O Amor de, ou em, Inês e Pedro, no século XIV, foi tão intenso e profundo, mas também tão trágico, que se tornou lendário, imortalizou-se, evoluiu para um mito sempre presente e fundador de maior consciência do valor do amor espontâneo, íntimo e livre, e dos obstáculos e perigos que frequentemente o ameaçam.
Um mito verídico e dinâmico, não baseado apenas em especulações e imaginações mas fundado na realidade, testemunhado na vida e ampliado ao longo dos séculos por todos aqueles, nacionais e estrangeiros, e foram muitos, que se deixaram comover e inspirar em sintonia, entrega e vivência de amor e paixão, acima das convencionalidades e pseudo-razões que se opõem à união livre dos seres que se atraem e ressoam, se dedicam e amam.
Esta história amorosa, tornada legendária e perene pela literatura popular e erudita e pela arte, continua a fecundar-nos e não podemos deixar de congratular-nos pelo seu arquetipismo operativo, já que, apesar dos oito séculos decorridos, estes dois seres estão ainda tão vivos no imaginário e na alma dos portugueses que a qualquer momento podem surgir em recriações da sua vida, amor e paixão.
A Maria Fátima da Silva, muito dada à investigação e ao culto da memória histórica, mítica e espiritual dos locais, tendo recentemente realizado exposições consagradas à Atlântida e ao Portugal megalítico, teve a varinha de condão de detectar na floresta imaginal portuguesa a necessidade de mais uma vez vir ao de cima este veio do amor que, vencendo as razões ou ditames sociais, assume a sua chama de conflagração criadora, libertadora e unificadora, tão valiosa face à massificação consumista e superficializante que acinzenta ou oprime as pessoas nas sociedades modernas, nas quais pouco espaço ou valor é dado ao amor e à poesia, à liberdade e à unidade.
A vida, amor e a morte destes dois apaixonados, para além do seu registo em crónicas e em poemas, adquiriu cedo nos túmulos uma materialidade artística tão radiosa e impressionante, nomeadamente ao serem erguidos no seio do ambiente gótico tão austero como o da Igreja de Alcobaça, que ficou facilitado eles serem agradavelmente admirados, contemplados e assimilados pela sensibilidade anímica de qualquer pessoa, em qualquer época.
A Maria Fátima da Silva aproximou-se deste mito amoroso fundamental de Portugal no triplo trabalho de artista, pois não só pôs as mãos, os pincéis e a paleta das cores em acção mas foi tanto lendo e meditando muitas das valiosas crónicas e dramas, ensaios e poemas dedicadas ao amor e vida de Inês e de Pedro, como também visitando locais associados à fuga e peregrinação inesiana, tudo na busca de se impregnar mais dos eflúvios tanto remotos como próximos dos dois, que ainda hoje algo transmitem a quem souber sintonizar e sentir, especialmente se em estado de amor.
É na monumental e poderosa Real Abadia de S. Maria de Alcobaça, no transepto da sua Igreja, que encontramos o testemunho mais imortalizante: os túmulos magistralmente esculpidos em pedra calcária e que, mais do que servirem para darem guarida aos ossos e serem uma memória, são antes maravilhosas chamas modeladas celebrando e invocando um amor que, embora fisicamente truncado na Terra, animicamente viverá «até ao fim do mundo», tal como o justiceiro rei D. Pedro I pediu ao escultor para gravar na cabeceira do seu túmulo jacente, certamente uma encomenda transmitida e esculpida com muita carga psíquica, pathos, e após o da sua amada e mulher ter sido dado à luz...
