terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Iconologia, 2º texto. Imagens, Catolicismo e Protestantismo, Livros de Horas, Emblemata, Gravuras, Registos e Santinhos: evolução, instrução, devoção e contemplação.

Certamente a 1ª imagem de S. Vicente em livros impressos: Liber Chronicarum, ou Crónica de Nuremberg, publicada por Anton Koberger, 1493. Continha cerca de 1800 imagens, muitíssimas de santos e santas...
Embora o culto religioso através de imagens fosse uma das vítimas da revolução ou reforma Protestante do séc. XVI, e muitas obras de arte que adornavam ou enriqueciam as catedrais e igrejas fossem queimadas na Alemanha de então (como nos conta, por exemplo, Erasmo na sua correspondência, testemunhando-a mesmo em Basileia), para não falarmos da destruição de preciosos manuscritos iluminados na Inglaterra dos astutos Henrique VIII e Cromwell (com a dissolução dos Mosteiros entre 1536-1541), todavia as imagens de livros ou gravuras não sofreram tanto essa fúria iconoclasta (expressão que remete para a Querela de Imagens, no mundo bizantino, entre 730 e 843) e continuaram a proporcionar aos crentes e fiéis apoios na visualização e na devoção (bastante menos nas zonas que aderiram à Reforma), pois as imagens são poderosas tanto em mover e comover as pessoas como em aquietá-las e concentrá-las, predispondo-as à contemplação, à paz e até a uma eventual comunhão com os santos (algo também atacado e negado pelos protestantes), pela osmose e unidade que proporcionam ao leitor com o que se representa, seja pessoa, símbolo ou estado consciencial.A
Apear e despedaçar de imagens de santos numa catedral alemã...
Face à "opressão" religiosa Protestante, que certamente teve aspectos libertadores em relação à exploração das indulgências do Papado, o Concílio de Trento, a partir de 1545, liderou de Roma as medidas doutrinárias e eclesiais de combate à disseminação do Protestantismo anti-piedoso, gerando um culto de honra ou veneração aos Santos e à Eucaristia, e de adoração a Deus Uno e Trino, através de imagens comedidas, piedosas, sofredoras e austeras, dentro do movimento ideológico da Contra-Reforma, as quais com o tempo e com o estilo Barroco se foram emocionalizando, dulcificando e democratizando, devendo-se realçar os livros de imagens com cenas ou passos da Bíblia e os livros de Emblemas religiosos, que tanta fortuna tiveram desde o séc. XVI, sobretudo nos Países Baixos, Holanda e Bélgica, onde a luta entre protestantes e católicos foi mais intensa, sendo no rescaldo do Concílio de Trento a obra de Ioannes Molanus, De Historia SS Imaginum et Picturarum (1ª edição 1570, 2ª, bem alargada, 1594, e em 1996 o Traité des saintes Images), a primeira e mais importante e convincente defesa do valor das imagens, enquadrando o seu uso correcto e criticando desvios e abusos.
Emblema acerca da força do Amor. Alciato, Emblemata, Lyon, 1561.
Se a tradição dos livros de Emblemas provinha sobretudo da Renascença humanista italiana apoiada na sabedoria greco-romana, e os pioneiros e melhores foram os de Alciato (1531), Guillaume de la Pérrière (1539), Claude Paradin (1550), Achille Bochi (1555), e se destinavam à educação tanto dos príncipes e governantes como das pessoas em geral, sendo no fundo obras de moral, de ética, de sabedoria prática e amorosa e até de crítica social, baseadas em adágios, fábulas, ditos e vidas de grandes seres, ora míticos ora filósofos e religiosos, já com os livros de emblemas completamente religiosos procurou-se sobretudo intensificar a conversão, edificação, devoção, coração e ligação religiosa pessoal, em algum tipo deles juntando-se citações de filósofos da antiguidade e, por vezes, até com coragem quando a autoridade aduzida, por exemplo nos comentários das imagens era um pensador e escritor proibido pelo Índice Inquisitorial. O fundo imagético era amplo e podemos observar tanto fontes pagãs, como cristãs, e de alquimia e ciência natural, cm gravadores mais ou menos perfeitos nos seus desenhos inspiradores,
Uma das muitas edições dos Desejos Piedosos, que mesmo em Portugal foram editados
Serão sobretudo os jesuítas, desde 1594, com Hyeronimus Natalis, Ioannis Davi, Bartholomaeu Riccius, Thomas Saillius, Anthonius Sucquet, Ioannes Bourgesius e o mais divulgado entre nós Herman Hugo (1588-1629, o autor da mimosa e tão reeditada e glosada Pia Desideria, em 1624), com os beneditinos, franciscanos e dominicanos, os que mais publicarão obras devocionais de imagens ou emblemas religiosos, tanto  de cenas dos Evangelhos ou de vidas de santos, como já imaginativos emblemas originais de diálogo entre a alma e o mestre Jesus, ou entre a alma e o seu anjo da Guarda, ou ainda entre a alma e a Divindade. 
Podemos  chamar-lhes Emblemata amorosa sagrada, por ser muito o amor ao divino que elas exalam e até em contraposição ou complementarização com a Emblemata amorosa profana ou humana, desenvolvida sobretudo na Holanda a partir do sábio Daniel Heinsius (1580-1655), que escreve o 1º em 1601, intitulado Quaeris quid sit Amor? Perguntas o que seja o Amor?, e em 1607 publicado já com o título Emblemata amatoria, Emblemas de amor, a que se seguirão vários outros numa certa pedagogia iniciática a uma vida amorosa e marital feliz.
Página de rosto da obra de Heinsius, de 1601: O cupido é o desejo amoroso para a mulher
 Outros aspectos importantes da evolução das imagens  foram a passagem dos Livros de Horas, manuscritos em pergaminho e fabulosamente iluminados, nascidos por volta de 1337, feitos para pouquíssima gente e que continham as orações principais do ciclo litúrgico anual, para os já impressos tipograficamente nos sécs. XV e XVI sobre papel e apenas com as capitulares coloridas (e às vezes desenhadas) à mão.
