«Na mão de Deus
(À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O[liveira] M[artins].)
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!»
A escolha de se concluir a edição dos Sonetos Completos, de Antero de Quental, com um soneto que não é dos finais, mas sim escrito em 1882, deve ter obedecido a um intuito moralizador ou mesmo catolicizante, fazendo mais explicitamente terminar a bem, ou na entrega a Deus, o atribulado percurso filosófico, poético, religioso e anímico de Antero de Quental, muito espelhado e transmitido neste livro, ordenado cronologicamente de 1860 a 1884. Pode ter sido uma decisão de Antero, ou mais provavelmente conjunta com Oliveira Martins, já que este foi o co-organizador e prefaciador.
Neste poema, profundo e complexo, certamente bastante auto-biográfico, vemos o autor renunciar aos movimentos anímicos antigos, considerados agora como infantis, ilusórios, passionais, e entregar-se definitivamente a Deus, através do coração, símbolo da sua afectividade e alma, a quem ele "ordena" ou sugere que vá dormir na mão direita, a benéfica ou misericordiosa de Deus, segundo a simbologia tradicional de muitos povos, nomeadamente os gregos e romanos, e numa visão humana ou antropomórfica da Divindade. Mas que Antero de Quental logo que redigiu o soneto explicou em cartas para os amigos que, por serem menos religiosos poderiam ficar mais surpreendidos, a palavra Deus era apenas "um símbolo de uma coisa". Veremos que a coisificação (para usar a linguagem de Leonardo Coimbra, autor dum valioso estudo sobre Antero) do Ser Divino ou da Fonte Primordial, ou talvez mais em Antero o Absoluto, numa segunda carta a um poeta religioso, João de Deus, no qual aponta as razões da sua génese, e se alegra por escrever um soneto que para João de Deus não é só perfeito na forma mas também já na ideia religiosa, e faz por fim uma auto-crítica salutar.
Na primeira carta enviada a Alberto Sampaio, provavelmente em Maio de 1882, diz:«Fiz, depois que aqui estiveste, mais um Soneto, que aqui vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro modo não caberia em verso. Pura liberdade poética». Na segunda, dirigida a João de Deus, em 20 Julho de 1882, escreve: «E agora aí vai um Soneto. Será talvez o primeiro de que gostes por mais de alguma coisa do que só pela forma. O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da natureza. Reconheci que andar por toda a parte proclamar, com voz lúgubre, que o mundo é vão, era ainda uma última vaidade...»
Sabemos que João de Deus apreciou bastante o soneto e o queria divulgar, pois em Novembro de 1882, Antero de Quental responde-lhe em carta, dando-lhe conselhos acerca do local onde deveria começar a sua cruzada pelos novos métodos de leitura e ensino, Vila Real, e replica: «O soneto em questão não se pode publicar porque o ofereci a uma Senhora da minha amizade [D. Vitória de Oliveira Martins], mas tão modesta e recolhida que tenho a certeza levaria a mal que eu imprimisse o nome, e por outro lado, não o quero publicar sem aquele oferecimento, de sorte que ficará indefinidamente inédito».
Todavia, já em 1883, em 17 de Junho, envia o Na Mão de Deus a mais um amigo próximo, Joaquim de Araújo, dando outra justificação do secretismo: «Adiante transcrevo o Soneto que ofereci à D. Vitória. Em tendo vagar lhe mandarei mais algum. Nem este nem os outros são para mostrar a indiscretos. A razão deste mistério não é um capricho de misantropo; é que eu tenho projectado publicar mais tarde, quando de todo se me tiver esgotado a veia do Soneto, que já declina sensivelmente, a colecção dos meus Sonetos Completos. Como quero que o livreco leve alguma coisa inédita, resolvi não publicar nem deixar
publicar quanto tenho feito nestes últimos tempos».
Ora no soneto, apesar do seu carácter de crença e de paz, há ideias-imagens algo passivas e derrotistas. Por exemplo, a recomendação para a alma adormecer e dormir não pareceria muito de Antero de Quental, um ser com uma aspiração muito forte à Verdade, embora com um dinamismo sujeito a alternâncias, nomeadamente após a sua doença. Contudo, o desgaste do sistema nervoso, o cansaço da busca metafísica, a desilusão sentimental e social e até uma certa abertura maior a uma crença num Ser Eterno, poderiam gerar a vontade de se entregar ao adormecimento ou descanso na mão divina, ou seja, na paz de Deus. E será que algo deste soneto lhe passou pela alma, na hora insatisfeita, ou então plenamente desprendida, em que se suicidará anos mais tarde, em 1891, na sua ilha natal de S. Miguel? Mistério grande...
