terça-feira, 6 de julho de 2021

Dia da libertação terrena de Thomas More, 6-VII-1535. Biografia, com contributo de Fernando de Mello Moser.

                                                                

O humanista Tomás More, que fora o Chanceler do Reino, é decapitado neste dia 6 de Julho, de 1535, junto à Torre de Londres, após um ano e pouco de prisão (frutuoso em escritos religiosos e confessionais),  por recusar-se a aprovar que o "monstruoso" rei Henrique VIII (1491-1547) se tornasse o chefe da igreja Católica em Inglaterra, separando-a da obediência a Roma. Nascido em Londres em 7-II-1475 (um ano antes da introdução da tipografia por William Caxton),  de um advogado e depois juiz, segundo de seis filhos, estagiou como pajem do Arcebispo de Cantuária e Chanceler do Reino, John Norton, um pré-humanista, "homem mais venerado pelo seu carácter e virtude de que pelas suas altas dignidades" (Utopia), que muito o apreciou e o mandou estudar em Oxónia (Oxford), onde esteve de 1492 a 1494, sendo aluno de dois dos primeiros humanistas ingleses, Thomas Linacre (com quem Erasmo também aperfeiçoará o grego) e William Grocyn (que com John Colet tinham recebido a tocha do humanismo e dos estudos clássicos em Itália), e passando a dominar o latim e o grego. O seu pai insistiu para que que estudasse no Lincolon's Inn em Londres, uma universidade mais avançada, o que ele fez.

Em 1499, Desidério Erasmo de Roterdão no começo de um Verão de sonho vai pela 1ª vez a Inglaterra como pedagogo particular do William Blount, Lord de Montjoy, e encanta-se com os principais humanistas da época (e não só pois também elogiará as mulheres), e numa carta de 5-XII-1499 para John Fisher conta: «Quando ouço Colet, parece-me estar a ouvir o próprio Platão. Quem é que não admira, em Grocyn o saber completo? Que pode haver de mais agudo, profundo e delicado que o juízo de Linacre? Será que  natureza alguma vez criou algo de tão suave, afável e feliz como o génio de Thomas More?»

Em 1504 Thomas More foi eleito para o Parlamento e em 1505 casa-se com Jane Colt de quem teve quatro filhos, educados excelentemente, destacando-se o mais novo John, que traduziu o nosso sábio de então Damião de Goes, e a mais velha Margaret, que traduziu do latim para inglês a obra Precatio Dominica de Erasmo, A Devout Treatise upon the Pater noster, tendo-lhe Erasmo dedicado o Comentário do poema cristão de Prudêncio, em 1523.

Thomas More sempre foi muito religioso, tendo frequentado a Cartuxa e ao longo da vida as cerimónias e práticas religiosas. Foi um defensor fogoso da religião católica apostólica romano refutando directamente as obras dos principais protestantes da época, tal Lutero, Simon Fish e William Tyndale, e  em geral, em 1529, com o Diálogo sobre as Heresias. Já no ano e meio de prisão escreveu, ao modo do nosso Frei Tomé de Jesus, um dos desgraçados da aventura de Alcácer Quibir, com o seu Trabalhos de Jesus, o Diálogo de Conforto na Tribulação. Foi também um admirador de Pico della Mirandola, de quem traduziu para inglês a sua biografia realizada pelo sobrinho, a qual continha um antologia de extractos mais valiosos da sua obra e traduziu para inglês algumas regras de Amor religioso ensinadas por Pico. Traduziu ainda as obras de ironia e crítica social de Luciano de Samostata, as Sátiras, do grego para latim, com a ajuda de Erasmo numa das cinco vezes em que este esteve em Inglaterra e se hospedou em sua casa e se encantou com a sua família e ambiente, tanto mais que o imortal Elogio da Loucura foi redigido, em 1509, na casa londrina de Bucklersbury, e a Thomas More dedicado.

