Antero
de Quental, imortal poeta-filósofo ou talvez mesmo
filosófico-espiritual, foi também imortalizado em alguns jardins
lisboetas, tais como o da Estrela e o das Amoreiras.
Se no primeiro
jardim houve cerimónias públicas muito concorridas e das quais há
registos (por mais de uma vez, pois houve uma estátua antes da
actual), numa discursando até o grande pensador português Leonardo
Coimbra (que aliás consagrou ao pensamento filosófico de Antero um
livrinho da aprazível e mimosa colecção Lilás, portuense, dos
anos 20), no segundo jardim, o das Amoreiras, provavelmente nada
ficou registado nos jornais; porém chega-nos o poema bem diáfano,
que se dá muito bem com as árvores floridas ao sol ou com as folhas
caídas aos ventos outonais, ou eventualmente com um par de namorados...
Talvez
seja então oportuno comentarmos os dois tercetos ou seis versos, algo que os poemas
(e os poetas...) lidos em geral à pressa agradecem, tanto mais que a
vida amorosa ou mais sentimental do poeta, e que pode ser sempre
interpretada na linha dos Fiéis do Amor, amantes da Nossa Dona Santa
Sophia e Alma Gémea, fica-nos sempre algo fugidia, íntima, como que na
sombra ou ideal:
1º
verso: «Quantas vezes, de súbito, emudeces!»
Antero
introduz-nos numa relação já prolongada ou duradoura, que é
entrecortada por momentos repentinos de silêncio, de rapto, de
emudecimento, provavelmente provenientes da alma sentir fortemente o
amor ou então sentir algo de forte, misterioso, impressionante. A
escolha do emudecer pode não ter sido por mera rima e remete para
um ambiente misterioso, talvez com leve apreensão.
2º:«Não
sei que luz em teu olhar flutua.»
Antero
introduz-nos na dimensão luminosa do olhar, pois cada olhar
irradia uma certa luz conforme o estado anímico e mental da pessoa.
Não nos diz que a luz sai dos olhos, ao modo dos raios, os quais outrora
se consideravam tanto bênçãos como maus olhados, mas mais modesta e
candidamente confessa a sua dúvida quanto à linguagem ou mensagem
que os olhos exprimem nesses momentos: Como se pensasse: «Além das
várias luzes em que eu consigo ver ou adivinhar o seu sentido,
pensamento ou intencionalidade, outras há que me escapam, tal como a que flutua no teu olhar, e que nos faz ondular ou pairar
nela».
Há
aqui uma atmosfera de subtil levitação por uma intuição
misteriosa, muda, indefinível, indizível, mística. Poderemos pensar ou pressentir que é a Luz do Amor, a Luz do Espírito, já que realmente ela toma conta dos olhos bem intensa e beatificamente por vezes...
3º verso:«Sinto-te
tremer a mão e empalideces.»
Talvez
na linha de Edgar Allan Poe, Antero parece afunilar o estado psíquico
dos dois, ainda em suspense, para uma entrada maior do inconsciente
em acção, involuntariamente, ao registar a tremura corporal e o
embranquecer da face da amada.
Certamente
que este tremer da mão tanto pode ser um frémito de desejo, como
uma maior corrente vibratória passando pelas mãos dos dois, algo
que ainda não se nos tinha desvendado neste momento de maior
intimidade e unidade entre os dois amantes ou namorados, embora a Luz misteriosa o possa anunciar. Mas também
pode ser de receio, já que a ele se junta o fenómeno do empalidecer
e não tanto o amoroso ruborescer, embora a brancura pela sacralidade
do sentimento vivido ou de um certo pudor poder acontecer.
Ora
num poeta que sondou tanto a Morte, que a considerou tantas vezes a
sua amiga libertadora, estas linhas podem levar-nos a pensar que o
poeta pressentia a figura da Morte, que tantas vezes imaginou e
poetisou, como que sobre o par, sobre a amada, influenciando até
esta, como que querendo roubar Antero à simples relação humana ou mesmo à Amada ideal, pois estaria mais reservado para o Divino, as
Ideias e Ideais, ou até no seu caso particular, para a Morte ,libertadora mas
do Amor terreno ceifadora.
Este
estremecer e empalidecer é certamente o momento determinante do 1º terceto e acto do poema: um sentimento ou intuição subtil, misterioso,
insondável somatiza-se, causa um estremecimento, em si mesmo
ambivalente (tanto mais que é até desejado o tremor, como sinal de
sensibilidade amorosa em alguns contos tradicionais), e um
fragilizante ou mesmo dramático empalidecer. Como será que Antero
vai avançar, que linhas subtis moverão a sua pena (e assim era na
altura...) de escritor, de inspirado, de filósofo, de vate?
4º verso: «O vento e o mar murmuram orações».
Subitamente
Antero cosmiciza o ambiente e a relação e embora subtilmente,
pois apenas murmuram, o vento e o mar tornam-se presentes e fazem com
que pensemos ou imaginemos como e onde estarão Antero e a Amada.