Talvez possamos compreender melhor o soneto se considerarmos Antero como que a pensar e a dizer: «- Eu já não tenho um coração iludido, mas sim como ser espiritual que sou, liberto dos palácios da ilusão, digo ao coração, algo criança ingénua e fatigada da caminhada, dorme em Deus, descansa.»
Certamente poderemos ainda conjecturar, que poderia ser apenas por algum tempo, a fim de se recompor, e não numa ideia de descanso eterno a que este poema pode remeter, pela associação com a terminologia da visão católica da morte e do além, tão frequentemente usada nas orações ou missas pelos que morrem: "Descansai em paz, adormecei no Senhor", quando o que se deveria recomendar, pelo menos para muitos casos, seria: - "- Despertem, avancem para o mundo espiritual e para a Divindade, imanente e transcendente".
Realcemos que no começo do soneto foi empregue uma expressão verbal do passado: "descansou" e que no fim está um presente imperativo, pois é dito ao coração: "dorme", e assim no princípio há já todo um passado, abrindo-nos para a ideia da vivência árdua trilhada interiormente por Antero de Quental, e nesse sentido ele emprega até uma imagem muito real e tradicional, a da escada que liga os mundos, os níveis, as idades, com certa originalidade no chamar-lhe estreita, e percorrida só no sentido descendente: "- Desci passo a passo a escada estreita". o que nos remete para observarmos a descrição da sua vida, a partir de dado momento de maturidade, como uma descida ou diminuição das grandes esperanças e capacidades, das quais nomeia o Ideal e a Paixão, que sintetizam de certo modo as suas capacidades intelectuais e afectivas, para o humilde recolher-se e entregar-se a Deus...
Se a palavra "Ideal" está perfeitamente de acordo com a filosofia e o ambiente cultural e revolucionário da época, e nela ressoam implicitamente muitos escritores e filósofos com os quais dialogou nas leituras e conversas com os amigos (embora só se tenha encontrado, anónima e humildemente, com Jules Michelet, em Paris), já a "Paixão" é menos esperada.
Poderíamos pensar na palavra e conceito, sentimento e realidade do "Amor", mas Antero de Quental preferiu por certas razões escolher a "Paixão" e não vamos pensar que as escolhas foram apenas por questões de rimas, ainda que possam em certos casos terem sido os sinónimos encontrados mais próximos.
Se fosse o Amor intenso, talvez absolutizante, divinizante, tal como o de Dante por Beatriz (humana e simbólica), então Antero de Quental se inseriria plenamente nos Fiéis do Amor. Mas das paixões, sobretudo amorosas, de Antero ficaram conhecidas, dada a sua reserva ou pudor amoroso, apenas zonas esbatidas, íntimas, quase angélicas, juvenis: a Beatriz, uma senhora de Coimbra, e a Pepa, a Mariana Porto Carrero embora por fim, já com mais idade, vemos a baronesa Clotilde, divorciada, que estava em hidroterapias como ele nas termas de Bellevue nos arredores de Paris, e que é a sua última paixão conhecida e da qual provavelmente se gerou magnífico soneto Mors-Amor, encontro passional que Oliveira Martins, exageradamente, diz ter feito não só sofrer muito Antero como quase o levado ao suicídio.
É numa posição de humildade, de ser abaixado como o húmus da terra, que Antero de Quental se confessa perante o mistério do Universo, entregando o seu coração nas mãos da Divindade para que Nela repouse.
Entregar o coração na mão luminosa ou dourada da Divindade é o mesmo que entregar a estrela do nosso espírito na Divindade, é crer Nela e querer unir-nos a Ela, com todo o corpo, alma e espírito, dos quais o coração é como o vaso ou graal. Neste sentido o soneto é de um simbolismo universal e perene. Por fim, anote-se que este poema, como um viático ou encaminhamento de boa morte, foi ao longo tempo recitado no momento da desincarnação, seja por quem partia, seja por quem o acompanhava, em alguns seres amigos de Antero e muito recentemente pelo investigador e livreiro José Teixeira da Mota.