terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A espiritualidade d' "A Casa do Coração", de Friedrich Rücker, na versão de Antero de Quental, na revista "Crítica Amena". E as sincronias com Carlos Cirilo Machado nesse ano de 1886.

                                                     
 A Crítica Amena, Revista Literária Contemporânea, saiu à luz em Lisboa em Julho de 1886, sendo o seu proprietário, director e apresentador Augusto Forjaz, e mostrando  uma extensa lista de notáveis colaboradores no centro da capa, onde se destacavam Camilo, Bulhão Pato, Jaime de Magalhães de Lima, Júlio César Machado, Alfredo Pimentel, Luís Palmeirim, Guerra Junqueiro, José Silvestre Ribeiro, Macedo Papança, D. António da Costa e Alfredo Gallis, este desferindo uma crítica virulenta a um estudante de Coimbra, amigo de Antero de Quental,  Carlos Cirilo Machado (1865-1919), que chegará a altos postos diplomáticos (e mesmo a 2º Visconde de Santo Tirso), e ao qual, em Dezembro de 1881, a 15,  Antero de Quental escrevera bem instrutiva e elogiosa: «pela minha parte, de entre os rapazes da última geração, está o Carlos no número limitado daqueles que eu estimo e de quem espero alguma coisa sã. Concebo que [eu] lhe tenha feito alguma falta: as nossas conversas não eram vãs, e o Carlos não é daqueles, que, por terem talento, se cuidam dispensados de ouvir e atender»...
  Que sincronias estas no Verão de 1886: ao mesmo tempo que Carlos Cirilo Machado, jovem de 21 anos, recebia por um lado de Alfredo Gallis (1859-1910, autor que se especializara na literatura sexual), na revista Crítica Amena, uma descasca fortíssima à sua ousada A Velhice do Padre Eterno pelo Sr. Guerra Junqueiro (ensaio crítico), 1886, na qual até a Victor Hugo fazia reparos, e que obrigara logo em Setembro de 1886 Antero de Quental a escrever a Carlos Cirilo, a propósito de tal crítica "acre e visivelmente hostil" e portanto não "persuasiva": «Meu caro. Apesar de V. bater tão desalmadamente num que eu sempre amei muito, não lhe posso encobrir que na maioria dos casos bate certo», destacando que «a Velhice é o sintoma duma deplorável mania de profeta, que ameaça perdê-lo como perdeu o Hugo», antevendo ainda que Carlos poderia ser mal interpretado, e lembrando-lhe que o crítico deve ser um juiz e não um adversário, Carlos Cirilo recebia por outro lado também a última das três cartas de Antero de Quental preservadas, a qual, além de o  apoiar pelo diálogo e afirmação da unidade, é de suma importância.
 Na realidade, nela, Antero de Quental, respondendo às perguntas de Carlos Cirilo Machado sobre o magnetismo, refere ter conhecido  o padre Chaves e o deputado Sárrea Prado, algarvios (do primeiro nada sabemos e do segundo conhecemos estar activo no meio ocultista e espiritualista em 1928), dados «às ciências ocultas» e afirma, numa continuidade de ideias de Karl Eduard von Hartmann, que a «unidade de consciência», «expressão da unidade fundamental das coisas, existe latente ordinariamente, e só se manifesta obscuramente nos factos do instinto. O magnetismo será, segundo esta ordem de ideias, o momento em que essa unidade de consciência de latente se torna patente». 
Anote-se que Edward von Hartmann, mais conhecido como filósofo do inconsciente e  que Antero de Quental lera, chamara à comunicação no plano magnético cósmico ou transcendental, uma comunicação telefónica no Absoluto, como assinala Hans Driesch na sua Psychical Research. The Science of the Super-Normal, 1923, legível online, e na qual faz uma tentativa metodológica de discernir o que pode ser verdadeiro e falso na investigação psíquica, ao tempo de Antero de Quental sendo tal  comunicação denominada e estudada mais como magnetismo, sonambulismo, transferência de consciência, com associações por vezes à acção de espíritos, como os adeptos do espiritismo investigavam, embora frequentemente sob as mistificações dos médiuns...
Assim nesse criativo ano de 1886 Antero de Quental estava recolhido na sua tebaida ou eremitério ou ashram de Vila de Conde e escrevia cartas importantes que tanto clarificavam e apoiavam filosófica e espiritualmente como assinalavam a sua crise e as suas maleitas, compreendendo-se que o seu nome não estivesse sequer assinalado nos colaboradores por  não ser amigo do director da revista lisboeta, e, portanto, por não se ter disponibilizado para ser colaborador; e de facto na sua  ampla correspondência, bem compilada e anotada por Ana Maria Almeida Martins,  não encontramos referências a Augusto Forjaz.
António de Azevedo Castelo Branco
Numa carta de Vila do Conde, num  Domingo de Maio desse ano de 1886,  a um dos seus mais queridos condiscípulos, António de Azevedo Castelo Branco, alguém a quem Antero de Quental podia entregar-se e confessar aspectos que o preocupavam, falava-lhe da sua pouca inserção e interacção na sociedade: «Eu por aqui estou, para o meu humor e gosto, bem, no meio do suave austero desta região, que ainda não é do século 19. Entretanto, pesa-me o não servir em nada à comunidade, pois nem espectador sou da triste comédia do mundo contemporâneo. Por dever, medito em sair deste encantamento e misturar-me aos homens para fazer alguma coisa que lhes preste. Mas o quê? É o que ainda não descobri. Veremos.»
Estava porém na forja a edição dos seus Sonetos completos, a qual sairia em Agosto de 1886 e que, como diria em Setembro, com ela já nascida,  em carta ao seu tradutor italiano e amigo Tommazo Cannizzaro, valerá como um documento psicológico, «como "as memórias de uma consciência" neste nosso período tão tormentoso e confuso» constituindo sem dúvida uma notável contribuição para a poesia, a cultura e a cosmovisão portuguesa.
Nessa carta referia ainda «o estado deplorável dos meus nervos, ou como agora dizem, a nevrose, que durante larguíssimos períodos, deixando-me intacta a inteligência, me entibia a vontade e me impede de fazer as coisas mais simples justamente quando desejo fazê-las,» nomeadamente ou no caso  responder-lhe e enviar-lhe os Sonetos mais cedo...
Voltando ao início deste nosso texto, a revista literária lisboeta que nesse mesmo ano de 1886 surgia com o pacato título de Crítica Amena e que não mencionava na capa Antero de Quental nos colaboradores, se a abrirmos e lermos o frontispício, encontramos todavia a menção seguinte:  Casa do Coração, poesia de Antero de Quental. 
E na verdade, nas páginas 33 e 34, encontramos uma breve mas significativa apresentação à transcrição de tal poesia que, embora sendo atribuída a Antero, e tenha ganho alguma fama, embora com discrepâncias nas transcrições, era apenas uma tradução sua do alemão Friedrich Rücker (1788-1866), um vigoroso poeta e sonetista (muito musicado ao longo dos anos, nomeadamente por Gustav Mahler) e, significativamente, um notável orientalista que publicou várias traduções árabes (nomeadamente do Corão) e indianas e mesmo uma obra em seis volumes  intitulada Die Weisheit des Brahmanen, A Sabedoria dos Brâmanes. Não há, porém, obras dele, a não ser a antologia Deutsche Lyrick, de 1879, contendo este poema, na livraria de Antero de Quental, hoje em Ponta Delgada, na  Biblioteca Pública.

