Antero de Quental, inspirador idealista ético-espiritual...
No jardim da Estrela, em Lisboa..
Antero de Quental, talvez o escritor português mais carismático do século XIX, ressurge de tempos a tempos das brumas do passado graças a alguns fiéis da sua alma, vida e obra, seja os que o leem e o meditam ainda hoje, seja os que o sondam e investigam, tal o embaixador José Calvet de Magalhães que, depois de publicar as biografias de Eça de Queirós e de Almeida Garrett, deu à luz o livro Antero, a Vida Angustiada dum Poeta, em 2006 pela editora Bizâncio.
Antero de Quental, nascido em 1842, a 18 de Abril, signo Carneiro, de fogo e, diz-se, do signo de impulsividade, em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, nos Açores, foi bem "um ilhéu que emigra", na expressão de Vitorino Nemésio, e a sua vida de andarilho e indisciplinado no fluir impermanente da vida foi tal que denominaram-no (e considerou-se de certo modo, embora em unidade com o helenismo) budista, não só pela sua aspiração intensa a um indefinível para além da impermanência das coisas e do ser, como também pela sua vida de génio celibatário itinerante (ainda que tivesse os seus amores), portador de sucessivas mensagens revolucionárias, na linha dos yogis indianos ou dos monges budistas, discípulos do Dhamma, da Ordem do Universo, e do Caminho do Meio realizado em sentidos libertadores por Siddhartha Gautama, o Buddha.
Talvez até porque os seus
antepassados se tinham notabilizado na religiosidade católica e no
livre-pensamento, Antero possuía energias místicas e independentes
fortes e ao desembarcar em Coimbra aos 16 anos para estudar
Direito lançou-se rapidamente em leituras das correntes ideológicas, científicas e sociais que então sulcavam as mentes mais avançadas europeias, entre as quais se destacavam as do socialismo nascente, com
Proudhon, e as do universalismo espiritual,
impulsionadas pelos estudos das religiões e pelas obras de Jules Michelet
e Edgar Quinet.
Grande parte da poesia e do drama de Antero de Quental testemunha, resulta, ou estava em
sincronia, com o embate formidável de ideias anti-conservadoras e libertadoras, ao qual se entregou com o corpo e alma muito sensíveis, desenvolvendo especulações e estudos filosóficos e éticos notáveis, consignados no fim da sua vida sinteticamente nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, e anteriormente em muitas análises culturais, sociais e políticas dispersas por publicações, jornais, revistas, e que estiveram por detrás, dentro e por cima da sua notável e bela, embora frequentemente torturada, poesia.
Contudo, o facto de terem sido destruídos por ele próprio dois escritos fundamentais acerca da sociedade, religião, metafisica e arte impedem-nos de cingir plenamente a fundura e abrangência do seu pensar, meditar, intuir e ser, ainda que certamente as suas cartas nos transmitam muito disso.
José Calvet de Magalhães soube na sua biografia recriar alguns dos mais importantes acontecimentos da vida de Antero de Quental, e vemo-lo desde Coimbra, nas suas caminhadas com botas de sete léguas e nas audaciosas participações na Sociedade do Raio, donde saiu em 1862 o Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do país, ponto final no reitor Basílio Alberto de Souza Pinto e em hábitos universitários caducos ou praxes (e que diferença para os nossos dias, onde tais anacronismos opressivo-fascizantes ainda subsistem...).
E pouco depois entrará na intensa polémica literária do Bom Senso e Bom Gosto, 1865, que o desiludirá, entrando depois na intervenção social e ir amadurecendo à custa de muita dor e desilusão, movimento e reflexão.
Todos estes aspectos exemplares da vida «do guia de uma geração» são bem descritos, numa prosa clara e directa que nos alicia invencivelmente, ou não fosse a vida de Antero de Quental uma travessia rápida e dramática do mar da existência, sempre em busca dos caminhos da Liberdade, da Justiça e da Consciência.
Diferentes interpretações
da vida e obra de Antero são inevitáveis, e ainda mais seriam se conseguíssemos entrar nos aspectos íntimos das suas motivações, impulsos e atavismos, pelo que devemos confrontar bem as diferentes visões e compreensões oferecidas e que na realidade ora nos guiam ora nos desviam da verdade, dele próprio, da sua vida e drama.
José Calvet de Magalhães crê,
por exemplo, que a vida boémia estudantil provocou uma úlcera, que
terá evoluído para o estrangulamento do piloro, causador das
digestões difíceis, que ainda mais o perturbavam pelo seu regime
espartano duma só refeição por dia. E pensa que o dr. Filomeno da
Câmara e o sábio Jaime Batalha Reis, os únicos que teriam
diagnosticado este mal, não o revelaram a Antero por a operação
ser então impossível.
Mas se pensarmos na constante busca de
verdade que animava Antero, custa-nos a crer que não o
esclarecessem sobre a causa dos seus males. Este aspecto é ainda importante pelas crises de insónia que sofria Antero, ou ainda pelos seus estados de fraqueza e nervosismo e que para muitos serão determinantes no findar abrupto da sua vida...
