Homenagem a Leonardo Coimbra no seu dia de anos...
Em 1920, no emblemático dia 10 de Junho e a fechar um recheado programa abaixo reproduzido, que empalidece o civismo e a sinceridade patriótica das comemorações de fachada dos últimos anos, Leonardo Coimbra (30-XII-1883 a 2-I-1936) discursou, no seu modo eloquente e ardente, sobre Camões e a Fisionomia Espiritual de Portugal.
A revista Águia, da qual era co-fundador, já voava alto e douradamente, com nove anos de publicação da 2ª série (1912), e afluira uma multidão ao teatro Águia de Ouro para ouvir a sua palavra flamejante e sugestiva. Quais dos seus discípulos estariam presentes (nomeadamente Sant'Anna Dionísio, com quem tanto dialoguei), que efeitos mais poderosos foram sentidos pelas pessoas e que consequências tiveram só aquele imaginal Livro dos livros Divino nos poderá dizer, mas são raros os que conseguem soletrar, intuir ou sonhar algumas linhas e imagens do que nele está ou estará registado...
Leonardo Coimbra, contava então com 37 anos mas estava já ciente da nossa incapacidade actual de revertermos o curso do Tempo no Espaço Infinito, e escreveu então um texto que cremos ser, mais do que a base arquitectónica da sua conferência, uma escultura na lava arrefecida do seu discurso.
Como quer que tenha sido a génese do texto, Leonardo Coimbra e os tipógrafos deram à luz uma bela publicação, de que houve duas edições com pequenas diferenças, em 18 ou 14 páginas bem impressas, com o corpo do texto enquadrado em três belas tarjas avermelhadas com motivos florais, escudo de Portugal e cruz da Ordem de Cristo, e que fotografámos e partilhamos na versão da Separata de Camões.
Este exemplar, consultado e reproduzido, tem a assinatura manuscrita: "A Afonso Guimarães oferece Leonardo Coimbra" e assim a mão quente dele pousou na folha e deixou na sua aura de memória alguns fótões de luz impressionada e registante...
Logo de início do discurso, ou texto, Leonardo enaltece e caracteriza os poetas, sábios e santos que são os descobridores desse continente semi-desconhecido que, vindo do Coração Divino, é conhecimento e memória e do qual nós só temos vislumbres fugazes na apressada existência tão coberta de névoa e mistério, mas que eles trazem mais à manifestação ou fixam melhor na consciência.
Há algumas frases bem profundas e belas:«O Santo é o homem do plano superior voluntariamente dado em sacrifício para que a luz divina, que o consome, guie e exalte os homens à transcendência de uma vida superior.
O Santo vive, na labareda do momento, o incêndio da eternidade».
Numa visão órfica, ou seja, valorizadora da capacidade reintegradora e psicomórfica da Palavra e do som, na linha que, por exemplo, Bocage tanto sentiu e transmitiu na sua poesia, escreve:«O Santo é o Poeta praticante, as suas canções penetram-lhe e modelam os lábios, são seres vivos caminhando, humildes e amorosos, a cuidar das chagas que, em nós, fizeram as mordeduras da Morte.»
Que extraordinária compreensão e valorização esta da Palavra, da Poesia e das canções que nos animam...
Como o tema é Camões e Portugal, poderíamos admitir que Leonardo Coimbra realçaria a capacidade de Camões sentir a ligação da terra portuguesa com planetário mar, numa ânsia de universalidade de comunicação e conhecimento e, na sua intensidade de Fiel do Amor, o seu ir além do lírico e entrar no sublime e no místico unitivo, seja o da tão iniciática ilha dos Amores seja a dos heróis, manes e santos, para depois voltar à terra ou a Portugal na justiça e na coragem que melhoram a marcha evolutiva da humanidade.
Mas não, Leonardo vai-se deixar empolgar pelas obras cuja riqueza é inesgotável nas leituras que se façam e e criacionista no aumento ou crescimento gerado no leitor e que «são fios subtis que prendem o homem aos planos espirituais superiores, são as flechas dardejantes do mistério apontado ao próprio coração humano.