                                    

A ascensão de Thomas More em cargos públicos foi rápida, passando de diplomata e negociador na Flandres, onde escreve a Utopia, em 1516, a Undersheriff de Londres e depois a Speaker da Câmara dos Comuns em 1523, High Steward da Universidade de Oxford em 1524, chanceler do ducado de Lancaster em 1525 e por fim Chanceler do Reino. Todavia, em 16 de Maio de 1532 preferiu manter-se fiel à sua consciência do que sobreviver à custa da aprovação do que considerava errado, a separação da Igreja em Inglaterra da Igreja Católica Apostólica Romana, e a perseguição dos católicos, pelo que enunciou ao cargo, sendo substituído pelo famigerado Thomas Cromwell. E também não quis participar na cerimónia da coroação de Ana Bolena, a 2ª mulher de Henrique VIII, nem apoiar a Lei de Sucessão, contra a 1ª mulher, Catarina de Aragão, com quem vivera 24 anos. Ana Bolena será executada em 1536, tal como a quinta, Catarina Howard, em 1542. Anote-se ainda no palmarés de Henrique VIII o mandar destruir todos os santuários dedicados a santos em 1540, e acabar os mosteiros católicos que ainda restavam em 1542. Morrerá obeso e necessitando de uma cadeira de rodas para se movimentar em 1547.

 Voltemos à morte de Tomás More e oiçamos Fernando de Mello Moser narrá-lo na sua valiosa obra Tomás More e os Caminhos da Perfeição Humana, 1982: «Mais tarde, permaneceria ausente da cerimónia da coroação de Ana Bolema e recusaria assinar a aceitar  a Lei da Sucessão, alegando motivos de consciência e invocando, como jurista, que o seu silêncio quanto à exacta natureza desses motivos não podia ser interpretado como rejeição de qualquer título do do soberano - o que, de acordo com legislação recente, significaria um acto de alta traição. Foi preciso um depoimento, mais do que suspeito, de Richard Rich, colaborador de Thomas Cromwell em rápida ascensão política, para que pudesse ser finalmente condenado ao suplício, fazendo então a sua declaração formal sobre a sua posição e sobre o verdadeiro motivo que fora executado.  Henrique VIII comutou a pena em simples decapitação, e esta realizou-se em Tower Hill, próximo da Torre de Londres, no dia 6 de Julho de 1535. Segundo a folha volante que circulou em Paris, relatando as circunstâncias da sua morte, as suas últimas palavras foram: "Morro servidor fiel do rei, mas de Deus em primeiro lugar"».

No século XX e XXI Germain Marc'Hadour (bem acompanhado por André Prévost) foi um dos melhores estudiosos de Thomas More  e particularmente da sua alma religiosa, tendo-lhe consagrado uma revista Moreana, internacional e de bom nível, onde Pina Martins e Fernando de Mello Moser colaboraram, referindo-o este no seu valioso e último trabalho publicado, Ars Moriendi, Ars Vivendi: Reflexões sobre a Cultura do Renascimento em Inglaterra, Coimbra, 1983, no qual Tomás More é bem abordado quanto à sua têmpera e preparação em vida para a morte. Já postumamente, em 2004, a Fundação Calouste Gulbenkian editou a Dilecta Britannia, Estudos de Cultura Inglesa, com muitas páginas consagradas a Thomas More e Shakespeare

Na sua obra mais importante e perene, a Utopia (1ª edição em Lovaina, 1516),  geradora de tanta reflexão e livro, são transmitidos os ideais duma sociedade mais equitativa, sábia e não-violenta (embora admitindo a guerra para se adquirirem terras trabalháveis desaproveitadas...), na qual o dinheiro não existe nem a propriedade privada, o ouro é desvalorizado, todos trabalhando e recebendo o que precisam, e onde, como bem sintetiza Fernando de Mello Moser, «a legislação estabelecida por Utopos reconhecia a liberdade em matéria religiosa, excepto no tocante à crença na imortalidade da alma e na subordinação do mundo a um providência divina, sendo a heterodoxia nestes dois pontos tido como grave degradação, relativamente à dignidade da natureza humana», aspectos que infelizmente por diversas circunstância deixaram de predominar nas sociedades, dando azo a que uma série de megalómanos milionários e grupos financeiros e ideológicos negativos estejam a dominar e a enfraquecer tanto a Humanidade como o Humanismo, afunilando as sociedade e países para distopias...