     A CASA DO CORAÇÃO 

«O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver,
Num a Dor, noutro o Prazer. 

Quando o Prazer, no seu quarto,
Acorda cheio de ardor,
No seu adormece a Dor.

Cuidado, [Mais baixo], Prazer, Cautela!
Canta [Fala] e ri mais devagar,
Não vá a Dor acordar!»


É uma poesia simples que embora possa ser vista como timorata face à taça do prazer que a vida oferece naturalmente e da qual todos devemos beber, deve ser mais entendida numa linha oriental de temperança, de equilíbrio vibratório, de conhecimento da lei do Karma: - não exageres no prazer pois poderás despertar a reacção ou compensação equilibrante da dor. 
Talvez o mais original do poema do orientalista
Friedrich Rücker seja localizar no coração esses dois níveis, apresentados mesmo como quartos onde a alma se pode instalar, viver ou desenvolver-se mais, e poderemos lembrar-nos também da tipificada dualidade (que igualmente deverá ser complementar e não oposta) do riso e do choro de Demócrito e de Heráclito, glosada pelo padre António Vieira num sermão e outros, ou mesmo as sete mansões ou níveis da alma ou consciência de S. Teresa de Ávila e de vários místicos, que se everão deixar para atrás até se chegar ao centro íntimo de si mesmo e por fim à ligação com a Divindade. 
Anote-se que a linha de transmissão ou divulgação pública desta poesia A Casa do Coração, iniciada quando foi escrita num álbum da filha de João de Deus (hoje na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada), começa no Brasil, onde é impressa pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, e desagua de novo em Lisboa, na Crítica Amena, e finalmente é incluída por Teófilo Braga nos Raios de Extincta Luz, obra publicada rápida e oportunisticamente por este em 1892, um ano após a partida ou morte de Antero, e que certamente Antero não apreciou (do além...) por várias razões.
 Teófilo Braga apresenta-a como imitada do alemão, menciona a proveniência do álbum, e transcreve-a com duas variantes (a principal "Não vás a Dor acordar") em relação à versão dada à luz  na Crítica Amena, na qual o verso final  surge como: «Não vá a Dor acordar»,  certamente a mais acertada, como a podemos ver escrita numa carta para Joaquim Araújo, de 1881, em que o trata Meu caro Pequeno, então numa versão com um pequena variação ainda assim significativa, de intimidade, de interioridade, ao estar "Mais baixo", em vez do "Cuidado" que se tornará a versão pública e aparentemente final...
Mas qual é então a introdução ou nota contextualizante valiosa de Augusto Forjaz, que no fim da revista de oitenta páginas defende e elogia ainda Guerra Junqueiro e Alfredo Gallis? 
Ei-la:


 «Pertence à Gazeta de Noticias, do Rio de Janeiro, a glória de ter publicado, inéditos, os seguintes versos escritos num álbum pelo anacoreta de Coimbra, uma das inteligências mais notáveis da literatura portuguesa. 
Antero de Quental  é o admirável burilador das Odes Modernas e a vítima de uma doença que o aniquila, apertando-lhe a existência num círculo de ferro que lentamente se estreita. 
Mas, através aquele martírio lento, é soberba, é admirável, é extraordinária, a luz que fulgura de um cérebro cultivadíssimo, como que um clarão eterno acompanhando um sol moribundo.
Os versos que seguem, quase completamente desconhecidos em Portugal, são nove brilhantes límpidos, fulgurando na treva da doença do notável poeta açoriano»... 
O que poderemos acrescentar a este aparentemente belo tributo à paixão-doença e génio de Antero de Quental, senão apenas realçar primeiro a  expressão "anacoreta", que embora com laivos algo exagerados aponta o eremita, o génio, passada a fase inicial dos amores e lutas juvenis em que tanto se destacou, e agora longe da dispersão e superficialidade mundana, em busca do íntimo, do sagrado, da verdade, e solitário ou com um ou outro companheiro, como ele se reconheceu ou desejou, nomeadamente falando de uma Ordem dos Mateiros, recolhidos nas matas, apesar do seu forte amor e ardor revolucionário sendo ingénito, permanecer de algum modo  perene, tal como vemos mesmo um ano antes de desencarnar vir ao de cima no episódio da repulsa ao imperialismo inglês do Ultimatum e na aceitação da presidência da Liga Patriótica do Norte. 
Em segundo, a descrição da doença nervosa como um círculo de ferro que lentamente se estreita num martírio lento sobre tal inteligência notável, e em que há quase como que uma antevisão do suicídio cinco anos depois, o qual, por exemplo, entre outros dessa época, Manuel Laranjeira também cometerá, mas que antes em alguns artigos Antero criticara pelo que tal significava de ausência de ambientes que acalentassem as almas mais sensíveis.
Todavia, mesmo na treva da doença (talvez exagerada por Forjaz) e da fraca inserção social, ressalta ou é pressentida por Augusto Forjaz e outros a extraordinária a luz que fulgura de uma alma (e não um cérebro apenas...) plena de cultura e idealismo, sensibilidade e bondade, luz ou clarão divino que continuará para além do poente do horizonte terreno...
Possam a luz e o amor Divinos brilharem sempre no ser anímico e espiritual de Antero do Quental e em nós...

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Shusaku Endo e o "Silêncio". Hermêutica espiritual. Com um vídeo no final sobre a obra, por Pedro Teixeira da Mota.

Este japonês (1923-1996) de Tóquio, mas que viveu dos dois aos dez anos na Manchúria, então sob administração japonesa, pois era filho de um empregado bancário para ali enviado, foi baptizado com o nome de Paulo aos 11 anos de idade, por influência da sua mãe, violinista, convertida por uma tia ao Cristianismo após o divórcio, tornando-se um dos pouquíssimos e naturalmente algo marginalizados católicos japoneses. Após alguns anos de busca de estudos e carreira, concluiu um tipo de licenciatura em Literatura Francesa na Universidade de Sophia, aos 25 anos, recebendo pouco depois, em 1950, uma bolsa do governo para ir estudar  na Universidade francesa de Lyon, onde esteve três anos, algo isolado, estrangeirado, regressando com problemas pulmonares (que o fizeram sofrer bastante ao longo dos anos), mas desde então dedicando-se apenas ao ensaísmo e à literatura. Ao ganhar o prémio Akutagawa,  importante, em 1954, tornou-se um autor consagrado e um leitor universitário, já sem problemas de dinheiro, casando-se e tendo um filho, as suas obras sendo muito bem acolhidas, e criando boas amizades, tal a com o representante de Portugal no Japão, Armando Martins Janeira, que o refere nas suas obras de referência do encontro luso-nipóico, tal as Figuras de Silêncio, que é mesmo prefaciada por Shusaku Endo.
                                