S. António, com o Divino no peito ou coração, pintura de um artista sábio. Iluminura em pergaminho do Livro de Horas quinhentista de D. Manuel I. (MNAA)
A autonomização das imagens religiosas, gravadas toscamente sob pressão em madeira nos finais do séc. XIV e impressas a partir de meados do séc. XV, vai crescer exponencialmente  a partir de 1568 com a impressão do Breviário Romano, com o ciclo litúrgico para os religiosos, e os missais pequenos e mimosos, nos séc. XVII e XVIII e sobretudo no XIX, muito destes já dirigidos para as crianças e acolhidos com grande enlevo devocional. É curioso constatarmos socialmente no séc. XIX um forte movimento anti-clerical em simultâneo com o acesso generalizado das crianças à posse e manuseio de fontes de devoção...
Folha de Livro de Horas, francês, do séc. XVI, capitulares e letrinhas coloridas manualmente.
Livrinho da missa de Domingo, para jovens, de finais do séc. XIX.
A devoção popular através das imagens fora de facto sustentada ou intensificada desde o séc. XIV, mesmo antes da descoberta da tipografia, pelas xilogravuras (impressão sobre madeira e perdurando até ao séc. XVIII) e se no começo do XVI começavam as gravuras finas gravadas sobre cobre, tais as das obras de Dürer, Rembrandt, ou as religiosas em livros dos três irmãos Wierix, será nos séculos XVII e XVIII que tal atingirá uma produção autónoma solta prodigiosa, sobretudo na Flandres mas também em Paris (nomeadamente com o flamengo Thomas de Leu), donde se exportavam para todo o mundo, ora sobre papel ora por vezes em  pergaminho, permitindo uma devoção pessoal cristã bem alargada. 
Uma das cenas dos Evangelhos gravada pelo Hyeronimus Wierix: o Anjo e o Graal...
Por exemplo, em 1657, em Paris, Pierre Mariette I, ao morrer, deixava 100.000 imagens e em 1666 e 1676 os fundos inventariados de duas famílias de gravadores (que findavam) em Anvers chegavam às 80.000 imagens cada uma.
S. Lúcia, em gravura de Cornelis van Merlen(1654-1723)
 Em Portugal devemos mencionar as gravuras abertas em madeira que adornaram os primeiros livros portugueses, as gravuras sobre metal dos sécs. XVII e XVIII e, finalmente, realçar os registos, gravurinhas religiosas com uma imagem e uma legenda, estampadas tanto em papel como em pano e que se vendiam em igrejas, capelas, confrarias e lojas e que eram consagrados a um santo ou a uma nossa Senhora e que os devotos levavam ora para suas casas ora nos bolsos para protecção e devoção, algumas garantindo 100 dias de indulgência, se cumprissem certas exigência. Muitas delas eram emolduradas em cartão e vidro, com formas especiais, e com belas tarjas coloridas ou douradas.  Outras constituíam os escapulários, pendurados ao peito, entre nós muito frequentes os de Nossa Senhora do Carmo, como o que vemos:
Foi a partir do reinado de D. João V que se desenvolveram mais, a partir do apoio dado pelo rei magnânimo à escultura, pintura e gravura, nomeadamente ao ensino na Real Academia de Belas Artes, donde brotaram bons artistas e seus seguidores ou popularizadores, nomeadamente em gravuras de livros (capitulares, vinhetas e de página inteira) e em estampas religiosas.                
Sagrados corações, pela princesa Maria Benedita, filha de D. João V.
São estes os antecessores dos santinhos, as pequenas pagelas religiosas que começam a surgir nos princípios do séc. XIX e que vão multiplicar-se com os avanços tecnológicos da impressão, sobretudo a partir de 1830, juntando a dado momento as cores e enriquecendo ainda as imagens com finos rendilhados, que tinham começado por ser feitos à mão, a canivete e pintadas manualmente.
Ad astra per aspera. Para chegarmos aos cimos e céus temos de desenvolver forças...
  Com efeito o século XIX é certamente o da grande explosão de litografias religiosas, revistas e jornais, para isso contribuindo a revolução industrial e o crescente alargamento da população que lia e discutia, ou procurava a sua salvação. Longe ia já a época dos clérigos e de alguns outros intelectuais e quase em cada rua da grandes capitais europeias havia uma ou mais tipografias, editoras e livrarias. A censura religiosa dava os seus últimos estertores e tudo confluía para a democracia, a república, o livre pensamento, a evolução das consciências. Se na Europa a Revolução Francesa em 1789 atacara bastante a religião, cedo houvera uma reacção ao laicismo e as imagens  piedosas e os santinhos no séc. XIX vão tomar um grande papel na devoção quotidiana e festiva das pessoas, já que assinalavam datas importantes das suas vidas religiosas, desde a 1ª comunhão a retiros, e associando-se a santos, locais de peregrinação, confrarias e irmandades, etc.
«Eduardo Marques quer e ardentemente deseja ser participante de todas as orações, que se fazem nesta Associação...» Archiconfraria do Santíssimo e Imaculado Coração, em Louriçal do Campo.
       É muito rica, quase que diríamos fabulosa a energia, a história, as ideias, as doutrinas, os interesses, os afectos que estão presentes em tais imagens e santinhos, reflectindo um mundo de mentalidades em constante mutação mas que mesmo hoje no séc. XXI nos tocam e transmitem encantos e forças, certamente subjectivas e difíceis de caracterizar e muito menos quantificar.
Mas tanto o aspecto estético, como o cultural, o artístico, o tipográfico, o doutrinário, o místico, que se desprendem deles ou os impregnam são históricos, sobretudo quando estão assinados ou com marginália significativa de conselhos e amor, esperança e sabedoria.

