estava o meu contributo, que  transcrevo acompanhado  de sete fotografias obtidas na igreja do mosteiro antes de nos dirigirmos para a exposição. 
A minha breve oração em homenagem a  Pedro e Inês e à Tradição Espiritual Portuguesa. 

                               INÊS E PEDRO:  AMOR ATÉ AO FIM DO MUNDO...

Quando Inês e Pedro, a Galiza e Portugal, em 1340, se encontraram e apaixonaram: olhos, cabelos e gestos, forma, voz e espírito, não poderiam antever como o fogo do amor aceso nas suas almas, e irradiante por quinze anos, da Lisboa cortesã à Coimbra das ninfas do Mondego e das fontes, da Serra d'El- Rei e Moledo ao rio Douro e Oceano em Canidelo, atingiria a perenidade de nos congregar, quase setecentos anos depois, nesta exposição, em Alcobaça, terra e junção de rios sagrada e onde os seus corpos e almas estão sublimemente imortalizados.

Inês de Castro, ao ser morta violentamente, no sombrio 7 de Janeiro de 1355, no paço de Coimbra, em plena formosura, maternidade e doçura, derramou a sua energia por toda a eternidade, e a paixão que os transfigurava circula ainda hoje no sangue e alma dos que os amam e intuem os seus êxtases e dores e aspiram ao desabrochar do coração e do amor, da liberdade e da unidade.

Depois das oposições e desterro saudoso, morrendo D. Constança, viveu alguns anos Inês com ele, ledos e de comunhão com a natureza, coroada de rosas e boninas por D. Pedro oferecidas e, dessa intimidade nua e pura inscrita no coração, em três partos foi abençoada. Mas, depois, quanta apreensão pelas ameaças, quanta revolta e luta face aos assassinos, quanto sacrifício na entrega à morte e abandono dos meninos, olhos postos no céu cristalino?

O pleno amor de Ynês, subitamente ceifado, permanecerá vibrante em Pedro e entrará no além e no imaginário, fecundando a grande alma portuguesa e europeia na demanda da justiça, da beleza e do amor, inspirando muitos a exaltar Inês como musa e mártir ungida.

Depois da guarda do corpo de Inês pelas sorores clarissas nas margens alagadiças do Mondego, em Abril de 1362 dá-se a sua impressionante trasladação para a firme Mater cisterciensis de Alcobaça, ao qual se juntará o de Pedro em 1367, e os túmulos vão tornar-se um íman impulsionador de criações artísticas e literárias, lendas e mitos, no culto dum Graal de amor extremo.

                        

O perigo da audácia traiçoeira dos adversários da relação ou casamento, perigosa para o Reino segundo eles, fora negligenciado por Pedro e, ao ausentar-se para o exercício da montaria, deu azo à fatalidade da qual ninguém poderá sentir o impacto desintegrante na sua alma e cérebro, bem como nos três filhos de tenra e impressionável idade.

Em "grande desvairo", como narra o cronista Fernão Lopes, D. Pedro, sangrando, com as suas hostes e as dos irmãos de Inês vindas da Galiza, faz seis meses de razias no Entre Douro e Minho, onde os conselheiros culpados tinham suas terras. Acercando-se do Porto, porque o Rei e o seu exército já estavam em Guimarães, e pela mediação do Prior do Crato e de D. Beatriz, santa mãe e avó, assinam-se três acordos de amnistia e concórdia, em Agosto de 1355, jurando D. Pedro o perdão dos matadores e recebendo poderes judiciais.

Passados dois anos, com a morte do pai, D. Pedro, rei e senhor da Administração e da Justiça, assume a responsabilidade de as bem executar, e logo revoga o juramento pronunciado verbalmente, enquanto alma mutável mas não de coração e faz morrer cruelmente dois dos culpados. Confiava na justiça e misericórdia Divina, e nas orações e missas, velas, aspersões e incensos que os frades cistercienses lhes consagrarão durante séculos, e só os clarividentes intuirão os efeitos subtis de tais elementos, sons e intenções nas suas almas ascendendo no corpo místico da Igreja.

                                                               

O cognome de Justiceiro ou Cruel será apropriado conforme as circunstâncias, pois tal virtude cardeal tão demandada por Pedro e exercida duramente, também o foi sublimemente, ao fundar a obra-prima da estatuária jazente portuguesa, fazendo justiça ao amor divino incarnado e tão precocemente separado, imortalizando-o na união artística da Mors-Amor, sublimadora dos participantes das limitações corporais e históricas.

A perenidade exemplar do amor de Pedro e Inês, vencendo interesses políticos e matrimónios de conveniência, ódios, fragilidade e morte, brota tanto da intensidade do Eros vivido e da unidade alcançada, derramados por seus descendentes e todos, como da arte dos anónimos artífices dos túmulos, orientados por D. Pedro e os monges brancos alcobacenses.

As suas vidas e sentimentos, cinzelados em rosáceas e pétalas animadas de cenas historiadas e íntimas, em roda da vida e via sacra paralelas à dor e amor do ungido Jesus e do mártir e mítico apóstolo das Índias S. Bartolomeu, fecundarão de modos caleidoscópicos os sucessivos peregrinos, poetas e fiéis do Amor que as admirarão.

                                     

A numinosidade serena das faces de Inês e Pedro, brotando das suas estátuas jazentes, entre seis pares de anjos de guarda, é uma iniciação ao fogo do Amor divino no coração, e à luz da Sabedoria no olho e corpo espiritual, ou de glória, de cada um.

                            

A missão de revificar o fogo do amor unificador e imortalizador de Inês e de Pedro, e em quem ama, pois provimos do Logos solar e devemos emaná-lo em reciprocidade e criatividade, inspirará ao longo dos séculos os que entrarão nesta grã-corrente e tenção do "quem puder fazer bem, faça" (Garcia de Resende), do "désir", divisa do infante D. Pedro (seu neto e de Teresa Lourenço, da Galiza), e do  amar "até ao fim do mundo", fortificando a chama do Amor, na condição humana frequentemente "mísera e mesquinha", tal como nos Lusíadas canta Camões para Inês, na esteira de Sannazaro no De Partu Virginis para Maria, tal como discerniu Faria e Sousa.

Ao lermos, ouvirmos e admirarmos tais criadores e criações unimo-nos num culto à liberdade e beleza, energia psíquica e amor, na religação ao espírito, à Divindade, ao Cosmos, no campo unificado pluridimensional de energia consciência informação.

Que o nosso coração e ser brilhem flamejantes, em sintonia com Jesus e Bartolomeu, Inês e Pedro, os anjos e arcanjos e a tradição Espiritual de Portugal. Viva Deus, santo Amor!