Vivendo entre duas cosmovisões, a cristã e ocidental e a nipónica, escreverá textos e romances originais e valiosos através dos quais questiona e aprofunda aspectos psicológicos, filosóficos e religiosos do ser humano e da história, tanto nipónica como portuguesa, como ainda da Humanidade e sobretudo do Cristianismo, em si e particularmente no Japão.
Quando lemos a sua obra Silêncio, e será ela o escopo deste artigo (escrito em função de um encontro do Clube de Leitura Oriental, da Inês Carvalho Matos, e do qual registamos algumas partes no vídeo anexo no final), entramos no mundo dos últimos missionários do Cristianismo no Japão nos anos trinta, quarenta do século XVII, quando já estava proibida tal actividade e uma entrada clandestina no Japão era quase uma aventura kamikase
Fora em 1614 que Tokugawa Hidetada promulgara o édito da expulsão dos missionários e portugueses: «o bando cristão (kirishitan) ... veio ávido de derramar uma lei má e de rejeitar a verdadeira doutrina, com a intenção de mudar o governo do país e de tomar posse das terras. Uma tal semente de calamidades deve ser esmagada.»
A aventura do Cristianismo no Japão, começada com a chegada de Francisco Zeimoto, António da Mota e António Peixoto, e depois em 1549 com Francisco Xavier, e os jesuítas, e a partir de 1579 desenvolvida pelo geral dos jesuítas Alexandre Valignano, e que teria rendido tanto uns 300.000 crentes, numa população talvez de 18 milhões como também grandes amizades e diálogos, apoios e intercâmbios com pessoas e sobretudo governantes (nomeadamente Oda Nobunaga e Hideyoshi, este apenas durante certo tempo), estava verdadeiramente a findar, tanto mais que ingleses e holandeses já tinham chegado e pelo seu pragmatismo e sem religião missionária souberam captar as boas graças dos governantes.
Expulsos, proibidos de entrar sob pena de martírio cruel e morte, o horizonte geral era bem sombrio e pantanoso mas ainda assim houve missionários que sem se deixarem atemorizar por tal insistiram perseverantemente com os superiores para que os deixassem partir a fim de apoiarem os cristãos clandestinos japoneses, sem pastores e em constante perigo.
 É verdade que há ainda outro objectivo, talvez ainda mais premente, pessoal e dramático que impulsiona os dois jesuítas portugueses protagonistas desta aventura pelo silêncio a dentro e que é o certificarem-se se o antigo mestre deles no colégio lisboeta, o Padre Cristóvão Ferreira, após tortura e ameaça de morte nas covas de Nagasaki, em verdade abjurara do Cristianismo, recusou o santificante martírio e colabora com os governantes e religiões japonesas, pondo até em terreno aberto pretensos erros ou falsidades do cristianismo, para além de estar a traduzir obras científicas ocidentais para japonês.
São rumores que constam na vizinha Macau, pois os contactos com os cristãos japoneses estão cortados desde as últimas perseguições sangrentas e sobretudo desde a revolta de Shimabara onde 300.000 japoneses, camponeses e também cristãos, com seus estandartes religiosos, foram mortos.
Quando recebem finalmente a autorização em 1637, e partem de Lisboa na armada da Índia a 25 de Março de 1638, estamos entrados no átrio do do livro, pois só depois da difícil viagem e da persistente petição em Macau perante o geral da Ordem Alexandre Valignano é que conseguem ver anuída a aspiração ardente que os queimava de partirem num junco para o Japão.
Shusaku Endo, com o seu conhecimento das condições naturais do Japão, consegue reanimar para nós os ambientes aldeões e as mentalidades, ora simples ora complexas, do século XVII e põe-nos verdadeiramente na pele dos dois missionários clandestinos e em especial na alma de Sebastião Rodrigues, aquele que vai fazendo em discurso directo o relato das aventuras, perigos, sucessos e perseguições envolventes, no seu encontro com os cristãos clandestinos e o seu difícil pastoreio e, por fim, já depois de separados para fugirem à iminente captura, com o medo a aumentar nos dois, por fim vir a encontrar tanto Garrpe como o seu antigo mestre Cristóvão Ferreira, aquele que apostatizara...
Parece simples o enredo, mas trata-se de uma recriação histórica valiosa, movimentada, dramática e que recentemente foi mesmo levada ao cinema por Scorsese, certamente explorando o emocionalismo e dramatismo inerentes a tal aventura missionária e que é quase o epílogo de cerca de um século de grande florescimento do cristianismo, sobretudo justificado, como nos diz Shusaku Endo através de Sebastião Rodrigues, porque: «em verdade estes camponeses sofreram demasiado tempo, como bestas de carga. A nossa religião penetrou nesta região como uma água generosa numa terra árida, devido ao calor humano, até então desconhecido, que trazia às pessoas. Encontraram, pela primeira vez, homens que os trataram como iguais e assim a bondade e o coração dos Padres ganharam os seus corações». 
E, neste sentido, era ainda a figura doce e maternal de Maria a mais cultuada e venerada, como podemos ver ainda hoje numa pintura num estandarte quinhentista dela, como Nossa Senhora das Neves, nossa Senhora do país das neves montanhosas e invocadora da pureza e da água misericordiosa que delas se desprende ao descer das alturas pela acção do calor do sol e do amor.
Imagem quinhentista dos cristãos japoneses da zona martirizada de Nagasaki, da principal face feminina Divina cristã, venerada como Nossa Senhora das Neves e ainda hoje existente no museu dos 26 Mártires, em Nagasaki....
Que aspectos ficam mais na alma após a leitura emocionante e que prende, da última aventura cristã e portuguesa no Japão, se não quisermos mencionar, já depois da abertura do Japão ao Ocidente no séc. XIX, a adopção do Japão por Wenceslau de Moraes e os seus maravilhosos livros, ainda hoje pouco compreendidos e nos quais tende a superar várias dualidades, tais como as das religiões?
Quatro, talvez: o 1º, sobretudo, a inquietação do crente convertido japonês, ou do padre Sebastião Rodrigues, ou do próprio Endo, tanto pela vida miserável e perseguida de tanta gente pobre como pela ausência de resposta de Deus ao sofrimento imenso dos cristãos japoneses oprimidos e martirizados. Shusaku Endo exprime assim a angústia dos dois missionários quando dois cristãos que vão ser interrogados e provavelmente executados lhes perguntam:«Porque é que Deus, Sama, nos impõe este sofrimento? Padre, que mal fizemos nós?»
Esta questão recebera uma resposta inicial justificadora: o Japão é um pântano, que não tem condições para deixar crescer a semente. Mas compreenda-se que a primeira é uma pergunta que não está bem feita pois não é Deus que impõe sofrimentos, mas são os homens nos seus egoísmos intolerantes ou ferozes que os causam ou impõem. Algo que Shusaku Endo explicará também, consciente das limitações de tal visão pseudo-cristã de uma maldade de Deus. 
Transplantar para o chamado pântano, ou seja para o ambiente e o modelo e estrutura social nipónica da época, o Cristianismo era uma tarefa realmente bem difícil pois sendo em certos aspectos  uma subversão democrática ou igualitária, pondo em causa a hierarquizadíssima estrutura social e autoridade política, iria obrigar as autoridades que se constituíam na altura numa unificação  política a  reagirem violentamente
Contudo, a questão maior que aflora apenas uma ou duas vezes, fazendo par com que é considerado como o maior pecado contra o Espírito, o desespero, é se Deus existe ou não, pois se não existisse, pensa Sebastião Rodrigues, toda aquela aventura, ou mesmo a existência humana, seria absurda...
                                                       