Devemos olhar para estas imagens de piedade ou religiosas como devoções passadas, relíquias,  documentos mortos, ou devemos antes sorrir e encantar-nos ora com a beleza e sabedoria ora com a ingenuidade, inocência e piedade e, com atenção e discernimento, aprendermos com elas, trabalhando-as com receptividade e  criatividade, adaptando-as até aos nossos dias do culto da imagem, ainda que mais virtual ou nos suportes digitais, trazendo as qualidades e potencialidades latentes, duma tradição artística que toca ou aflora o belo, o espiritual, o perene, e que pela consideração ou contemplação mais demorada nos harmoniza e predispõe para a meditação, a oração?
Na cruz da matéria espiralada, as flores da alma desabrochadas...
Creio que esta última resposta ou opção é a via sábia e criativa para as contemplarmos,  compreendermos ou até recriarmos, sobretudo tendo em conta estarmos  cada vez mais numa sociedade de imagens virtuais e frequentemente manipuladoras. E assim abordaremos ou cingiremos algumas dessas imagens piedosas, gravuras, registos e santinhos num próximo texto de Iconologia, o terceiro, acerca do coração, sede do Amor...

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O Amor em Inês e Pedro: "Amare", exposição da Maria de Fátima Silva.

                          Realizando-se a inauguração, e significativamente no dia dos Namorados, da nova exposição da Maria de Fátima Silva, AMARE, na galeria do Centro Cultural Aziz Ab'Saber, do ISPA Instituto Universitário, acerca do amor em Inês e Pedro, com algumas novas pinturas, reescrevi o texto inicial de Alcobaça, e partilho-o.
A última pintura do Amare, em finalização nas vésperas da inauguração.
                               
O Amor de, ou em, Inês e Pedro, no século XIV, foi tão intenso e profundo, mas também tão trágico, que se tornou lendário, imortalizou-se, evoluiu para um mito sempre presente e fundador de maior consciência do valor do amor espontâneo, íntimo e livre, e dos obstáculos e perigos que frequentemente o ameaçam.
Um mito verídico e dinâmico, não baseado apenas em especulações e imaginações mas fundado na realidade, testemunhado na vida e ampliado ao longo dos séculos por todos aqueles, nacionais e estrangeiros, e foram muitos, que se deixaram comover e inspirar em sintonia, entrega e vivência de amor e paixão, acima das convencionalidades e pseudo-razões que se opõem à união livre dos seres que se atraem e ressoam, se dedicam e amam.
Esta história amorosa, tornada legendária e perene pela literatura popular e erudita e pela arte, continua a fecundar-nos e não podemos deixar de congratular-nos pelo seu arquetipismo operativo, já que, apesar dos oito séculos decorridos, estes dois seres estão ainda tão vivos no imaginário e na alma dos portugueses que a qualquer momento podem surgir em recriações da sua vida, amor e paixão.
A Maria Fátima da Silva, muito dada à investigação e ao culto da memória histórica, mítica e espiritual dos locais, tendo recentemente realizado exposições consagradas à Atlântida e ao Portugal megalítico, teve a varinha de condão de detectar na floresta imaginal portuguesa a necessidade de mais uma vez vir ao de cima este veio do amor que, vencendo as razões ou ditames sociais, assume a sua chama de conflagração criadora, libertadora e unificadora, tão valiosa face à massificação consumista e superficializante que acinzenta ou oprime as pessoas nas sociedades modernas, nas quais pouco espaço ou valor é dado ao amor e à poesia, à liberdade e à unidade.
A vida, amor e a morte destes dois apaixonados, para além do seu registo em crónicas e em poemas, adquiriu cedo nos túmulos uma materialidade artística tão radiosa e impressionante, nomeadamente ao serem erguidos no seio do ambiente gótico tão austero como o da Igreja de Alcobaça, que ficou facilitado eles serem agradavelmente admirados, contemplados e assimilados pela sensibilidade anímica de qualquer pessoa, em qualquer época.
A Maria Fátima da Silva aproximou-se deste mito amoroso fundamental de Portugal no triplo trabalho de artista, pois não só pôs as mãos, os pincéis e a paleta das cores em acção mas foi tanto lendo e meditando muitas das valiosas crónicas e dramas, ensaios e poemas dedicadas ao amor e vida de Inês e de Pedro, como também visitando locais associados à fuga e peregrinação inesiana, tudo na busca de se impregnar mais dos eflúvios tanto remotos como próximos dos dois, que ainda hoje algo transmitem a quem souber sintonizar e sentir, especialmente se em estado de amor. 
 É na monumental e poderosa Real Abadia de S. Maria de Alcobaça, no transepto da sua Igreja, que encontramos o testemunho mais imortalizante: os túmulos magistralmente esculpidos em pedra calcária e que, mais do que servirem para darem guarida aos ossos e serem uma memória, são antes maravilhosas chamas modeladas celebrando e invocando um amor que, embora fisicamente truncado na Terra, animicamente viverá «até ao fim do mundo», tal como o justiceiro rei D. Pedro I pediu ao escultor para gravar na cabeceira do seu túmulo jacente, certamente uma encomenda transmitida e esculpida com muita carga psíquica, ​ pathos​, e após o da sua amada e mulher ter sido dado à luz...
Estes dois túmulos góticos, nos quais um mestre provavelmente de Coimbra, e quase que num estilo de miniaturas iluminadas de Livro de Horas, ou hoje de banda desenhada, esculpiu magistralmente (embora mutilados em algumas partes pelos invasores franceses) nas edículas cenas da vida e morte de Inês e de Pedro, e passos da vida de Jesus e da tradição cristã e, nas tampas, as esculturas deles em tamanho natural e acompanhadas de Anjos, serão a fonte mais inspiradora da pintura forte e recriadora histórica e cromaticamente, psicológica e espiritualmente de Maria de Fátima, que certamente, ao longo dos três anos de trabalho criativo de trazer o potencial imaginal à cristalização nas alvas telas, e nos seus sonhos e devaneios, pensamentos e meditações, comungou com o mundo histórico e trágico, amoroso e divino de Pedro e Inês e, muito provavelmente, com as suas almas espirituais, agora livres de todos ou muitos dos constrangimentos físicos e psíquicos terrenos.
Poderemos talvez dizer que a bela e doce Inês é erguida, tanto pela cultura portuguesa como sobretudo pela pintura de Fátima, a um ser crístico, um ser ungido de Amor, um ser sacrificado e martirizado, mas para que o Amor possa desabrochar ainda mais profunda, imparável, perenemente. 
É um Cristo (Ungido,) feminino português, ora amparado pelos Anjos, ora sob o sagrado Feminino e Nossa Senhora, ora abraçado pelo marido e cuidando das suas crianças, que contemplamos em algumas telas.
Nas edículas do túmulo de Inês, preenchidas com cenas das descrições do Novo Testamento, tendo a facial a crucificação de Jesus, podemos admitir essa implícita comparação: a de que a morte de Inês é como a morte de Jesus: - um ser de Amor que é recusado pelo seu povo, o sacerdócio judaico e o estado romano, tal como Inês é rejeitada pela convencionalidade religiosa e pelo pai do seu amado, o rei D. Afonso IV e vários do seu conselho de Estado, a que se seguirão os, que ao longos dos séculos não serão Fiéis de Amor, nela e em Pedro, ou em si mesmos para com os outros.
É no túmulo de D. Pedro que as delícias do amor na vida conjugal e o trágico assassinato de Inês estão esculpidos, assumindo D. Pedro o papel tanto de amoroso, como de queixoso e justiceiro, estando porém ambos nos corpos jacentes representados com as feições serenas, belas e apoiados pelos Anjos. 
 Muito disto ecoa nas pinturas da Fátima, por vezes trazendo Inês e Pedro para os nossos dias, tanto mais que a capacidade de ultrapassar os limites da linearidade do tempo é bem visível na sua obra, como que tendo acesso ao campo unificado de energia consciência e informação, ou então pelo menos tentando intuir as relações essenciais que a História frequentemente deixa em aberto nesse campo também denominado de imaginal... 
                                  
