Guilherme Joaquim Moniz Barreto nascera a 15-III-1865 em Ribandar, Pangim, Goa, e seu pai era um oficial do Exército da Índia, de ascendência minhota e açoreana, mas que morrera cedo, tal como sua mulher, sendo a criança educada pelos seus avós maternos, os Visconde de Bucelas, ele um sábio, cientista, pintor e Presidente do Supremo Conselho de Justiça Militar. Desde novo manifestando dotes precoces poéticos e matemáticos, na adolescência, o seu tio, Tomás de Aquino Garcez Palha, pelo casamento Barão de Combarjua, foi eleito deputado por Salsete em 1879 e partiu para Lisboa, estimulando-o a vir também, a fim de frequentar o Curso Superior de Letras, e assim acontecerá em 1880, aprendendo Moniz Barreto com professores tais como Jaime Moniz, Manuel Ferreira Deusdado, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e Adolfo Coelho (este ainda activo no tempo de Fernando Pessoa, e sendo um anti-modernista), e convivendo (com "a trágica pobreza asfixiante que lhe sugou a seiva da vida", no dizer Cristóvão Aires, já que se independentizara do apoio familiar), ainda com Oliveira Martins, Eça, Junqueiro, Gomes Leal, Fernando Leal, Frederico d'Ayala, Tomás Ribeiro, Oliveira Lima, Gualdino Gomes, Constâncio Roque da Costa, D. José Pessanha, D. Tomás de Vilhena, alguns destes bons amigos de Antero de Quental, com quem Guilherme se terá encontrado uma ou outra vez.
Tendo lido muita literatura, filosofia, psicologia, sociologia e história das religiões reflectindo e escrevendo muito bem, distinguir-se-á como explicador, sociólogo, filósofo, psicólogo e sobretudo crítico literário (Revista de Estudos Livres, O Repórter, Jornal do Comércio, tendo Taine sido um dos seus mestres), um dos melhores que tivemos até hoje (e José Tengarrinha dirá que em Portugal foi "o iniciador da crítica literária por processos mais ou menos científicos"), tendo o seu Oliveira Martins, Estudo psychologico, editado em 1887, após ter lido toda a obra dele, sido elogiado por Antero de Quental numa carta que lhe dirigiu e da qual se conhece um fragmento preservado por Manuel da Silva Gaio, seu amigo mais íntimo: «O seu livrinho é perfeito: ideias, ordem, estilo, tudo está como deve ser. E como a perfeita aprovação é de sua natureza concisa, aqui termino esta carta.» Anote-se ainda que o exemplar lido e conservado hoje na Biblioteca de Antero de Quental, em Ponta Delgada, nos Açores, tinha a seguinte dedicatória: «Ao sr. Anthero de Quental, em signal de admiração, off. Moniz Barreto».
Antero de Quental seria certamente um dos melhores críticos do livrinho de Moniz Barreto, pois já escrevera três artigos sobre obras de Oliveira Martins, em jornais e revistas, em 1872, 1872 e 1884, que virão, com outro, a ser publicados postumamente em livro, em 1894, além de o ter conhecido intimamente muitos anos.
Uns meses depois deste elogio de finais de 1887, já em 2-II-1888, Antero remata uma carta bem afectiva para Fernando Leal assim: «Adeus. Lembre-me ao João [de Deus] e aos simpáticos goanos. Do seu do coração, Anthero de Quental» e, como Ana Maria Almeida Martins em anotação nos seus três volumes das Cartas, identifica:«Os Goanos são Guilherme Moniz Barreto e Frederico Dinis de Ayala (Goa, 1859-1922), jornalista e historiógrafo. Era primo de Moniz Barreto.»
Ano e meio depois, em 10 de Outubro de 1889 (já depois dos artigos na Revista de Portugal de Moniz Barreto que Eça de Queirós não gostara muito), da sua tebaida de Vila de Conde, voa outra carta para Fernando Leal, acerca da tradução que este fizera para francês do seu formidável soneto Mors-amor, e no fim com nova referência a Moniz Barreto. Oiçamos Antero, quase saudoso do amigo Fernando, no final dela: «Diga-me como passa, física e moralmente. Oxalá que melhor. E que faz? Prosa ou verso? Lembro-me dos bons bocados de tardes, este Verão, em sua companhia.
Estou agora aqui numa solidão, que até a mim me faz horror. Dê lembranças minhas ao [Moniz] Barreto e ao João [de Deus] quando os vir. Do seu do coração/ Anthero de Quental.»