2º, a busca da face da alma de Jesus, a qual sendo o modelo deles missionários vai passar por metamorfoses, de início uma amada e perfeita, pois desde novo Sebastião Rodrigues sentia ou via mesmo nas noites de insónia a face do mestre, como quando ele pronunciara as bem-aventuranças junto ao lago da Galileia, sentindo-a muito como uma fonte de força e amor. E com o tempo e a experiência nas dificuldades de estar preso e bastante pressionado ainda assim será em tal imagem que recuperará paz, embora alargue a dimensão do Cristo idealizado e perfeito para o que se vê reflectido nos pobres e desprezados, doentes e miseráveis, ou mesmo nele próprio perseguido, magro e extenuado, sentindo que o maior amor é esse pelos mais desfavorecidos, ou o que brota sob as maiores dificuldades.
 
3º, a inicialmente surpreendente abjuração do missionário  Cristóvão Ferreira vai com o desenrolar e o final da narrativa compreender-se quase naturalmente. Em verdade, para quê criarem-se ou manterem-se tantas oposições, facções e fracturas religiosas quando as pessoas humanamente podem fazer o bem e serem boas e conviverem acima das divisões religiosas?
O século XXI neste aspecto  dá-nos uma leitura retrospectiva excelente pois cada vez mais, à parte o sensacionalismo evangélico ou o terrorismo islâmico, ambos tão fanáticos e manipuladores, as religiões vão perdendo a sua aura de verdade divinas reveladas e indiscutíveis e os crentes, sobretudo onde a cultura e a liberdade estão presentes, vão abrindo os órgãos da alma discernindo as patranhas escriturais e intuíndo  a religião do Espírito e do Amor que está subjacente ao melhor de todas as religiões históricas, tão condicionadas por múltiplos factores e com frequentes germens de exclusivismo e violência...
4º, uma das figuras que se infiltra ou arrasta ao longo do livro é um cristão japonês que apostatizou, Kichijiro, e que anda sempre na corda bamba entre o ajudar os missionários e o vender-se para salvar e portanto trair, no que cairá de novo causando a detenção deles. Aliás pouco antes de tal acontecer, numa reflexão angustiada acerca dessa companhia algo viscosa ou  escorregadia, o padre Sebastião Rodrigues é levado a questionar se Jesus, na última Ceia, quando mandou Judas realizar o seu trabalho, isto é, entregá-lo às autoridades religiosas judaicas, fê-lo de um modo colérico, ressentido, o que equivaleria a condenar alguém à perdição eterna, algo oposto ao perdão divino, ou se pelo contrário o fez por amor. E lembra-se que, quando estudava e se interrogava sobre tal, alguém lhe tentara explicar como fazendo-o com tristeza, pela atitude, mas ainda assim amando-o, na, ou pela, essência.
No terreno hostil do Japão de então, o missionário Sebastião sente subitamente que Judas seria apenas um fantoche levado a participar no drama da vida de Jesus, admitindo assim uma predestinação, numa linha quase protestante ou luterana, aquela que Erasmo esclarecera e rebatera magistralmente na época do começo da Reforma...
É quando estamos apenas a metade do livro que o padre Sebastião é finalmente preso e levado para um campo de prisioneiros cristãos com os quais vai ainda poder pastorear antes de os ver morrer. E embora comecem a crescer as dúvidas quanto à verdade da fé simples que os japoneses tinham num imaginado ou intuído reino dos céus maravilhoso mal saíssem martirizados desta terra, começa também a desenhar-se a resposta lógica à pergunta que os inquisidores japoneses (quase que num efeito boomerang da Inquisição católica), ou um antigo cristão, que discutirá mesmo teologia com ele, lhe lançam: terá Sebastião Rodrigues direito a fazê-los sofrer na fossa e por fim morrerem, ao não apostatizar, já que a inexistência de um padre missionário seria considerado suficiente para um natural definhar do Cristianismo, sem necessidade de mais perseguições e mártires?
Tudo se vai então encaminhar para um desfecho inesperado, pois após vários diálogos com o temível mas afável interrogador Inoue, e sujeito a pressões grandes mas nas quais vai conseguindo identificar-se com Jesus aprisionado e vilipendiado, acontece a viagem até Nagasaki e o encontro com o seu antigo companheiro Garrpe, aprisionado e que recusando-se a apostatizar faz com que três japoneses morram.
Neste momento, numa primeira mudança radical, Sebastião Rodrigues, telepaticamente, tenta dizer a Garrpe para apostatizar e salvar os outros, abrindo assim brechas no seu proselitismo de candidato a mártir mas permitindo que haja menos mortes de japoneses cristãos. Todavia, Garrpe naturalmente não o ouve e prefere lançar-se ao mar, antes dos dois cristão serem também atirados borda fora presos em cruzes.
É um dos momentos culminantes do livro, a anteceder dois outros decisivos, e sozinho, preso, cogitando,  a questão da existência de Deus surge de novo, e a famosa frase atribuída a Jesus pouco antes de morrer: "Eli, Eli, lama sabachani", "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste", é pela primeira vez interpretada por Sebastião não como uma oração ao Altíssimo mas como um possível desespero de Jesus perante o silêncio divino...
E quase logo a seguir surge Cristóvão Ferreira, calmamente acompanhado por um bonzo e um intérprete, colaborando com as autoridades japonesas e demarcando-se dos sonhos de proselitismo cristão, aliás num diálogo dramático, no qual, após um silêncio angustiante, Cristóvão Ferreira explica como está a ser útil àquele povo e país traduzindo obras médicas, de cirurgia, ajudando na astronomia, de facto necessidades se calhar tão valiosas como as de tratar das almas...
Nesse diálogo tremendo e no qual Sebastião Rodrigues está sempre a ver fisicamente em traços fisionómicos os aspectos negativos psíquicos de um traidor, de um sensual, de um apóstata, subitamente a missão de Cristóvão para com Sebastião surge calma, lúcida, racional: levá-lo a apostatizar, pois como diz o intérprete: «o caminho da misericórdia não é senão o da renúncia a si mesmo. Ninguém deveria fazer proselitismo pela sua própria crença religiosa. Ajudar os outros, segundo o ensinamento de Budha ou de Cristo é um ensinamento idêntico nas duas religiões. O que importa é de seguir, ou de deixar, a via da verdade. É o que Sawano Chuan (Cristóvão Ferreira) diz no seu livro Gengiroku», o tratado que explica os erros do Cristianismo.
São das linhas de maior sabedoria e perenidade de todo o livro, que sabiamente Endo põe na boca do intérprete japonês, mas compreende-se ainda assim que quando este livro foi impresso tanto protestantes como católicos, a começar pelo bispo de Nagasaki, algo ridiculamente, não tenham gostado dele, seja por apresentar os cristãos japoneses não da melhor forma seja os protestantes, cientes de si mesmos, atribuindo antes as apostasias à falta de fé dos missionários portugueses.
Porém, inegavelmente, a relatividade das crenças religiosas, e a importância da religião mais simples do amor e de se viver em paz, cada um na sua, ganha nos dias de hoje realmente uma dimensão de claridade urgente para se sair dos confrontos violentos que ensombraram e ainda calcinam tantas zonas, povos e gentes...
O diálogo de Ferreira e Rodrigues é bem valioso porque nele vemos levantados alguns aspectos das limitações de qualquer proselitismo de pregadores, ou missionários já que mesmo com doutrinas e dogmas a concepção que cada crente alcançará do seu Deus é sempre subjectiva e diferente do outro crente e que a Divindade pode falar ou chegar a cada um conforme a sua tradição e aspiração...
Vemos então Cristóvão Ferreira, um português, um ocidental, já compenetrado da mentalidade nipónica, assinalar como a concepção do Deus cristão foi incompreendida e modificada pelos japoneses, que o identificavam mais como Sol, Dainischi, pois: «os japoneses não conseguem conceber um Deus completamente distinto do ser humano, nem imaginar uma existência transcendente», e portanto o cristianismo adoptado é como uma borboleta presa e morta numa teia de aranha...
Esta última afirmação e imagem ficará a percorrer em círculo a mente emaranhada de Sebastião, preso e solitário, meditando no que se passou e na sinceridade de Ferreira, quando as proferiu.
Acorrem-lhe porém também as palavras de Jesus que estará com os que sofrem até ao fim do mundo, e as cenas da paixão de Cristo, mas é abalado pelo som dos cristãos que gemem torturados ali perto e a lembrança da confissão de Cristóvão Ferreira da razão de se apostatizar: não fazer sofrer mais outros seres por uma fé estrangeira ao país e por um Deus silencioso perante o sofrimento e as orações.
O ponto dramático ocorre então quando diante de Sebastião Rodrigues o antigo missionário Cristóvão Ferreira lhe põe a tremenda questão: - Se Jesus estivesse ali, o que faria? Deixaria morrer os outros? Teria esse egoísmo?
E, perante o grito ou queixume horrorizado de "não" de Rodrigues, qual "Senhor, afasta de mim este cálice", a resposta que Cristóvão Ferreira, ou Sawano, dá é simples e clara: Jesus apostataria, por amor dos seres humanos, para os salvar.
O livro atingiu o seu clímax, e Cristóvão Ferreira, ou Sawano Chan (tal fora o nome que recebera pela morte do antigo possuidor dele), em vez de obedecer ao pedido de Sebastião Rodrigues para se ir embora, põe-lhe a mão sobre o ombro, empurra-o docemente e sussurra-lhe: «ides agora realizar o mais doloroso acto de amor que foi realizado», encaminhando-o pelo corredor para a sala onde lhe será apresentada o fumi-e, que ele vê pela primeira vez, uma medalha em metal  com a imagem de Jesus,  na Última Paixão, e algo desfigurado pelos sinais de ter sido muito pisada. Sebastião segura-a nas mãos, perde-se na lembrança ou anamnese de como tal face divina o acompanhou e inspirou em toda a vida e missão, e questiona-se dilacerado (talvez como alguns cavaleiros Templários na sua iniciação secreta) como é que poderá agora pisá-la? 