As relações de Antero
de Quental com algumas personalidades da época formam uma aura de grandes amizades,
nascidas na idade propícia da vida estudantil e no caso bem bafejadas, temperadas e aprofundadas em debates idealistas e acções abnegadas, com momentos até de capa e espada, com Camilo e Ramalho Ortigão (este batido em duelo), ou mesmo na inimizade com o torcido, ou algo invejoso, Teófilo Braga.
Se devemos ou não condenar como coléricas certas
atitudes ou cartas de Antero de Quental, ou se as devemos considerar antes expressões
de indignação justa, será sempre motivo de controvérsia, mas não
é evidente que o facto de pedir desculpa depois de algum acto implique uma plena culpabilidade. Diga-se porém em abono de verdade que Antero confessou por vezes em cartas ser de carácter colérico, ou seja, que se indignava fortemente com certas injustiças...
Oliveira Martins foi
um dos dialogantes mais próximos de Antero, mas isso não o impediu
de receber uma resposta negativa quando o convidou a participar num ministério
com ele. Para Calvet de Magalhães foi uma atitude bastante egoísta, mas discordamos pela simples razão que Antero lhe dá ou diz no fim da
carta: «The right man in the right place». Já noutra ocasião em que Antero de Quental se preparava para concorrer ao cargo de professor universitário foi a vez de Oliveira Martins o dissuadir fortemente, e creio eu para mal dos nossos pecados e vida de Antero...
Não nos espantaremos
porém a atitude de Antero se soubermos a conta em que tinha a generalidade dos políticos
do pobre Portugal,
tal como escrevera pouco antes a Oliveira Martins, justificando com ironia a
sua breve passagem pela capital lisboeta:«Não ouvia senão falar em roubos,
tive medo de encontrar algum ministro e ficar sem camisa»...
Contudo,
em 1890, quando já iam bem longe os ímpetos mais revolucionários, ou a
candidatura a deputado pelo idealista Partido Socialista, e se encontrava retirado, mesmo da poesia, ao rebentar a
crise ultramarina que culminou com o Ultimatum britânico, Antero
de Quental aceita assumir um cargo público, mas por delegação directa popular e fora do aparelho dos partidos e do Estado...
José Calvet de
Magalhães descreve, talvez no capítulo mais conseguido do livro, a
intrincada situação e o erguer efémero da Liga Patriótica do
Norte, da qual Luís de Magalhães, que o convidou, diz:«Era preciso que à frente
dessa Liga se pusesse uma consciência absolutamente pura e
imaculada, um grande coração generoso e heróico, um nome que a
todos inspirasse uma absoluta confiança e fosse já aureolado».
Depois de terem sido consultados os estudantes e aprovado o nome de
Antero de Quental, este veio de Vila do Conde, sendo recebido entusiasticamente
na estação de caminho de ferro da Boavista. E ao fim da tarde, com
uma multidão diante da casa onde se hospedara, conta-nos José Calvet de
Magalhães, «Antero apareceu a uma varanda, sendo recebido por uma
estrondosa salva de palmas e novos e entusiásticos vivas. Pedindo
silêncio o poeta disse algumas palavras de agradecimento,
manifestando a esperança do bom êxito da campanha de renascimento
da Pátria, em que ele agora acreditava sinceramente, em virtude do
apoio que recebia dos estudantes», e era realmente esse o propósito
que levava o venerando poeta-filósofo a entrar sem muitas ilusões
na arena pública...
Bons tempos em que os estudantes eram uma das forças mais vivas, dinâmicas, revolucionárias da Pátria...
Em 7 de Março de 1890, quando o desapoio político partidário causava o findar dessa espontânea e idealista Liga Patriótica do Norte (embora não devamos esquecer alguma influência
não só no eclodir da revolução do 31 de Janeiro de 1891 como no
futuro movimento portuense da Renascença
Portuguesa, de Leonardo Coimbra,
Pascoais, Jaime Cortesão e Augusto Casimiro), Antero de Quental redige um «manifesto em que
definia a sua posição pessoal e em que, em termos severos,
condenava os dois grandes partidos monárquicos e, igualmente, o
partido republicano, afirmando que deles nada haveria a esperar...»
Era
o velho panfletário que renascia, o Saint-Just de que falara Basílio Teles, com Luís de Magalhães, Sampaio Bruno, Jaime Magalhães Lima e o conde de Resende, os principais auxiliares da aventura patriótica nortenha.
Mas Oliveira Martins, alertado para o facto, veio de imediato para o
Norte e conseguiu convencer Antero a dar ordens de destruição dessa
obra manifesto prestes a sair, da qual não escapará um só exemplar. De trágicas consequências este conservadorismo de Oliveira Martins, poderemos ousar pensar e escrever...