O monumento magistral gótico tumular é interpelante, fracturante, no seu apelo e afirmação do Amor sacralizado e eterno acima dos condicionalismos e conveniências, e a sua recriação artística e pedagógica pode ser bem poderosa para despertar a chama do amor em nós, a vontade de sermos mais verdadeiros, sinceros, amorosos e intensos nos breves momentos em que a Roda da Fortuna acompanha a da Vida...
Assim a pintura de Maria Fátima da Silva está carregada dessa intensidade de amor e paixão, nestes dois sentidos em que aconteceu e, simultaneamente, da ressonância ou acompanhamento dos mundos espirituais e angélicos nesses passos de amor e dor, e de desencarnação, reunião e ressurreição em corpo psico-espiritual.
Este aspecto do Amor que se passa tanto nesta vida como no além, e que pode ligar mesmo para o misterioso mito das almas gémeas, é fundamental e está bem desenhado e colorido por Maria Fátima da Silva em cenas de beatitude amorosa que tanto podem ser terrenas como nos mundos subtis, e que estão já para além do sofrimento e da morte, da efemeridade e transitoriedade.
Talvez possamos dizer que historicamente a sagração lendária e perenizante deste mito começou a ser talhada nesses fabulosos dias 23, 24 e 25 de Abril de 1361, quando o corpo de Inês foi levado em procissão ou cortejo, à luz de archotes, de Santa Clara a Velha em Coimbra para a igreja de Alcobaça, a abadia real, onde coroada e sobre um trono recebeu na sua mão os beijos dos nobres, religiosos e da corte, ao som de ladainhas, cantos e música, à luz dos archotes e velas, com os aromas dos incensórios, sem dúvida quase uma extraordinária antevisão da ressurreição, encenada na terra, em carne, tal era a intensidade do amor que os unia e percorrera os corpos, o pescoço ou colo, a pele, os lábios e membros deles.
Este vencer da mortalidade, esta intensidade transfigurante dos que se amam, quer também acontecer em nós e apela a tornar-mos mais seres de amor, de chama corajosa divina de criatividade e de dádiva, tal como sentimos ao comungarmos deste Amor no monumento, na cultura e na arte.
A pintura de Maria Fátima Silva, com laivos de amor cortês ou de religiosidade gótica e angélica, está carregada ainda de tal intensidade amorosa, pelo que é também carnal, musculada, de mãos, pés, seios, cabelos, sorrisos e, ora em fusão amorosa ora em pietá de compaixão, ela surge à nossa contemplação interpelante e fecundante, muito bem apoiada nas geometrias e rosáceas góticas da época que ela soube sentir e recolher, recriando os ambientes do mundo histórico e da natureza que os envolveram.
  O realizar-se esta exposição e recriação do mítico amor de Inês e de Pedro, primeiro em Alcobaça, junto ao local onde se depositaram os seus corpos e onde algo deles é mantido, ou mesmo intensificado ocasionalmente, ao longo dos séculos, e agora no Centro Cultural no Aziz Ab'Saber do ISPA, Instituto Universitário, com a curadoria habitual de Hélder Alfaiate Galeria, permite-nos ver nesta exposição mais uma ressurreição, de boa nova ou evangelho, anúncio do Amor eterno ou perene que vence todos os obstáculos e limitações e nos chama a sermos verdadeiros e sinceros na nossa individuação psíquica e na entrega plena ao amado ou à amada, à Natureza e aos outros, de corpo, alma e espírito.
E assim procurarmos verdadeiramente atingir a unidade e nela recebermos a bênção divina, a desvendação da nossa ligação espiritual, a qual Inês e Pedro conseguiram certamente sentir e alcançar e que hoje, através da bela e intensa arte impregnada do amor, janela entre os mundos, nos desafiam.
Na longa feitura e preparação desta exposição, nutrida por leituras e peregrinações, meditações e diálogos, dos quais um ou outro eu ainda participei, é evidente que a Fátima se apoiou no amor que sente e vive com o marido, a família, as amizades, o trabalho, as terras, a natureza e a cultura de Portugal e, claro, com Inês e Pedro...
Poderemos então dizer que esta exposição Amare é uma recriação perenizadora do Amor, na melhor tradição dos Fiéis do Amor de Portugal, na qual Inês e Pedro, D. Dinis e Isabel, o Infante
D. Pedro das Sete partidas, Damião de Goes, Luís de Camões, Jorge Ferreira do Vasconcelos, Fernão Mendes Pinto, Bocage, Antero de Quental, Wenceslau de Moraes, Florbela Espanca, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, entre outros, se inseriram, testemunhando tal qualidade na busca e vivência do amor e da justiça, da unidade e da Divindade.
Possa esta exposição Amare,​ ser uma bênção para as forças da não-violência e do Amor em Portugal e possa a comunhão dos Fiéis do Amor, o corpo místico da Humanidade, do Sagrado Feminino e dos amantes concretizar-se ou tornar-se mais perceptível no nosso coração e consciência íntima, acima das nossas dificuldades e conflitos, e aí, como chama de amor divino, ser mais sentida e contemplada, cultivada e partilhada, para que os seres se respeitem mais nas suas individualidades, trajectórias e amores.
Possa esta exposição ser verdadeiramente uma comunhão no Graal de Portugal, tal como Maria de Fátima da Silva nas suas palavras introdutórias apela, e que no coração de cada um de nós, e no coração de Portugal e do seu Arcanjo, a chama do Amor seja intensificada e desvendada e que todos os que a visitarem em estudo histórico, artístico, pedagógico, contemplativo do Amor tão manifestado por Pedro e Inês, sejam por Ele inspirados e fortalecidos.
Pedro Teixeira da Mota. 13-II-2019.
                           