 Cristóvão Ferreira e o intérprete encorajam-no: - É apenas uma formalidade e muitas vidas serão salvas. Uma lágrima brota-lhe, o pé pesa-lhe, só faltaria mesmo assentá-lo sobre a efígie, uma dor e tristeza imensa por ter de trair os seus ideais afloram, mas eis que de repente na própria imagem de bronze ele ouve o mestre Jesus a dizer-lhe: «"pisa, pisa [(e Endo não diz "pisa-me, pisa-me", como eu escrevera inicialmente)], é para ser pisado ou menosprezado pelos homens que vim ao mundo. É para partilhar o sofrimentos dos seres humanos que carreguei a minha cruz".
O sacerdote pisa o e-fumi. A aurora explode. Ao longe, o galo canta».
Poderíamos imaginar que explodira também a alma de Sebastião Rodrigues, como se fosse um seppuko ou harakiri, em que o espírito vital se liberta do corpo, a apostasia libertando-o de uma prisão dogmática de fidelidade já desadequada e mortífera para os crentes japoneses. Algo disso fica na sua mente sentindo que não pode ser desconsiderado pelos religiosos da Companhia de Jesus na rectaguarda, mas mesmo assim de noite acorda com visões tétricas da Inquisição ou do Apocalipse, sem dúvida um texto no seu messianismo extremista bem escolhido para par do Santo Ofício por Shusaku Endu, pois nada tem de S. João e do Logos Inteligência e Amor Divinos que o Cristianismo helénico conseguiu introduzir no Quarto  Evangelho.
Para mim a cena da apostasia foi mais comovente de toda a história, mas fica-se na dúvida se a escolha da tristeza ou amargura sentida posteriormente foi a melhor, pois deveria haver alívio, alegria, felicidade, choro, seja em Sebastião Rodrigues, seja em Shusaku Endo, seja na maior parte dos leitores devotos que poderão até sentir lágrimas do Amor purificador e libertador...
E assim acabava o sonho e ambição do proselitismo missionário cristão, vindo das praias do extremo Ocidente e finalizando nas costas do extremo Oriente...
Talvez o fim do romance (ainda que haja algumas notas históricas posteriores) pudesse estar melhor, pois diz-se ainda que Sebastião Rodrigues ficara a desprezar Cristóvão Ferreira  por o ter encaminhado para a apostasia, quando ambos deveriam  antes reconhecerem-se e conviverem na plenitude de espíritos filhos de Deus, livres e fraternos, acima das divisões, formalidades e barreiras religiosas e dogmáticas, podendo-se dizer que tinham cumprido as suas missões ou deveres (swadharma) da Vida em aspiração ao Amor e à Divindade, a qual não se deixa fechar nem sentir em concepções limitadas de religiões ou seitas...
Shusaku Endo imagina-os reciprocamente  se desprezando, embora sintam piedade pela comum desgraça que os une. Mas a unidade interna da procura da Verdade, o amor da religião do Espírito e do Amor, a abertura à Divindade deveria antes desabrochá-los e uni-los interiormente, embora se intua bem todas as tensões e limitações estreitas da época e dos ambientes e cosmovisões gerais.
Na verdade, não houve desgraça mas simples reconhecimento que o Cristianismo não podia vincar no Japão, pese o sonho missionário ou evangélico audacioso e que tivera um florescimento inicial tão grande e prometedor, e proporcionando ainda assim alguns momentos de bons diálogos inter-religiosos, como os protagonizados por S. Francisco Xavier com religiosos japoneses, nomeadamente o abade Ninjit, como relatam cartas suas e as obras dos jesuítas historiadores da época, como Luís Fróis e João Rodrigues, disto fazendo eco aprofundante já no séc. XX o embaixador de Portugal no Japão Armando Martins Janeira nas suas valiosas obras.
  Os séculos posteriores darão razão aos que apostatizaram e evitaram mais mortandade de japoneses, e de igual modo hoje o sonho de uma religião qualquer triunfante no mundo é um sonho imperial de um iludido ou mesmo extremista, o Cristianismo convivendo com o Budismo, o Shintoísmo e sobretudo com as centenas de grupos espirituais que testemunham a perene aspiração numinosa do povo nipónico...
Deus ou a Divindade não pode ser para as pessoas apenas uma concepção exterior, uma crença, mas deve ser sim uma vivência interior e espiritual, um presença mística e amada, e logo de consequências libertadoras em relação à letra que mata o espírito.
Assim as religiões devem ser  dialogantes e universais e comungarem fraternamente nos princípios éticos e nas realizações espirituais comuns, estas  sobretudo pelas almas mais místicas alcançadas e partilhadas, embora não tenham sido tão divulgadas e assimiladas como o mundo precisa...
Sebastião Rodrigues dar-se à conta posteriormente que de facto a sua luta maior não foi contra os opositores exteriores, seja perseguidores e inquisidores, ou mesmo o pântano infértil para o cristianismo, mas contra a sua própria fé limitada e certamente incompreendida agora pelos religiosos que estivessem em Macau, Goa ou Lisboa, pois se os traíra não traíra a Voz Divina ou da Consciência, entre nós tão realçada por Antero de Quental ou como, escreve Shusaku Endo, «ele não traíra o seu Senhor», e continuava amando-o...
E assim no seu interior o Amor Divino ardia, a sua vida, mesmo com um nome japonês e casado, continuava a ser a do último sacerdote ou sacralizador ocidental no Japão (e nesse sentido ainda teria que absolver no fim o escorregadio Kichijiro) e ela falava por si só do mestre Jesus, duma face Divina, mesmo perante toda a incompreensão ou silêncio...
                       