Mas não, Leonardo vai-se deixar empolgar pelas obras cuja riqueza é inesgotável nas leituras que se façam e e criacionista no aumento ou crescimento gerado no leitor e que «são fios subtis que prendem o homem aos planos espirituais superiores, são as flechas dardejantes do mistério apontado ao próprio coração humano.
É neste sentido que há livros revelados e só legíveis na iluminação da própria luz espiritual que os embebe.
É, neste sentido, que existem bíblias: vivas línguas de fogo, acrisolando o pensamento humano.
A Divina Comédia, D. Quixote, os Evangelhos: outras tantas línguas de fogo ligando a terra com o firmamento».
Leonardo intui e descreve aqui bem a essência e aura, possívelmente até divina, dos livros em geral e não só os religiosos: pode ter havido uma grande descida de Luz no seu autor a qual foi passada pelas palavras. Ou pode apenas desencadeá-la pela sublimidade do tema e
Que ensinamento: o nosso nível angélicou ou de comunhão com o Anjo, alimenta-e, fundamenta-se na elevação evolutiva que conseguirmos realizar abnegadamente...
E acrescenta logo em seguida, talvez numa linha de saudade como desejo de recuperação de algo da omnisciência do Ser e Seio Divino: «No rio do tempo vão fugindo as cousas, os seres, os mundos e o homem.// O Poeta é o seu redentor.// A única redenção é o grande baptismo no divino Oceano da Memória».
Este Oceano Divino da Memória também teria muito para ser aprofundado e seria bom sabermos melhor se Leonardo referia-se a uma espécie de inconsciente colectivo, a uma Anima Mundi, a um Logos que permitisse a reminiscência e religação ao Oceano ou Seio Divino Original...
E acrescenta logo em seguida, talvez numa linha de saudade como desejo de recuperação de algo da omnisciência do Ser e Seio Divino: «No rio do tempo vão fugindo as cousas, os seres, os mundos e o homem.// O Poeta é o seu redentor.// A única redenção é o grande baptismo no divino Oceano da Memória».
Este Oceano Divino da Memória também teria muito para ser aprofundado e seria bom sabermos melhor se Leonardo referia-se a uma espécie de inconsciente colectivo, a uma Anima Mundi, a um Logos que permitisse a reminiscência e religação ao Oceano ou Seio Divino Original...
Teremos ainda de passar por uma página do discuro consagrada a Cervantes e ao D. Quixote, altamente apreciado como a Bíblia do Ideal, e onde escreve muito bem:«sob esse ponto de vista, todo o esforço para a consciência, que é a própria linha de evolução dos mundos, da vida e do homem, a ciência, a arte e a moral, é uma sedução quixotesca, é o influxo superior que uniu a alma de Cervantes às realidades espirituais transcendentes», antes de entrarmos nas referências invocadoras do génio de Camões e dos Lusíadas....
Talvez as ideias e imagens mais interessantes contidas na abordagem camoneana sejam estas: «Portugal encapela-se em ondas, a sua vida comunica-se e de praia a praia é um abraço cingindo o planeta.// A vida do planeta é convivência no infinito, a alma de Camões ligou, pelos fios invisíveis da memória, o Mar, a Pátria à vida espiritual do Universo.// As oitavas dos Lusíadas são eternos estremecimentos de Memória esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria.// O Homem pertence a vários planos de vida espiritual: é cidadão da sua pátria, membro da sua religião, parcela consciente no Universo.// E cada plano é atravessado pelo esforço do homem-consciência para a conservação e para a memória.»
Leonardo Coimbra tem uma visão do amor da Pátria muito criativa ou criacionista, divinizante mesmo e vai expô-la ou partilhá-la em frases sem dúvida ainda hoje fazendo muito sentido na luta pela diminuição do egoísmo e a melhoria do mundo: «Se o Universo desde o Sábio ao Poeta (e sem que prejulgue o problema do Mal) é convívio, a consciência do homem há-de procurar as relações cósmicas na companhia das consciências mais próximas.
Eis porque o homem, consciência no Infinito, é cidadão na sua Pátria e une a sua voz à voz de seus irmãos para erguer em coro a própria voz da Pátria. E como as almas só crescem pelo sacrifício dos desejos de separatividade que as forças da Morte nelas insinuaram, o amor da Pátria é a primeira e a mais concreta experiência religiosa das almas».