Estes dois túmulos góticos, nos quais um mestre provavelmente de Coimbra, e quase que num estilo de miniaturas iluminadas de Livro de Horas, ou hoje de banda desenhada, esculpiu magistralmente (embora mutilados em algumas partes pelos invasores franceses) nas edículas cenas da vida e morte de Inês e de Pedro, e passos da vida de Jesus e da tradição cristã e, nas tampas, as esculturas deles em tamanho natural e acompanhadas de Anjos, serão a fonte mais inspiradora da pintura forte e recriadora histórica e cromaticamente, psicológica e espiritualmente de Maria de Fátima, que certamente, ao longo dos três anos de trabalho criativo de trazer o potencial imaginal à cristalização nas alvas telas, e nos seus sonhos e devaneios, pensamentos e meditações, comungou com o mundo histórico e trágico, amoroso e divino de Pedro e Inês e, muito provavelmente, com as suas almas espirituais, agora livres de todos ou muitos dos constrangimentos físicos e psíquicos terrenos.
Poderemos talvez dizer que a bela e doce Inês é erguida, tanto pela cultura portuguesa como sobretudo pela pintura de Fátima, a um ser crístico, um ser ungido de Amor, um ser sacrificado e martirizado, mas para que o Amor possa desabrochar ainda mais profunda, imparável, perenemente.
É um Cristo (Ungido,) feminino português, ora amparado pelos Anjos, ora sob o sagrado Feminino e Nossa Senhora, ora abraçado pelo marido e cuidando das suas crianças, que contemplamos em algumas telas.
Nas edículas do túmulo de Inês, preenchidas com cenas das descrições do Novo Testamento, tendo a facial a crucificação de Jesus, podemos admitir essa implícita comparação: a de que a morte de Inês é como a morte de Jesus: - um ser de Amor que é recusado pelo seu povo, o sacerdócio judaico e o estado romano, tal como Inês é rejeitada pela convencionalidade religiosa e pelo pai do seu amado, o rei D. Afonso IV e vários do seu conselho de Estado, a que se seguirão os, que ao longos dos séculos não serão Fiéis de Amor, nela e em Pedro, ou em si mesmos para com os outros.
É no túmulo de D. Pedro que as delícias do amor na vida conjugal e o trágico assassinato de Inês estão esculpidos, assumindo D. Pedro o papel tanto de amoroso, como de queixoso e justiceiro, estando porém ambos nos corpos jacentes representados com as feições serenas, belas e apoiados pelos Anjos.
Muito disto ecoa nas pinturas da Fátima, por vezes trazendo Inês e Pedro para os nossos dias, tanto mais que a capacidade de ultrapassar os limites da linearidade do tempo é bem visível na sua obra, como que tendo acesso ao campo unificado de energia consciência e informação, ou então pelo menos tentando intuir as relações essenciais que a História frequentemente deixa em aberto nesse campo também denominado de imaginal...
O monumento magistral gótico tumular é interpelante, fracturante, no seu apelo e afirmação do Amor sacralizado e eterno acima dos condicionalismos e conveniências, e a sua recriação artística e pedagógica pode ser bem poderosa para despertar a chama do amor em nós, a vontade de sermos mais verdadeiros, sinceros, amorosos e intensos nos breves momentos em que a Roda da Fortuna acompanha a da Vida... Assim a pintura de Maria Fátima da Silva está carregada dessa intensidade de amor e paixão, nestes dois sentidos em que aconteceu e, simultaneamente, da ressonância ou acompanhamento dos mundos espirituais e angélicos nesses passos de amor e dor, e de desencarnação, reunião e ressurreição em corpo psico-espiritual. Este aspecto do Amor que se passa tanto nesta vida como no além, e que pode ligar mesmo para o misterioso mito das almas gémeas, é fundamental e está bem desenhado e colorido por Maria Fátima da Silva em cenas de beatitude amorosa que tanto podem ser terrenas como nos mundos subtis, e que estão já para além do sofrimento e da morte, da efemeridade e transitoriedade. Talvez possamos dizer que historicamente a sagração lendária e perenizante deste mito começou a ser talhada nesses fabulosos dias 23, 24 e 25 de Abril de 1361, quando o corpo de Inês foi levado em procissão ou cortejo, à luz de archotes, de Santa Clara a Velha em Coimbra para a igreja de Alcobaça, a abadia real, onde coroada e sobre um trono recebeu na sua mão os beijos dos nobres, religiosos e da corte, ao som de ladainhas, cantos e música, à luz dos archotes e velas, com os aromas dos incensórios, sem dúvida quase uma extraordinária antevisão da ressurreição, encenada na terra, em carne, tal era a intensidade do amor que os unia e percorrera os corpos, o pescoço ou colo, a pele, os lábios e membros deles. Este vencer da mortalidade, esta intensidade transfigurante dos que se amam, quer também acontecer em nós e apela a tornar-mos mais seres de amor, de chama corajosa divina de criatividade e de dádiva, tal como sentimos ao comungarmos deste Amor no monumento, na cultura e na arte.A pintura de Maria Fátima Silva, com laivos de amor cortês ou de religiosidade gótica e angélica, está carregada ainda de tal intensidade amorosa, pelo que é também carnal, musculada, de mãos, pés, seios, cabelos, sorrisos e, ora em fusão amorosa ora em pietá de compaixão, ela surge à nossa contemplação interpelante e fecundante, muito bem apoiada nas geometrias e rosáceas góticas da época que ela soube sentir e recolher, recriando os ambientes do mundo histórico e da natureza que os envolveram.