                                

domingo, 10 de fevereiro de 2019

O soneto a "Comunhão" de Antero de Quental: a dos Espíritos, do Bem e do Amor. Do corpo místico da Humanidade.

O soneto Comunhão, de Antero de Quental, como o seu nome indica, remete-nos seja para uma vivência comum interior, o ter, sentir ou viver algo em comum com outro ser ou objecto (tal a hóstia católica e mediatamente Jesus), seja para um alargamento consciencial mais vasto, como está implícito no denominado corpo místico da humanidade ou de Cristo, ou seja, a comunhão com os seres afins: pessoas, antepassados, santas e santos, mestres, anjos e arcanjos e o Ser Divino...
Esta comunhão de sentimentos, ideias e energias entre pessoas, vivas na dimensão física da Terra ou nos mundos subtis, é a manifestação de um veio persistente, tanto Universal como da Tradição Espiritual Portuguesa, a qual implica ou se alarga no conhecimento de haver uma continuidade consciencial de vida após a morte do corpo físico, a qual podemos sentir, comungar  e cultivar enquanto vivemos na Terra, nomeadamente pela acção abnegada, o amor, o despertar consciencial e o intensificar espiritual, tal como quando oramos, no fundo por um modo de viver mais profundo e harmonioso, preparando-nos para entrarmos um dia no além, ou nas dimensões subtis, mais luminosos e conscientes...
                               
Antero de Quental escreveu o soneto Comunhão em Junho de 1884 e envia-o por essa altura para Joaquim Oliveira Martins sem qualquer apresentação. Antero atravessava a sua fase mais serena, a década dourada de Vila Conde (1881-1891), no dizer da sua especialista Ana Maria Almeida Martins, e a sua poesia perdera, como ele confessava, algo do seu ar lúgubre e consciência niilista e começava a lançar-se em voos reveladores da luz vital do panpsiquismo, ou seja, da sua sensibilidade à alma do mundo, à inteligência universal ou Logos, ao magnetismo unificante e à vida divina que tudo permeia e que em todos aspira a manifestar-se mais plenamente.
Estava também no findar da sua missão de partilhar na poesia a sua odisseia nos mundos psíquicos, filosóficos, éticos e indirectamente espirituais em que se embrenhara e, dois anos depois, em 1886, concluiu-a com a publicação da sua edição dos Sonetos Completos, onde este soneto Comunhão vem dedicado a João Lobo de Moura, amigo próximo e que contribuiu para o In-Memoriam de Antero. Oiçamos então Comunhão:
 «Reprimirei meu pranto!... Considera
Quantos, minh'alma, antes de nós vagaram,
Quantos as mãos incertas levantaram
Sob este mesmo céu de luz austera!...