Quem dialoga com Utopos ou Tomás More é um português, provavelmente  numa homenagem à gesta dos Descobrimentos, e apresenta-o assim: «Rafael  Hitlodeu (este é o seu nome de família) conhece bastante o latim e sabe o grego na perfeição. Como se dedicou predominantemente à filosofia, cultivou a língua de Atenas mais que a de Roma. Eis porque, em questões de certa importância, vos citará apenas passos de Séneca e de Cícero. Nasceu em Portugal. Ainda novo, renunciou à fortuna paterna para os irmãos e levado pela intensa paixão de conhecer mundo, ligou-se a Américo Vespúcio e seguiu-lhe a sorte. Nem por um instante abandonou este grande navegador em três das suas quatro últimas viagens, cuja narrativa é hoje feita em tantos livros... Sem a protecção divina, o seu temperamento sedento de aventuras ter-lhe-ia sido fatal. Seja como for, depois de Vespúcio partir, Rafael [nome do navio de Vasco da Gama, na descoberta da rota para a Índia]   percorreu com cinco castelhanos múltiplas regiões, desembarcou como que por milagre em Ceilão, e dali seguiu para Calecut, onde um navio português, contra todas as esperanças, o reconduziu ao seu país». 

Anote-se  que em 2006, saiu a primeira tradução   realizada directamente do latim da Utopia, por iniciativa de José Vitorino de Pina Martins. que prefacia a notável tradução do prof. Aires Augusto Nascimento, publicada  pela Fundação Calouste Gulbenkian, hoje já numa significativa terceira impressão bem merecida...

John Fischer (1469-1535), bispo de Rochester, que fora o protector de Erasmo durante a sua estadia de dois anos (1512-1513) em Cambdrige, pois era Chanceler da Universidade, decapitado também uns dias  antes, em 22-VI (pouco depois de ter sido elevado a cardeal, por raiva do rei), John Colet (1467-1519), da catedral de S. Paulo em Londres e Thomas More representam o humanismo mais puro de Inglaterra, nunca mais atingido. 

E se entre nós na época quinhentista João de Barros o elogiou, serão já no séc. XX José V. de Pina Martins e Fernando de Melo Moser os que mais amaram, trabalharam e divulgaram em exposições e conferências Thomas More, tendo publicado várias obras  que apelam à  leitura e aprofundamento, tanto mais que as opressões à liberdade do pensamento, da informação e da consciência são cada vez mais insidiosas e manipuladoras. 

Que o exemplo e as energias e bênçãos de todos estes humanistas nos inspirem, pois pelo campo unificado de energia consciência informação que nos une a todos, outrora chamado alma mundi ou ainda corpo místico da Igreja, todos estes seres estão bem despertos e luminosos nos mundos subtis e espirituais, dando-se mesmo o caso de Thomas More John Fisher terem sido beatificados em 1886 por Leão XIII e canonizados  como santos mártires  em  1935 pelo papa Pio IX. Anote-se, e diz-nos Mello Moser,  que «na década de vinte por ordem de Lenine, o nome de Tomás More foi inscrito no  obelisco da Liberdade na Praça Vermelha».  Finalmente, em 2000 o papa João Paulo II elegeu Thomas More como patrono celestial do governantes e advogados, seres que bem precisavam de se abrir ao seu génio e equidade corajosa.

                          

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