Talvez nos nossos dias este amor da Pátria como experiência religiosa ainda consiga brotar dos diálogos com os pais e professores e dos manuais escolares ou do conteúdo dos computadores para algumas almas infantes, mas receamos que tal esteja a diminuir progressivamente, até por instruções da direcção da União Europeia, escravizada à oligarquia transhumanista-infrahumanista, e a Pátria seja sobretudo sentida à volta do futebol ou de competições internacionais.
Para Leonardo Coimbra era diferente:«O Amor da Pátria será o amor dos homens e das coisas [provavelmente as pedras, as árvores (tão destruídas na actualidade camarária) e os monumentos], encerrando-se em eterno e renovado amor de Deus».
E passa então a expor a qualidade e a unidade viva dos Lusíadas, começando com uma tirada bem forte a um lugar- comum dos comentadores da obra: «A crítica mais ou menos boticária entreviu nos Lusíadas uma mistura de maravilhoso pagão e do maravilhoso cristão.// É tempo de acabar com tanta incompreensão da obra, de dizer bem alto que uma obra de arte é um ser vivo, uma viva consciência salvando para a Memória o fluxo que transita. Jamais será a mistura de morte e quimeras»...
Destaquemos este grito de Leonardo: «uma obra de arte é um ser vivo» e deixemo-lo ecoar e brotar mais em nós, sentindo tal tanto num cristal de quartzo e num carvalho do Gerês, ou nos Painéis de Nuno Gonçalves e no pórtico sul dos Jerónimos, como no ser com quem trabalhamos ou convivemos fazendo da sua vida a sua obra de arte ou de religação ao Todo.
Passando depois a valorizar as religiões antigas, a harmonia da vida e da clarividência de então com a Natureza e com os seus seres subtis, dirá: «o simbolismo pagão é a grande concepção estética da Natureza e da Vida. As contradições entre o homem e a natureza resumem-se ainda às relações de silêncio e convívio, que o homem encontra e harmoniza na quase tangibilidade dos deuses mal escondidos ainda no seio de uma natureza amiga».
E prossegue com uma descrição repleta de belas expressões (tão fortemente sentimentais no seu poema de amor Adoração), hoje bem invulgares: «O murmúrio da floresta é quase o sopro, repousado e possante, duma respiração imensa; a tremulina de luz, que percorre o ribeiro quando um ruído se ergue do estremecimento do canavial é o próprio corpo da frescura a caminhar; o bulício das selvas multiplicando e fecundando a vida é a própria Vida espalhada e vagabunda juntando-se para crescer; o silêncio pontiluzente, meditativo e severo, da Noite estrelada é a própria serenidade da distância a olhar: sátiros, ninfas, hamadríadas, nereidas, faunos e deuses passeiam por entre os homens...».
Realcemos esta, tão necessária nos nossos dias, «serenidade da distância a olhar» e a presença dos subtis espíritos da natureza, bem nomeados por Leonardo Coimbra, que ao olho espiritual por vezes se desvendam e que tanto participam, com os Anjos, nas lendas e na Tradição Cultural e Espiritual Portuguesa...
E depois desta revisitação da Grécia, ainda naturalmente algo clarividente e que Fernando Pessoa ecoará na mesma época quando escreveu "Os deuses não se foram, nós é que os deixámos de ver", Leonardo concluiu, de novo na linha órfica, ou do poder mágico da Palavra proferida harmoniosa e conscientemente, falando do nível ou plano éterico por onde ela se propaga, algo bem estudado pelos Pitagóricos e a Antroposofia, da qual Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoais e Fernando Pessoa tiveram algum conhecimento: «Eis porque não há maravilhoso nem misturas de maravilhoso, há sim uma voz humana que é contemporaneamente estremecimento da alma e do ar, que fulgura, no éter interior e no éter envolvente, a mesma luminosa geometria».
Certamente que teria sido bem que Leonardo tivesse desenvolvido mais o que ele via como a "luminosa geometria", a que psicomorfismos, a que formas geométricas e ideias-imagens-forças se queria referir mais especificamente.