- Luz morta! amarga a própria primavera! -
Mas seus pacientes corações lutaram,
Crentes só por instinto, e se apoiaram
Na obscura e heróica fé, que os retempera...

E sou eu mais do que eles? Igual fado
Me prende à lei de ignotas multidões. -
Seguirei meu caminho confiado,

Entre esses vultos mudos, mas amigos,
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na comunhão dos nossos pais antigos!»

Neste soneto Comunhão, que se relaciona mais intimamente com alguns outros (tal Com os Mortos e o Solemnia Verba), Antero afirma a sua conformidade com a Tradição cultural e espiritual portuguesa, com o sentir-pensar dos antepassados, numa comunhão afectiva com eles. Não é de modo algum um soneto niilista pois sente e partilha a  comunhão com os espíritos que já passaram na Terra e que, vivendo nos mundos espirituais, de modos subtis podem comunicar-se connosco.
Embora algo triste, por se basear apenas numa fé (seja de crença seja de vontade ou querer) heróica e não por ter já uma experiência interior do espírito e mesmo vislumbre da vida no além, o soneto contém aspectos valiosos de serem melhor discernidos.
                               
1º: Antero de Quental desdobra-se entre ele, eu, espírito, animus, vontade, e a sua alma, anima, sensibilidade, e fala-lhe, dando-lhe forças, para que ela não chore diante das incertezas do caminho sob um céu que não se mostra expansivamente luminoso, mas antes austero, pois a luz é  sentida como morta, não acesa, não plena de amor, e sob esta percepção até a época mais juvenil e alegre, a Primavera, se torna ou pode tornar amarga.
Face a tal incompletude de vida, conclui que apenas o instinto da vida e uma crença e fé do coração paciente e até heróico ajudarão as pessoas a avançar no Caminho.
Não deve haver então desânimos ou desalentos mas confiança no nosso querer face ao destino, num percurso e caminho que nos levará em comunhão com os antepassados e amigos ou seja, na comunhão com o que eles acreditaram e demandaram quanto ao Bem, à imortalidade e à Divindade.
Antero de Quental não é muito explícito ou claro quanto aos aspectos obscuros dessa fé comungada, embora os possamos intuir já que ele partilha algo da sua visão do ser humano, e do Eu e do  Caminho para ele, em algumas cartas, tal a escrita uns meses depois a João Machado de Faria e Maia, a propósito da morte da mulher deste seu grande amigo:
                                       
«Muita gente te dirá que te distraias. Eu, pelo contrário, dir-te-ei que te não distraias, mas trates de ser pelo pensamento superior à sorte e à dor. Mas estará o teu pensamento no verdadeiro caminho, e compreenderás tu plenamente que a realidade é mera aparência e só existe verdadeiramente como símbolo e veículo da vida moral? 
Se sim, fico descansado a teu respeito. A dor será para ti transparente e luminosa, não opaca e soturna como o é para os homens só naturais; e o dever, perdendo o que para esses tem de amargo e como que falsa e inexpressivo, aparecer-te-á como o mel mais fino e a essência da vida moral. Nele encontrarás mais do que consolações: serenidade e plenitude - quanta cabe em limites humanos. A nossa vida, meu João, verdadeiramente, é só a vida da nossa alma, do misterioso e sublime eu que somos no fundo: ora esse eu ou essa alma tem a sua esfera na região do impessoal: o seu mundo é o da abnegação, da pureza, da paciência, do contentamento: na renúncia do indivíduo natural e de tudo quanto o limita, algema e obscurece é que consiste a sua misteriosa individualidade.»
Este conselho de Antero tem grande aplicação no caminho espiritual, pois constantemente nos deixamos de identificar com o eu superficial e entramos em desejos egóicos, em sentir-nos frustrados por isto ou por aquilo, quando devemos trilhar essa passagem da alma desnorteada ou dispersa para a unificada em si mesma, como individualidade, no fundo, o espírito. E este alinhamento e sintonização concretiza-se constantemente pela auto-consciência e o discernimento se o que vamos fazer é apenas da instintividade natural ou se nos religa ao Bem, ao espírito.
 A causa da paciência e da abnegação  nomeadas neste  soneto Comunhão é porque os vultos da comunhão ou inspiração são mudos,  Antero não consegue ouvi-los ou no fundo intuí-los. Afirma porém que avança confiante na "comunhão dos nossos pais antigos", o que pode ser interpretado em dois sentidos: avança comungando no que os seus amigos e antepassados ou pais acreditaram. Ou que avança comungando com eles, sentindo mesmo tal corpo ou plano  místico da Humanidade, chamado na igreja Católica, também Comunhão do Santos e Santas, hoje denominado ainda como o Emaranhamento das Mentes, ou Campo Unificado de consciência energia informação, algo sobre o qual Antero de Quental especulou a partir das suas experiências, como podemos observar na sua carta a Carlos Cirilo de Machado,  e que considerava Antero como o mestre da época.
Sobre o que ele entendia pela fé e a comunhão dos antigos,  encontramos várias afirmações na sua obra que reflectem a sua crença ou mesmo conhecimento intuitivo de que a comunhão das almas amigas perdura para além da morte do corpo físico, tal como a comunhão do Bem e do Amor, este último caso bem assinalado no soneto Solemnia Verba, no qual o mesmo diálogo socrático ou maiêutico consigo próprio na sua pluridimensionalidade, aí iniciado com: "Disse ao meu coração", conclui ou tem a síntese dialéctica final com o: "Desta altura vejo o Amor!" que poderemos correlacionar na Divina Comédia com a passagem do Purgatório ao Paraíso.
Um dos últimos sonetos da sua vida, Com os Mortos, de 1885, esclarece-nos ainda mais e de uma forma bem afirmativa e bela:
À interrogação inicial «Os que amei, onde estão?» e ao espanto de ver «espuma lívida, em cachões, E entre ela, aqui e ali, vultos submersos», tenta e acontece a meditação, da qual confessa a dificuldade, que é dele e de todos nós, "se consigo Fechar os olhos" pela qual há o sentir interior  iluminante, clarificante, intuitivo:

«Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.»