Pouco se sabe (até hoje) do que comunicaram mais directamente, para além do que poderemos conjecturar das afinidades e simpatia mútuas, embora Vitorino Nemésio realizasse um excelente prefácio, à edição que em boa hora a Livraria Bertrand publicou em 1944 dos Ensaios de Crítica, de Moniz Barreto, nele fazendo tanto a biografia como análise crítica da sua obra e metodologia, e depois se acrescentasse nos anos 60 o livrinho de José Tengarrinha, biografando-o nas Edições Tempo, nº2, Novos Ensaios, com uma boa antologia dos seus escritos, pelo que só nos resta imaginá-los dialogando, quem sabe até se na presença de Fernando Leal e de Frederico Ayala, nas poucas vezes que se encontraram...
Como Moniz Barreto desembarca em 1880 em Lisboa, e Antero de Quental esteve em Lisboa de Novembro de 1879 a Julho-Agosto de 1881, numa época de actividade política, mas sendo apenas um jovem de quinze anos não se terão encontrado. Já anos depois Antero está em Lisboa umas breves semanas, em Fevereiro e Outubro de 1887, e outras de Junho a Agosto de 1889. E estará de Setembro de 1890 a Março de 1891, de novo e, quando sai definitivamente de Vila Conde a 30 de Abril, ficando por Lisboa, Maio e Junho, até ao dia 5, quando zarpa no Açor para a sua viagem última à ilha-mãe de São Miguel nos Açores. Foi nestas últimas vezes que se terão encontrado, pois Moniz Barreto já escrevera com simpatia acerca de Antero. E quanto a encontros do género há um registo de José de Figueiredo valioso, citado por Vitorino Nemésio: «Nunca me esquecerá uma discussão entre os dois sobre o budismo, num jantar por mim oferecido a Eça, e a que Barreto assistiu», pois certamente Moniz Barreto compreenderia bem melhor o Nirvana que Eça ou Oliveira Martins. Já a conversa ou satsanga sobre a espiritualidade indiana e o Budismo entre os dois deveria ser bem mais profunda, cordial e com silêncios...
A partir de referências em livros ou artigos dos seus amigos, Vitorino Nemésio tenta reconstituir algo da vida dele: «Se Moniz Barreto não é um genuíno republicano, modelo 1880, andava todavia lá perto. Um frequentador [M. R. de Assis e Carvalho] do Clube Henrique Nogueira em 1886 encontrava por lá "o seu
tipo franzino, anémico, de maneira acanhadas e de palavrinhas mansas".
Tinha a seu cargo a Biblioteca Municipal, à rua da Inveja, e aparecia à
tarde, com Gomes Leal e os intelectuais inconformistas, na Nova Livraria
Internacional, foco de agitação que Carvalho Videira mantinha na rua do
Arsenal.
"Era
um perfeito anacoreta"; não ia pelos cafés e frequentava pouco os
teatros», dirá Cristóvão Aires, numa valorização do recolhimento que Antero também desenvolvera bastante, desejando até criar uma Ordem de Mateiros, dedicados à reflexão e contemplação, na Natureza. Mas em 1890 Moniz Barreto viaja pela 1ª vez a Paris, segue cursos, tal como Antero em 1866, no Collège de France, e
come pouco para trazer muitos livros, algo que já sucedeu a muitos de nós...
Em
1891 é preterido num concurso para professor do Colégio Militar, não
pelas provas (que não se realizam) mas pelas cunhas (nomeação), o que o desilude muito (e Antero também foi impedido ou dissuadido de prestar provas para professor), e em 1894, depois
de uma breve ida ao Brasil, parte para Paris onde trabalhará como
correspondente do Jornal do Comércio, realizando assim um belo Graal da Índia, Brasil e
Portugal, já que nascera na Índia e lá respirara a síntese indo-portuguesa do seu ambiente. É desta época parisiense a grande convivência afectiva e dialogante entre António Nobre e Moniz Barreto, conforme o poeta do Só confessa extensamente em extraordinária carta a Manuel da Silva Gaio, de 21-III-1895: «O Moniz Barreto é, dentro dos portugueses, o meu mais íntimo companheiro, o único talvez. Temos passado até às 5 da manhã a conversar, a conversar sempre, sem um minuto de silêncio, sem um minuto de fadiga. E em nossas conversa tudo percorremos: arte, filosofias, almas e o Manuel Gayo muitas vezes é por nós evocado dentre as sombras deste velho Bairro Latino. O Barreto merece tudo quanto se diz dele. Merece talvez ainda mais. Nunca encontrei um homem tão inteligente ao mesmo tempo tão sábio (...)»