domingo, 14 de janeiro de 2018

O "Soneto para Antero de Quental" de Leonard S. Downes. Comentado por Pedro Teixeira da Mota

Tendo estado em Portugal, o inglês Leonard S. Downes, em 1947, deu à luz em Lisboa um livro, Portuguese Poems and translations, com  dezanove traduções, nas quais inclui dois sonetos, Tormento do Ideal e Sepultura Romântica   de Antero de Quental (e entre outros dois de Fernando Pessoa e quatro de Campos Figueiredo, então vivo), e quinze poemas originais seus, um deles dedicado ao genial poeta filósofo, tentando cingir a essência da sua vida, obra e morte.
 
A dedicatória ao Prof. Gonçalves Rodrigues, numa caligrafia cerrada e ao alto
 Anote-se que já em 1944 Leonard S. Downes publicara Dona Briolanja and other poemas, from the portugueses of Eugénio de Castro, num in-4º de 51 páginas, com uma Introdução valiosa onde reafirma a ideia de que "uma tradução é um acto de humildade", já que é muito difícil reproduzir a forma e a música do original, evidente no caso de Eugénio de Castro que «fora um Simbolista na importância que atribuía a música da poesia, Parnasiano na sua imagética visual e clássico na perfeição cinzelada do estilo. Foi ainda um mestre do Português, usando ao máximo todos os recursos do ritmo e ritmo que tinham tornado essa linguagem um tão rico meio lírico desde o século XI.»

Voltando ao poema intitulado Soneto para Antero de Quental, ele leva uma citação de Balzac em epígrafe: «Cada suicídio é um poema sublime de melancolia», algo que podemos compreender até para Antero, pois entre desilusão, cansaço e frustração ou melancolia, tristeza e depressão podemos certamente considerar estados de alma próximos ou possíveis dos que rondavam a posse do eu decisório de Antero de Quental, nomeadamente nos dias, horas e momentos que antecederam o fim abrupto e voluntário da vida no corpo físico, já bastante desgastado. Todavia, tal sublime teórico e poético, elogiado por Balzac nem sempre o é e pode também esvair-se no estertor corporal do corpo e, quem sabe, da alma em transe... 
Avancemos antes para a alma espiritual e a demanda  imortal e perene de Antero...
Eis como Antero de Quental é cantado por Leonard S. Downes,  na tradução minha: 
 
«Não encontrou o Deus desconhecido que procurava;
 O puro Ideal escapou-lhe até ao fim,
 E ousado a pugnar pela Verdade, ardente a defender 
 Liberdade e Justiça, ele tombou onde combatera.

Rebelde a tudo que não fosse ensinado pela Beleza
Serviu a causa dela em cada uma das linhas que escreveu;
Apenas às suas leis  se dobrou o seu  coração
Para prestar homenagem na sua obra e pensamento.

Servindo o Belo, ele nunca soube
Que Beleza é Verdade, que ele encontrara a Verdade,
Mas procurou o seu Deus desconhecido até ao seu último sopro.

E apenas encontrou o Ideal no seu peito
Naquele altaneiro poema que finda a sua demanda sem esperança,
A melancólica épica da sua morte».