Este terceto final é dos mais belos e sublimes de Antero, e com ele elevamo-nos bem alto no conceito anteriano de comunhão, que como vimos foi bastante dedilhado pelo filósofo e poeta,  lembrando que estes versos, como homenagem ou em comunhão com ele, podem ser mesmo decorados e repetidos como uma oração ou mantra, por nós, a sós, em grupo ou com o ser mais amado, ou mesmo em uníssono com a alma peregrina de Antero de Quental:

«Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Da multidimensionalidade da escrita criativa, curativa, harmonizadora, espiritual.

A escrita diz-se, quer, é, criativa. Ou seja, através dela há o arrancar, desvendar e gerar, do desconhecido e do virtual, do que, antes, nós não sabíamos, conhecíamos ou estávamos bem conscientes. É um acto de alargamento consciencial, harmonizador e estimulador do nosso ser, do seu tónus vibratório e com reflexos no ambiente, individual, local e universal. A escrita pode ser criativa em termos de beleza e de perfeição formal, tal como um poema harmonioso e inspirador, uma descrição excelente duma paisagem ou a dum acontecimento. E pode ainda ser uma terapia, ao ajudar-nos a trazermos ao de cima, e a compreendermos, certos níveis nossos que não estavam harmoniosos ou que sofriam. Todavia, a criatividade que valorizarei mais é a que se aproxima ou até desvenda aspectos e facetas subtis da multidimensional realidade do ser, do planeta e do universo, com as suas grandes ideias-forças e mistérios, as suas energias e ritmos, dificuldades e crises, e com as especificidades únicas de cada um de nós, sujeito e objecto.
As mais elevadas escritas serão as que inspiram os outros nos caminhos da educação e aperfeiçoamento, as que ajudam a solucionar os problemas dos eco-sistemas e das sociedades e as que nos harmonizam psico-somaticamente, nos iluminam na alma do mundo, nos desvendam ou descobrem mais o ser espiritual, na sua temporalidade ou na sua perenidade e, finalmente, as que nos abrem aos mundos e seres espirituais ou mesmo à Divindade, ou ao Divino em nós.
Mas como poderá a mera escrita, em geral apenas associação de ideias, palavras, memórias, sentimentos e imagens, chegar a tal nível de descoberta criativa que de algum modo nos aproxima ou introduz nos misteriosos níveis subtis e espirituais do Cosmos?
A escrita é intensificada criativamente em primeiro lugar pela intencionalidade, pelo querer. E em segundo, pelo grau de consciência de atenção e de perfeição com que nos exercemos seja na vida quotidiana (que é uma escrita), seja no momento específico da redigirmos. Em terceiro, pelo alargamento áurico e psíquico que consigamos realizar e, finalmente, pela graça, inspiração e visão que possam afluir ou descer.
Quando é realizada mais conscientemente e numa aspiração a que o espaço branco da nossa mente e alma, papel e ecrã seja penetrado e infundido por energias, ideias, associações novas ou luminosas, pode-se realmente criar uma zona atractiva de novas intuições e descobertas, pois se não estamos demasiado atulhados e obstruídos, dilacerados ou indignados, então há abertura, atracção, desabrochamento da nossa psique e das suas capacidades supra-sensoriais.
Há que valorizar então a gravidade, profundidade, excelência do acto, ou seja, assumirmos a responsabilidade de a exercermos com perseverança e argúcia, já que estamos a tentar desenvolver um saber, uma arte, um dom, uma ciência, uma plenificação, a qual exige fidelidade, sinceridade, aspiração. A escrita é então também o Caminho.
Esta intenção de trazer algo do interior ou dos níveis subtis e elevados nossos e do universo, acaba por ser uma convocação do ser mais profundo ou pleno, tanto por aspiração e disponibilidade nossa como pelo convite a ele estar mais presente em nós, tornando-nos mais transparentes,  despertos, ou mesmo, poderemos dizer, irradiantes.
A criatividade é multifacetada, é um diálogo entre a nossa personalidade e mente limitada e os níveis mais subtis e "ilimitados" nossos, e do universo. E é uma tentativa de iluminar mais a realidade, de fazer descer mais luz sobre determinado assunto, ser ou questão. E de nos unificarmos mais, com ele e connosco, na nossa multidimensionalidade.
Cada ser patenteia, contudo, a cada momento dentro de si, e mais à tona do seu oceano anímico, certos conteúdos, imagens, emoções, realizações. E por ser recente a sua entrada em nós, ou por ser cultivada e amada por nós, ou ainda por ser temida, tais conteúdos são recorrentes, predisponentes e determinantes na nossa criatividade...
Se conseguirmos discernir e intensificar alguns dos núcleos vibratórios e seus fios, quais sinapses, de comunicação, pelas metodologias de auto-conhecimento que cultivarmos, eles entram em ressonância com outros afins e algumas correntes  intercomunicativas valiosas se estabelecem e mais luz e harmonia se faz. Hoje cada vez mais se reconhece até cientificamente que estamos todos interligados num emaranhamento de mentes,  circulando correntes vibratórias afins por todo o planeta. Isto é bem evidente em sonhos ou até mesmo em meditação e discernimento das imagens ou pensamentos que chegam ou passam pela nossa consciência.