A sua ascendência de "aristocracia militar" dava-lhe talvez tanto um certo orgulho como também «o desprezo do oiro, irmão do desprezo da morte» (como afirma no seu diálogo filosófico Angelo ou o emprego da vida) e as sucessivas experiências profissionais frágeis (explicações e os artigos e correspondência) foram insuficientes para que em Paris não estivesse numa certa miséria, embora convivendo com Eça de Queiroz, que o quis ajudar, e sobretudo com António Nobre, sobre quem escrevera uma crítica valiosa ao Só e, tal como nos assinala o seu biógrafo Vitorino Nemésio, «a sua vara de crítico, tolhida por uma vida reclusa, hesitante e infeliz, caiu-lhe da mão aos 33 anos», mais precisamente num provavelmente frio 28 de Dezembro de 1896.
O seu espólio será recolhido por Eça de Queiroz, que o passa a Luís de Magalhães, o qual por sua vez o entrega a Manuel da Silva Gaio, que o tenta utilizar para refundir a sua obra os Novos, onde biografava o seu amigo Moniz Barreto, mas não consegue e o espólio vai parar às mãos de Agostinho Campos, que o deposita na Biblioteca da Faculdade de Letras. José Osório de Oliveira, Fidelino Figueiredo, Mário Sacramento e António Sérgio serão os principais pensadores que o estudarão e valorizarão.
Ora sobre Antero de Quental no Reporter, um jornal que teve como redactor-chefe sucessivamente Pinheiro Chagas, Oliveira Martins e Fialho de Almeida e notável colaboração, escreveu Moniz Barreto vários artigos e com incidência em Antero de Quental, nomeadamente no número de 1 de Agosto de 1888, em Filosofia Portuguesa:«Ocorre aqui naturalmente o nome de um escritor, que é um dos maiores de toda a nossa literatura e o mais elevado poeta que tem pulsado a lira portuguesa.
Conquanto o tratado de filosofia anunciado pelo sr. Antero de Quental seja apenas uma esperança, pode-se ajuizar quais serão as tendência da sua síntese. (...)
O que há de original na maneira por que o sr. Antero de Quental repensa a velha explicação dinâmica [a Vontade, de Franz Hartmann], só se poderá conhecer quando aparecer o seu livro. / É ainda o espírito quase isolado, que representa entre nós uma grande direcção da filosofia moderna - a escola crítica.» Realça-se a bela e sentida imagem: «o mais elevado poeta que tem pulsado a lira portuguesa» e a consciência que era necessário e estaria eminente o parto filosófico-espiritual das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX.
Já no seu artigo Eça de Queiroz em 5-IX-1888, no mesmo jornal Reporter, com grande discernimento e belas imagens, caracterizava assim Antero de Quental a propósito
de ser no começo da carreira que a sensibilidade mais se "manifesta
intensa e plena": «As mais antigas composições das Odes Modernas
mostram aos que sabem ver, sob as rebeliões do metro e da língua, a
profundidade dos instintos metafísicos e a elevação do ideal heróico e
sublime, donde brotou como duma nuvem e dum antro a poesia crepuscular e
divina dos Sonetos».
Será contudo na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queiroz, no vol. I, do final de 1889, na 1ª página, que sairá o sumário e o seu extenso ensaio A Literatura Portuguesa Contemporânea, onde tece valiosas considerações gerais sobre a obra literária tanto nos seus elementos constitutivos e as condicionantes circunstanciais como "simples fonte de emoções" "notando as modalidades que a actividade de quem escreve imprime na alma de quem lê". E seguindo-se as lúcidas caracterizações dos principais escritores, de Garret e Herculano a Castilho, Tomás Ribeiro e Camilo, chegando por fim a Antero, Junqueiro, Gomes Leal, Teófilo, Eça, Oliveira Martins e João de Deus.