O realizar-se esta exposição e recriação do mítico amor de Inês e de Pedro, primeiro em Alcobaça, junto ao local onde se depositaram os seus corpos e onde algo deles é mantido, ou mesmo intensificado ocasionalmente, ao longo dos séculos, e agora no Centro Cultural no Aziz Ab'Saber do ISPA, Instituto Universitário, com a curadoria habitual de Hélder Alfaiate Galeria, permite-nos ver nesta exposição mais uma ressurreição, de boa nova ou evangelho, anúncio do Amor eterno ou perene que vence todos os obstáculos e limitações e nos chama a sermos verdadeiros e sinceros na nossa individuação psíquica e na entrega plena ao amado ou à amada, à Natureza e aos outros, de corpo, alma e espírito.
E assim procurarmos verdadeiramente atingir a unidade e nela recebermos a bênção divina, a desvendação da nossa ligação espiritual, a qual Inês e Pedro conseguiram certamente sentir e alcançar e que hoje, através da bela e intensa arte impregnada do amor, janela entre os mundos, nos desafiam.
Na longa feitura e preparação desta exposição, nutrida por leituras e peregrinações, meditações e diálogos, dos quais um ou outro eu ainda participei, é evidente que a Fátima se apoiou no amor que sente e vive com o marido, a família, as amizades, o trabalho, as terras, a natureza e a cultura de Portugal e, claro, com Inês e Pedro...
Poderemos então dizer que esta exposição Amare é uma recriação perenizadora do Amor, na melhor tradição dos Fiéis do Amor de Portugal, na qual Inês e Pedro, D. Dinis e Isabel, o Infante
D. Pedro das Sete partidas, Damião de Goes, Luís de Camões, Jorge Ferreira do Vasconcelos, Fernão Mendes Pinto, Bocage, Antero de Quental, Wenceslau de Moraes, Florbela Espanca, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, entre outros, se inseriram, testemunhando tal qualidade na busca e vivência do amor e da justiça, da unidade e da Divindade.
Possa esta exposição Amare, ser uma bênção para as forças da não-violência e do Amor em Portugal e possa a comunhão dos Fiéis do Amor, o corpo místico da Humanidade, do Sagrado Feminino e dos amantes concretizar-se ou tornar-se mais perceptível no nosso coração e consciência íntima, acima das nossas dificuldades e conflitos, e aí, como chama de amor divino, ser mais sentida e contemplada, cultivada e partilhada, para que os seres se respeitem mais nas suas individualidades, trajectórias e amores.
Possa esta exposição ser verdadeiramente uma comunhão no Graal de Portugal, tal como Maria de Fátima da Silva nas suas palavras introdutórias apela, e que no coração de cada um de nós, e no coração de Portugal e do seu Arcanjo, a chama do Amor seja intensificada e desvendada e que todos os que a visitarem em estudo histórico, artístico, pedagógico, contemplativo do Amor tão manifestado por Pedro e Inês, sejam por Ele inspirados e fortalecidos.
Pedro Teixeira da Mota. 13-II-2019.