Um dos perigos porém da sociedade moderna, e nomeadamente através das redes sociais, é a dispersão que o afluxo diversificado e frequentemente muito limitado, conflituoso e emocionalizante causa em nós, acabando por enfraquecer a emergência de ilhas ou picos de energia concentrada que possam ora irradiar ora fazer descer dos mundos subtis ou das ideias mais aspectos ou visões valiosos, originais.
Há então que saber desembaraçar-nos da mediania do pensamento e interesses, evitar o ruído das televisões ou dos meios de comunicação, e elevar-nos e concentrar-nos no desabrochar de tais núcleos anímicos, de modo a ligá-los com os níveis imaginais, arquétipos e universais. 
Para isto acontecer mais fecundamente no planeta pode ser bom valorizarmos diálogos com pessoas amigas mais afins de certos estudos, partilhas, acções ou mesmo activismos.
A escrita é pois um instrumento de ligação entre seres, ideias, culturas, saberes e  mundos e traz tanto a alma mais ao corpo, à mão e torna o ser uma árvore, uma coluna, uma torre, um posto emissivo e receptivo, como um semeador que lança à terra as possibilidades de um futuro melhor.
Estamos a ser canais para o Universal, a Verdade, a Justiça, o Amor, Gaia, o Espírito, o Anjo e Arcanjo, rumo tanto a uma vida humana e ecológica melhor como a uma relação mais profunda e consciente com a Divindade.
 Assim a escrita auto-consciente que quer ser criadora centra-nos, concentra-nos, faz-nos despertar os sentidos subtis e espirituais, faz desabrochar o coração espiritual e tendemos a harmonizar o corpo e a alma, ficando mais abertos ao Todo, à Verdade, à Justiça, ou seja, realizando o nosso swadharma, a nossa parte na Ordem do Universo ou Plano Divino..
A escrita pode ser assim uma forma de meditação: paramos, escrevemos com movimentos conscientes, estamos conscientes da postura, ora fluímos ora adaptamos a respiração, a mente concentra-se a partir do seu interior e, de olhos abertos ou fechados, podemos ser agraciados com ideias, imagens ou estados conscienciais, além dos sentimentos de harmonia e de satisfação, ananda se diz na tradição indiana.
A escrita meditativa criativa aproxima-nos da essência do nosso ser, do espírito e dos níveis espirituais e divinos, e tal é sentido energeticamente, por vezes até com localização corporal ou em centros de força.
A mão, o movimento, obedecendo a linhas rítmicas de discernimento e de força bem subtis e para nós ainda pouco conscientes, vai traçando ou atraindo as palavras e deixa ou permite que o ser venha mais ao de cima, se torne mais presente em nós, e logo torna-nos mais lúcidos, firmes e determinados na demanda e na comunhão com a alma do assunto, e do mundo. O que pode ser aprofundado no silêncio, na consciência intensificada do ser em nós, eixo de mundos...
Um dos grandes desafios para uma pessoa espiritual e que escreve é portanto conseguir amalgamar bem, ou infundir, o espírito no que sente e pensa e finalmente escreve.
Mas não há muita autoconsciência no processo de escrita, em geral, nomeadamente na que ocupa as montras das livrarias, embora haja quem medite profunda ou demoradamente o que vai escrevendo.
Frequentemente as pessoas abrem a torneira da mente e da memória, e das associações de ideias e palavras e vão avançando, norteados pelas forças de atracção ou repulsão semi-conscientes que as influenciam ou mesmo determinam, o que pode ser bom, qual escrita automática, para as pessoas se conhecerem melhor...
Será importante haver cada vez mais pessoas que sintonizam o seu fluir sensível, emocional e mental  com o espírito divino que são e o mundo espiritual, embora seja raro, pois o espírito está bem acima da maior parte das pessoas que pouco acreditam nele ou pouco têm a ver e a ser com ele, mais identificadas ao ego, à personalidade, ao corpo, aos seus amores e gostos, e é tanta a alienação (da sua realização íntima) que esta sociedade moderna oferece ou mesmo impõe, nomeadamente nos canais de informação..
Conseguirmos então percepcionar o que quer que seja com a totalidade do nosso ser, sem estarmos tão alienados e divididos por clubes ou partidos, e conseguirmos utilizar as palavras certas, eficazes, verdadeiras, mágicas é o grande trabalho do criador, do escritor...
Então as palavras têm uma força substancial espiritual e penetram e tocam e fundem-se na substancia espiritual do  leitor, ainda que este saiba pouco da substância espiritual que o anima, já que o espírito é pouco conhecido ou desconhecido.
 De certo modo a escrita nos seus níveis mais elevados é tanto uma investigação como um rito, performance ou partilha geradora de um estado psíquico de clarificação, transparência e receptividade à unidade da existência-manifestação e ao conhecimento e amor subtis e tão ocultos pelo que nos rodeia, com tantos seres e suas mentes desequilibradas, cérebros agitados, vibrações dispersantes e seus barulhos e desinformações, ilusões e manipulações.
Nos tempos modernos, nos seus consumismos e imperialismos tão ameaçadores da Humanidade e do Planeta, e tão pouco valorizadores do aprofundamento psíquico, ecológico e espiritual da vida, a escrita é então um acto sagrado, de amor e de comunhão cada vez mais necessário...
Saibamos pois escrever, ler, dialogar e viver mais na Luz divina...