O soneto, que  tenta cingir a alma de Antero na sua obra e vida, é belo e profundo;  e como na visão de Leonard destacam-se algumas linhas de força tentaremos nós agora seus leitores clarificá-las um pouco mais.
Inegavelmente, Antero não conseguiu encontrar Deus ou, como é dito, «o seu Deus desconhecido», qualquer que seja o sentido intencionado por Leonard para o "desconhecido"...
Já quanto ao ideal puro, ou melhor diríamos os ideais puros, poderemos admitir que em alguns momentos da sua vida ele tenha tido uma boa realização deles, seja vivendo-os, seja compreendendo-os, meditando-os, sentindo-os, visionando-os.  
Isto poderá ter sucedido, por exemplo, nos seus tempos de estudante, nos seus diálogos com amigos no Cenáculo lisboeta e ao longo da vida, ou ainda, quando retirado na sua tebaida de Vila do Conde, aprofundou a sua cosmovisão e deu a forma definitiva à sua obra poética, na qual o ideal da demanda da Verdade se encontra bem expresso, ainda que certamente com bastantes traços de não conseguimento da plenitude a que ansiava.
Admitamos o conteúdo do quarteto inicial como verdadeiro: não conseguiu adorar e amar, ver e sentir o seu Deus, talvez até porque não conhecera nem praticara adequada ou persistentemente a meditação, a mística (que conhecia e vivenciara, tanto mais que tinha em si bem tal dimensão) e a gnose iniciática, ficando então na luta ardorosa pelos seus ideais de Amor e Harmonia, Liberdade e Justiça, Verdade e Bem, os quais expressou mais na poesia, no ensaio e nos diálogos e cartas aos amigos do que numa profissão ou apostolado, como ao princípio se empenhara pelo socialismo nascente, e que de novo, em 1891, no último ano da sua vida, exerceu, saltando para a arena da acção cívica e política, com os estudantes e intelectuais do Porto, em defesa de Portugal perante o Ultimato do imperialismo inglês.
Poderemos ainda observar que ele tombar, cair, falecer no terreno da justiça e da liberdade onde combatera, como escreve Leonard, deve referir-se a desilusão em relação à última experiência na Liga Patriótica do Norte, já que a que terá sofrido nos últimos dias quando teve de submeter-se à perda do contacto com as suas duas pupilas ou filhas adoptivas, poderia ser apenas uma separação transitória...
O segundo quarteto põe-nos diante de um Antero como artista da perfeição estética e sacerdote da Beleza, o que certamente foi, embora tenha sido sempre bastante exigente no aprofundamento dela rumo à  Ideia, ao Ideal, à Verdade,  pensando e escrevendo muitas ideias e páginas por tais anseios exigentes, que apesar disso sofreram algumas destruições (tais o Programa dos Trabalhos para as Gerações Novas, ou a sua Teoria da Religião) por perfeccionismos sobretudo formais e ideológicos, ou por aguda consciência das suas limitações.
No 1º terceto Leonard quer fazer-nos  pensar que a Beleza em si é a Verdade, algo que nos parece exagerado, pois frequentemente ela é apenas, uma aparência, uma ilusão, como também parece errado a afirmação que Antero nessa Beleza já encontrara a Verdade mas que não se dera conta. A última obra de Antero, as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, é um testamento de busca muito conseguida da verdade ao nível da filosofia, bem além da Beleza que constitui apenas um dos aspectos da típica tríade do Bem, do Belo e do Bom.
E quando conclui o terceiro verso, de novo com o "Deus desconhecido" que procurou e não encontrou, Leonard S. Downes parece estar mais quase numa mera linha estética: Antero bastaria contentar-se com a Beleza, pois isso é a Verdade, em vez de andar na busca de Deus, que Leonard acentua "de Deus desconhecido", na qual esteve até ao fim da sua vida.
É bem difícil equacionarmos, visionarmos e sentirmos que tipo de visão e demanda anímica Antero de Quental tinha nos últimos tempos, mas pelos relatos ou mesmo por algumas cartas, ele não estava já numa busca muito forte de sentir ou ver Deus, ou de ter mais união com Deus, ainda que certamente qualidades divinas como a paz e a luz fossem almejadas e por vezes sentidas.
Não parece que a capacidade mística de amor e de aspiração a Deus pessoal  (ou seja, ao que de Deus  ele poderia receber) estivesse muito viva e a arder forte em Antero após tantos sofrimentos psico-somáticos e um consequente desgaste anímico.
Também não sabemos se ele orava a Deus, se meditava em Deus. em momentos específicos, ainda que certamente no seu dia a dia algo do Ideal e do sagrado perpassava e vibrava nele e em certos momentos mais contemplativos alguns vislumbres do infinito o pudessem bafejar, ou alguns segundos do som e vibração do silêncio o iluminassem e orientassem, ou alguma alegria do coração espiritual aflorasse...
Parece-nos talvez ainda assim que a Divindade era para Antero um Absoluto benigno, mas impessoal e que nele, quando morresse, reencontraria possivelmente a unidade e a paz. 
E sabemos que as visões da Unidade absoluta, seja na sua faceta do Advaita Vedanta indiano, em que o Absoluto é a Consciência única e é a Divindade, seja na do Budismo, em que o Absoluto é a extinção do eu e dos desejos, o nirvana, ou ainda um estado de Consciência cósmica supra-humana, não facilitam muito a mística da aproximação devocional, a qual implica  um Deus, pessoal, exterior-interior, ao qual se reza e pede, oferece e ama.
No último terceto, Leonard pensa que Antero foi fiel ao seu ideal e que morreu por ele ou nele, mesmo que suicidando-se. O "altaneiro ou fogoso" poema com que termina a sua demanda poderia e deverá ser o Na Mão de Deus, com o qual Antero encerra a sua compilação dos Sonetos, mas o soneto é tão humilde e devoto que pode não ser a ele que  Leonard alude.
Fica então a dúvida se ele entende o altaneiro pela epígrafe inicial do escritor e ocultista francês Balzac, ou seja, a morte trágica pelo suicídio é a sublimidade poética da melancolia, e o coração de Antero altaneiro, orgulhoso ou fogoso (a dificuldade de traduzir o "proud"...).
Melancolia e não tristeza, pois esta palavra refere mais um sentimento e tem bastante menos riqueza e tradição que a Melancolia, tão  vivenciada e sondada ao longo dos séculos (a acédia, referida pelos eremitas e monges cristãos), por vezes contudo vista talvez mais como saudade impotente do Divino ou do Amor, e sabiamente coroada na gravura de Albrecht Dürer.
Mas também podemos ver que Leonard está de novo a pôr em causa  como inútil, impossível ou sem esperança a demanda  que Antero de Quental teria assumido ao longo da vida, em busca da Verdade e do que poderia conhecer de Deus, e que morreu nesse ideal sublimemente mas tragicamente, e até, segundo Leonard,  enganado, pois na Beleza teria podido encontrar a Verdade...
Certamente que descontrairmos um pouco da constante inquietação e demanda metafísica ou espiritual é importante e que sabermos apreciar a Beleza do mundo e dos seres harmoniza-nos muito, mas ainda assim a procura de Deus em nós, e por vivência interior, é bem importante senão mesmo essencial, sabendo-se ainda por cima que a nossa passagem na Terra é breve e que o mundo psico-espiritual nos aguarda com mais ou menos luz, algo que Antero por mais de uma vez referiu, nomeadamente com os sonetos em que fala dos seus mortos.
Este poema de Leonard Downes, traduzido por mim e acompanhado das imagens e destas considerações rápidas, constitui apenas um contributo para sondarmos  a nossa demanda na vida, o que estamos a valorizar mais, o que devemos agradecer e cultivar melhor...
Ou ainda, se estamos a trabalhar bem, vencendo as melancolias e indecisões, e dando algum tempo à invocação do que da Divindade podemos conhecer e receber, adorar e amar e, logo, no Logos ou Corpo místico da Humanidade (ou, como se diz modernamente, Campo unificado de energia informação), comungar, irradiar e partilhar...
                                  LUX - AMOR - PAX 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Nascer do Sol, em Lisboa, no 12-I-2018 e nas nuvens seu fogo ardente e ensinante.