Desta
intervenção de Oliveira Martins resultou um esfriamento temporário da
amizade entre eles, um aumento do pessimismo do poeta e a perda dum
documento importantíssimo, a qual, acrescentada à dos dois volumes do Programa de Trabalho para as Gerações Futuras, sacrificados no fogo em 1874 por Antero os considerar imperfeitos, deixou um vazio na evolução histórica das grandes ideias portuguesas e que terá feito alguma falta, face ao afundamento ideológico-cultural das sucessivas governações e mentalidades portuguesas...
O que diria ou proporia Antero de Quental nos nossos dias? Ambientalismo forte, melhor orçamento para educação e saúde, controle das ingerências corruptoras de corporações e meios de informação, medidas de anti-corrupção, diminuição do número de deputados, unidade nacional supra-partidária, maior independência da tão vendida e manipula direcção da União Europeia, adesão ao BRICS? Mistérios...
Tudo se conjugava então após tal desilusão para
o
regresso final à ilha-mãe açoriana e as despedidas sábias e belas emergem
imorredoiras: em Vila do Conde (onde passara os tempos mais serenos e
felizes e onde nasceram os Sonetos de maior e mais equilibrada profundidade, ainda que sempre tingidos de um certo vazio espiritual e divino) separa-se ou
despede-se de Alberto Sampaio, Jaime
de Magalhães Lima e Luís de Magalhães, interrogando este Antero se
«depois de ter habitado por tanto tempo aqueles privilegiados
lugares ia sentir muitas saudades de tanta doçura e beleza. E
Antero, em um daqueles sorrisos mágicos do seu cintilante humorismo,
que tanto nos confundia o entendimento como nos alvoraçava a
hilaridade, de pronto me respondeu: Não!…Não! Porque em virtude
dos meus princípios filosóficos resolvi não ter saudades de coisa
nenhuma!».
Este estado de desprendimento e vivência numa perenidade espiritual sem apêgos ao passado, sem saudades de nada, é de facto uma característica dos nobres viajantes, cavaleiros do amor ou peregrinos da verdade...
E em Lisboa, uns dias antes de partir, em conversa com o
seu amigo e condiscípulo Guilherme de Vasconcellos Abreu, estudante e mais tarde professor de sânscrito,
este passa-lhe uma frase do fabulário de instrução moral, o
Hitopadexa, que considerava apropriado aos Sonetos:
«Tudo estudou, aprendeu tudo e tudo executou, quem voltou as costas
à esperança e se ampara descansado em nada esperar», a qual Antero
regista num papel, talvez vaticinando o encaminhar-se para o banco de jardim sob a
palavra "Esperança", onde uns meses depois, já em S. Miguel,
repentinamente e devido ao desgosto de ter de se separar das filhas
adoptivas, ou porque os seus nervos não conservaram o estoicismo que
desejava e pensava, ou porque sentira que chegara ao fim a sua
peregrinação neste vale de sofrimento e ignorância, terminou
voluntariamente a sua passagem e demanda no labirinto terreno...
Poder-se-ia pensar que após a publicação do In Memoriam, de 1896, da biografia de José Bruno Carreiro, e da edição das Cartas, por Ana Maria Almeida Martins, e de tantos estudos como os de Leonardo Coimbra, Sant’Anna Dionísio, Joaquim de Carvalho, Manuel da Câmara, Fidelino de Figueiredo, António Salgado Júnior, José Régio, Pina Martins, Eduíno de Jesus, Eduardo Lourenço, José Esteves Pereira, Leonel Ribeiro dos Santos, etc. etc, não mais, não mais haveria a dizer, mas de facto cada nova geração tem a obrigação de revisitar os seus maiores e aprofundá-los com as luzes suas e, assim, esta obra de José Calvet de Magalhães, ainda que não indo tão fundo como mereceria nos aspectos mais íntimos de uma biografia, ou nos filosóficos e metafísicos (tal como se observa no capítulo intitulado Tendências Gerais da Filosofia), vale não só por clarificar aspectos da conimbricense e secreta Sociedade do Raio (embora não refira a menos conhecida Ordem dos Mateiros), das estadias em França, do Grupo dos Cinco, das amizades e inimizades e da lenda da santidade (excelentemente pintada no "Um génio que era um Santo", no In Memoriam de Antero de Quental, por Eça de Queirós), como também por conter um capítulo muito bom acerca das relações internacionais na crise Ultramarina e da famigerada Liga Patriótica do Norte.
E, finalmente, esta obra de Calvet Magalhães vale, por nos permitir reviver, numa estruturação fluída, um itinerário único e sempre actual de beleza, sinceridade e ardente demanda da verdade, num corpo a corpo com a morte que a todos espera, mas a qual, para quem bem viveu, "é mais rutilante na sua noite, que a luz do dia" (e assim esperemos transfigurá-la), e sobretudo para quem no Caminho conseguir persistir no sondar dessa tão difícil de ser escutada (pois há que cultivá-la da meditação) voz da Consciência ou talvez melhor do Espírito, do Mestre ou Deus interior, a qual como Antero nos segreda:
"Só no meu coração que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!"