E será bom que nós estivéssemos mais conscientes deste nível subtil referido e demandado por Antero de Quental, quando fala do magnetismo e panpsiquismo na carta a Carlos Cirilo Machado, ou por Fernando Pessoa escrevendo como um dos graus da iniciação o conhecimento do lado etérico e divino das coisas.
Certamente que teria sido bem que Leonardo tivesse desenvolvido mais o que ele via como a "luminosa geometria", a que psicomorfismos, a que formas geométricas e ideias-imagens-forças se queria referir mais especificamente.
E será bom que nós estivéssemos mais conscientes deste nível subtil referido e demandado por Antero de Quental, quando fala do magnetismo e panpsiquismo na carta a Carlos Cirilo Machado, ou por Fernando Pessoa escrevendo como um dos graus da iniciação o conhecimento do lado etérico e divino das coisas.
E prossegue, referindo o grande amor e drama de Inês de Castro e de Pedro, o qual tão "assumido" foi pela Natureza e por Camões e que ainda hoje perdura vivo nas almas e na arte (como na da pintora Maria De Fátima Silva, com uma bela exposição sobre o tema em 2018, e que agora uma nova mostra, na galeria do ISPA, a inaugurar em 14-II-2019).
«Nos Lusíadas há alegria campesina, boninas, prados e jardins, uma natureza inocente e sem máculas; mas há também águas que são já lágrimas de amor saudoso, há montes e ervinhas que andam a aprender no peito de Inês.// E a paisagem de Coimbra ainda vive hoje a repetir essas lições; na Quinta das Lágrimas ainda hoje, da fonte correm sem descanso, ressoando em eco, os versos desta oitava:
«As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram;
E por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas em fonte transformaram:
O nome lhe puseram, que inda dura
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que fonte fresca rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome amores».
Em seguida Leonardo entra na missão do poeta, de cada país, mormente de Portugal, e sem dúvida poderemos lembrar-nos de novo de Fernando Pessoa que iniciou a sua actividade literária pública na revista Águia, de Teixeira Pascoais, Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra, já que na Mensagem esculpe ou talha também a fisionomia espiritual da Pátria, que muito amou, por diversos modos, por vezes ainda pouco reconhecidos, Fernando Pessoa, cinco anos mais novo que Leonardo e a quem escrevera um dia o seguinte passo: «eu conhecia já de sua obra-base, as grandes qualidades e os (a meu ver) alguns defeitos do seu espírito, o mais alto, porventura, porque plenamente lúcido e intelectual, que a nossa Raça hoje reveladamente possui».
O discurso ou texto de Leonardo Coimbra concentra-se depois na viagem de Vasco da Gama e os seus nautas (já que «Viajar é compreender: por ignotos rumos procurar e levar companhia aos seres e às coisas da distância, alargar, dilatar a alma para além dos horizontes, ampliando o convívio, contactando por maior superfície a grande zona do Mistério») no descobrimento do caminho marítimo para a Índia, com bastante originalidade até na interpretação do Adamastor como um Prometeu, amado e sublimado pelas ondas do mar e nos seus desejos sempre se renovando.
E termina assim o seu certamente flamejante e levitante discurso, como me contaram ser habitual alguns familiares e amigos que ainda o ouviram num ou noutro improviso relampejante:
«É a grande Viagem: o Gama ao leme, o Poeta fazendo do seu canto o próprio Oceano em que vogamos, e nós, reconciliados com Ele, em êxtase, cantando a beleza profunda e eterna das almas...
Faça cada português as suas pazes [e através também das suas Rimas] com Camões e, de novo, no Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há de sorrir...// Disse».
Pátria, Fisionomia anímica e espiritual, Tradição Espiritual Portuguesa, Arcanjo de Portugal, diremos no eco subtil a que todos somos chamados a responder e a cooperar...
Lisboa, 30-XII-2016, dia do 133º aniversário do nascimento de Leonardo Coimbra. E aperfeiçoado a 11-II-2019.
Que a Luz, o Amor e as bênçãos dos Manes e Mestres, Anjos e Arcanjos e da Divindade estejam nele e em nós!
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