O Sol que nasce na Terra, pode ser acolhido em Portugal ou na Rússia com o mesmo amor e gratidão, que faz arder o coração. Rússia porque em Murmansk, mo Árctico, terminou a noite polar de 40 dias, com os primeiros raios de sol a serem saudados luminosamente: https://www.rt.com/news/415704-first-sunlight-in-40-days/
Um mar de fogo divino nos pode agraciar e a nossa aura ou alma purificar, intensificar
Sabermos recolher as nuvens e suas forças na alma e no olho espiritual, criando um cenário ou ambiente propício, na meditação posterior, à abertura aos mundo espirituais e à Divindade...
Ventos e vias, rios e canais, vermelhos ardentes e azuis calmantes e infinitizantes...
Comunicações afectivas entre terras, seres, mundos... Abrir as janelas e os braços..
Labaredas do Amor Divino espelhadas nas nuvens e a nós se transmitindo: Theos...
Olá, parece dizer-nos um ser flamejante...
                                                                                                                             
Danças e irradiações de braços abertos no céu...

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Luso-Nipónica, 1ª. "Ichi-go ichi-e", "Um momento, um encontro". 1-I-2018...

Ichi-go ichi-e é uma expressão típica japonesa, significando literalmente "um momento, um encontro". Ou seja, um momento, oportunidade, encontro único na nossa vida. O que acontece, pela sua singularidade impressiva ou unitiva, uma vez na vida, ou raramente...
 Algo de inesperado, de extraordinário, seja um fenómeno da natureza, um animal que se aproxima, uma queda de água purificante, uma pessoa muito valiosa que se  cruza connosco por uns minutos...
Um encontro por vezes há muito se talhando no invisível, e sem se sabe o que vai resultar, mas eis que subitamente se revela oiro sobre azul, graça sobre graça. 
  É sem dúvida uma expressão típica e famosa da tradição japonesa, que recebeu boas contextualizações, nomeadamente de pensadores e filósofos japoneses, tais como as do famoso monge zen e mestre do chá Sen no Rikyū (1522-1591) ao escrever acerca da impermanência da vida mas que alberga a especificidade única de cada momento e ambiente e, portanto, da atenção amorosa e simplicidade sábia que nela devemos fazer brilhar. 
 E se podemos entender no sentido de estarmos preparados, unificados e transparentes para uma vivência e apreciação plena dum momento e encontro, "o aqui e agora", ou o "é a Hora" da Tradição Espiritual Portuguesa, também a podemos assumir retrospectivamente, quando um determinado encontro foi sentido como um momento ou  acontecimento extraordinário, único, que nunca mais se repetirá pela sua qualidade e importância, pelo que deve ser  relembrado, cultivado, numa arte anamnésica mais do que saudosa, geradora de efeitos luminosos perenes para os intervenientes.
 Muitos outros sentidos e ensinamentos se podem encontrar e apreciar nesta frase e um dos que me parece valioso é o da valorização plena do nosso estado de vida, da nossa capacidade consciencial de criar ou acolher encontros, certamente impermanentes, mutáveis, de diversos valores e sabores, mas de qualquer modo possíveis, escolhíveis, importantes ou mesmo decisivos e, quem sabe, se tornar-se-ão ichi-go ichi-e...
  Estarmos conscientes de ichi-go ichi-e é como  levares   a  tua vida,  alma, aura, com tudo o que fizeste, sentiste e sentes em peregrinação ao cimo da montanha, onde paramos e nos encontramos com algo ou alguém, num momento transformador que não se repetirá e que deve ser vivido com frescura e pureza, plena atenção e entrega, agilidade e iluminação.
É a celebração da criatividade da vida e dos seus encontros, o apelo quase imperioso de não nos deixarmos limitar por comodismos nem atar por instintos nem alienar por preconceitos, e sairmos do estado passivo, parado e solitário para o movimento, o encontro, a abertura de todos os sentidos ao presente abrangente, profundo.
Movimento para a luz, para a harmonia, o  necessário e justo quando temos de entrar nas sombras e dores para aí levarmos claridade, ou nos embates e confrontos para os vencermos, harmonizarmos.
                        
Movimento para encontros seja com nós próprios, e os estados superiores do ser, seja com os outros, na infinita e maravilhosa Natureza e Cosmos em que estamos todos envolvidos, e seja na acção seja na meditação; assim, encontros de ideias e imagens, de formas e sons, de perfumes e alimentos, de livrarias e seus seres e livros, de locais e santuários, de árvores e penedos, das nuvens e dos astros e, sobretudo, de pessoas e de seres subtis que saberemos acolher e amar ou venerar harmoniosamente.
  Ici-go ichi-e. Uma vez, uma oportunidade única, pode-se ainda dizer deste dito, sobretudo quando se dá ou se vai dar o primeiro encontro entre dois seres e, subitamente, duas consciências, cada uma com um passado mais ou menos valioso, se encontram e cruzam, se unem e intensificam no caminho da beleza e do amor, da criatividade e da verdade...
Não desperdiçarmos então as possibilidades de encontro com os outros seres, estarmos plenos nesse momento único, é não nos lamentarmos posteriormente do que falhámos e do que não completámos. 
                                                     
Também as partilhas e as vivências diárias com os nossos próximos se ligam a este dito, pois nunca sabemos quando tempo durará essa união, ou mesmo se algum partirá subitamente, pelo que de novo se ergue  a celebração da nossa passagem pela Terra  como uma constante graça de momentos únicos de atenção e amor acima da impermanência, insensibilidade, vulgaridade, e nesse sentido ichi-go ichi-e é um apelo à intensidade, à virtude, à excelência, ao encontro transfigurante, unindo a Terra e o Céu na Luz.
 A visão lúcida da nossa vida e dos seus grandes momentos embora durante a vida a possamos ter parcelarmente, no fim da nossa vida e já no além tê-la-emos plenamente; todavia, estarmos conscientes deste dito já diariamente auxilia-nos a estarmos mais despertos para cada movimento e encontro, para a novidade e criatividade da vida, para a riqueza espantosa de possibilidades e oportunidades que não devemos diminuir ou desperdiçar para que seja bela e vasta a abrangência e inclusão das nossas alma perenemente e no corpo místico da Humanidade a que pertencem todos os que da lei da morte se vão libertando.
E não nos esqueçamos que todos nós temos na vida alguns contributos a dar, filhos a gerar, investigações a fazer, alguns textos ou poemas a escrever, obras a criar, objectos ou afectos a dar e que alguns desses momentos ou realizações serão uma única vez na vida, serão o resultado dessa oportunidade única, assumida corajosamente e não desperdiçada…
Todos nós entramos e passamos idealistas pelos bancos da escola e as primeiras amizades mas,  mesmo durante a vida, apesar de já qualificados profissionalmente, deveremos continuar a investigar e a trabalhar sempre alguns assuntos ou linhas de força que mais nos dizem respeito, e devemos continuar a empenhar-nos em ideais e conhecimentos, causas e amizades...
Assim, continuemos investigando, criando, trabalhando, exercitando, ajudando, amando, com a atenção e a motivação justa e com a esperança, aspiração e gratidão de podermos vivenciar  mais alguns ici-go ichi-e, e deste modo melhorarmos a aura da Terra, a evolução das almas, a história da Humanidade...
Relembre-se dos ichi go ichi e vivenciados, aspire a merecer mais nas três graças da Graça Divina... 
E como hoje é 1 do I de 2108, votos de um ano pleno de ichi go ichi e, de vivências despertas e luminosas na Unidade, num mundo mais em paz justa...