Sendo neste ensaio o VIII cap. dedicado a Antero, transcreveremos partes, tanto por serem valiosas, ora elogiosas ora críticas, como por não se encontrarem ainda visíveis na web:
«Entre os nomes dos escritores que cooperaram para a introdução do espírito novo na literatura portuguesa contemporânea avulta o nome de Antero de Quental. Organização completa mas em que predominam os dotes poéticos, o autor dos Sonetos ficará sobretudo como um evocador de visões e um expressor de sentimentos. Nesse vasto mundo de visões e sentimentos que se oferece a um poeta, ele escolheu as visões mais sublimes e os sentimentos mais nobres. A superioridade da sua poesia deriva da grandeza da sua alma. O próprio dessa alma é não ser impressionada senão pelas grandes coisas e não se deixar mover senão pelos grandes interesses. O Universo na sua totalidade e na direcção final do seu movimento, o Homem e o seu destino, a função espiritual dos pensadores e poetas contraposta à esterilidade rotineira do sacerdócio tradicional, a magna luta da Igreja Católica contra o espírito moderno, o estertor dum Passado que agoniza e o vagido vitorioso dum Porvir que rompe da entranha fendida do século, eis as inspirações das Odes Modernas. (...)
»
«É ainda a grandeza da alma e a sinceridade do acento que fazem o encanto dos seus Opúsculos. Destituídos de valor científico dada a falta de capacidade analítica [exagerado...] e de sólida erudição da parte de quem os escreveu, eles resgatam essa inferioridade pela unção moral, pela gravidade religiosa, pelo tom pontifical dos seus actos de fé e das suas imprecações litúrgicas. Os seus panfletos parecem encíclicas.
Finalmente todas as qualidades e lacunas do seu espírito, os seus instintos morais, os seus sentimentos religiosos, as suas aptidões filosóficas, a sua falta de vocação científica e de imaginação física se reflectem e incarnam no seu maravilhoso estilo incapaz de pintar e de explicar, mas apto como nenhum outro para comunicar as ideias gerais e os sentimentos morais na severa graça do seu porte e na larga majestade do seu ritmo.», e sobretudo na sua capacidade de transmitir energias e impulsos...
Anote-se a coragem em criticar Antero de Quental por uma certa falta de erudição plena, numa crítica fundamentada dada a pouca investigação mais científica realizada entre nós, num defeito comum à geração de 70, que foi sobretudo literária, ética e espiritual, e o reconhecimento da forte e natural capacidade ético-espiritual de Antero, com essa frase bem sugestiva: "Os seus panfletos parecem encíclicas"...
Acrescentemos que na Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós e publicada entre 1889 e 1892, mais tarde elogiada por Fernando Pessoa, a famosa e decisiva colaboração de Antero, as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX entrará no vol. II, 1890, em três números, e que Moniz Barreto, significativamente, assinará mais seis textos, um acerca do livro de Paul Bourget, O Discípulo, em dois números desse volume II, e três de crítica literária, no volume III, onde colaboram também Frederico d'Ayalla (Realidades da Revolução Francesa) e Manuel da Silva Gayo (Um caso simples, e um capítulo dos seus Os Novos, inédito, sobre Luís de Magalhães). No volume IV colabora ainda com dois artigos sob o título Revista da Política Europeia. |
Manuel da Silva Gaio, poeta e secretário geral da Universidade de Coimbra, desde 1900.
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Anote-se que o livro de Manuel da Silva Gayo (1860-1934, e amigo próximo de Moniz Barreto), Os Novos, será dado à luz pública apenas em Janeiro de 1894, numa 1ª parte, de 101 páginas consagradas a Moniz Barreto; e uma vez que o adquirimos agora (Junho de 2021), embora já algo aqui tenhamos acrescentado, esperamos em breve comentá-lo.
Assim se congregaram numa das nossas melhores publicações periódicas, a Revista de Portugal, vários espíritos idealistas (e nomeemos ainda, entre outros, Cristóvão Aires, Oliveira Martins, Jaime de Magalhães Lima, Joaquim de Araújo e Luís de Magalhães), e em especial um "goano" e um açoriano, na luta por uma modernidade mais justa e sábia, da qual em certos aspectos certamente se desiludiriam, sem cruzarem os braços e almas, face à actual situação tão dilacerada quão desafiante da Humanidade e do planeta, tão ineptamente e egoísticamente liderada em grande parte por financeiros e políticos destituídos de alma fraterna e justa.
Possam as melhores compreensões, intuições e realizações dessa plêiade de grande seres do fim do século XIX serem aprofundadas e continuadas por nós, para o bem da Verdade, da Justiça e da Harmonia na Humanidade e na Terra.