Muito provavelemente junto ao mar. A andar, sentados, de pé, parados, contemplando as longuras e horizontes, ou mesmo recostados a
algum penedo das costas de Vila do Conde?
Impossível
sabermos mas o que se torna evidente é a qualidade profunda e
amorosa que sentem intensificada por essa subtil capacidade tão
querida de Antero e que é a Voz da Consciência, cuja audição ele
tanto praticava e recomendava aos seus amigos.
Aqui
ela surge na sua contraparte da Voz do Silêncio da Natureza, que
murmura no vento e no mar. Terá o açoriano Antero do Quental em
jovem alguma vez pegado numa concha e tentado ouvir, nas
reverberações tão geometricamente perfeitas do enrolamento em
espiral, segundo o número de ouro e a progressão de Fibonaci, o som
do Mar? E que orações se lhe afeiçoaram nas hélices da sua alma e
nos tímpanos da sua memória que agora, de mão dada com a amada, ao
de cima vieram? Que campo psico-morfico poderoso criavam os dois que
trazia até si ou dialogava mesmo com as falas secretas dos elementos
da Natureza?
Que
orações, que vozes, que clamores, intuía Antero, com a amada, ou
graças a ela ou impulsionando tal nela, no vento e no mar?
Sentiriam a felicidade do amor, diriam
baixinho que o amor deles seria feliz, ou apenas exprimiam o drama do
amor e da separação, vozes impessoais mas fecundantes das grandes
correntes cósmicas que atravessam o planeta e a Humanidade? Ou ainda
seriam ou brotavam louvores gratos dos espíritos da Natureza nos cinco elementos
presentes e intensificados pelo Amor de Antero e da sua misteriosa companheira?
Que
orações seriam essas, perguntaremos nós, Antero? Que orações
acompanhavam o seu empalidecer, Amada?
Seriam
apenas sons de vogais, realçadas com o h da aspiração ou
prolongadas com a nasalização?
Seriam mantras orientais que a uma
ocidental pátria lusitana chegavam, como que vindos do longínquo
Ganges e do Oceano Índico onde, como cantara o outro grande vate
nacional Luís de Camões, os Portugueses teriam ido «abrindo o mar
profundo, em busca da grã-corrente»?
Ou seria a fala amorosa das
brisas perfumadas, tão cantadas na literatura Persa, e que Antero
conhecera, e em especial pelos poetas místicos Rumi, Hafiz, Saadi,
Attar?
A
este fundo cosmicizante, Antero acrescenta no verso seguinte a
humildade da terra, o conúbio do céu e da terra, e a capacidade de
eles dois estarem abertos às imagens e mensagens das coisas e seres, como
nos diz a palavra poesia, poesis em grego, que significa ver,
contemplar, ou a palavra sânscrita rishi, poeta vidente:
5º verso: «E a poesia das coisas se insinua»
Poesia
que é assim voz, palavra, verbo, pensamento, essência e que as
almas mais sensíveis ou mais em amor conseguem receber, acolher,
sentir.
Estamos
numa teofania amorosa, em que a própria voz do universo, das
infinitas coisas nascidas e criadas vem participar na comunhão de
duas almas que se tornam um cálice para a Unidade.
Antero
então dá o mote final, como que a tenção deste belo poema
emblemático:
6º: «Lenta e amorosa nas nossas almas.»
Orfeu,
os vates da Grécia e os rishis da Índia antiga, tão
panteístas, estão presentes, pois é uma combinação da luz
flutuante, do vento e do mar murmurantes e das coisas falantes que, banhadas no Amor Divino, lenta e amorosamente vão penetrando na
alma, no par, numa Unidade.
Poderíamos
pensar até que é o vento do espírito e o mar da alma que fecundam
as coisas, seja do reino mineral seja da arte e indústria humana,
que são essas cintilações da luz unificadora dos campos das
palavras e ideias arquétipas que estão por dentro e por detrás de
tudo que, vibrando mais pela convergência de dois seres no nome de
Deus ou Amor e que o tornam presente, fazem manifestar ou desvendam a
Omnipresença do Logos ou Sabedoria-Amor divinos.
Antero
e a Amada, neste momento único, icchi go icchi e, como diz a
Tradição Espiritual Japonesa, provavelmente fundiram-se num abraço
ou num beijo, ou no que seja, cósmica e amorosamente, divinamente.
Restará
dizer, para assentarmos os corpo e almas que este poema de Antero do
Quental está inscrito num banco de pedra, que não o de madeira da
Mors, da ilha de S. Miguel, vencendo o Amor da vida, e onde por vezes provavelmente alguns namorados (anterianos ou não...) querendo sentir e acolher
mais a graça do inflúvio da Alma do Mundo e do Amor, que não ainda
da Morte, se sentam, dialogam, meditam e depois de mãos dados, em
abraço ou beijo, lenta e amorosamente comungam com o Amor Divino, de
tais actos se evolando belas energias e imagens para Antero, para quem ele mais amou e para a
Alma e Amor de Portugal e do Mundo...
Sentemos, assentemos, amemos, na Poesis... |
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