terça-feira, 6 de julho de 2021

Dia da libertação terrena de Thomas More, 6-VII-1535. Biografia, com contributo de Fernando de Mello Moser.

                                                                

O humanista Tomás More, que fora o Chanceler do Reino, é decapitado neste dia 6 de Julho, de 1535, junto à Torre de Londres, após um ano e pouco de prisão (frutuoso em escritos religiosos e confessionais),  por recusar-se a aprovar que o "monstruoso" rei Henrique VIII (1491-1547) se tornasse o chefe da igreja Católica em Inglaterra, separando-a da obediência a Roma. Nascido em Londres em 7-II-1475 (um ano antes da introdução da tipografia por William Caxton),  de um advogado e depois juiz, segundo de seis filhos, estagiou como pajem do Arcebispo de Cantuária e Chanceler do Reino, John Norton, um pré-humanista, "homem mais venerado pelo seu carácter e virtude de que pelas suas altas dignidades" (Utopia), que muito o apreciou e o mandou estudar em Oxónia (Oxford), onde esteve de 1492 a 1494, sendo aluno de dois dos primeiros humanistas ingleses, Thomas Linacre (com quem Erasmo também aperfeiçoará o grego) e William Grocyn (que com John Colet tinham recebido a tocha do humanismo e dos estudos clássicos em Itália), e passando a dominar o latim e o grego. O seu pai insistiu para que que estudasse no Lincolon's Inn em Londres, uma universidade mais avançada, o que ele fez.

Em 1499, Desidério Erasmo de Roterdão no começo de um Verão de sonho vai pela 1ª vez a Inglaterra como pedagogo particular do William Blount, Lord de Montjoy, e encanta-se com os principais humanistas da época (e não só pois também elogiará as mulheres), e numa carta de 5-XII-1499 para John Fisher conta: «Quando ouço Colet, parece-me estar a ouvir o próprio Platão. Quem é que não admira, em Grocyn o saber completo? Que pode haver de mais agudo, profundo e delicado que o juízo de Linacre? Será que  natureza alguma vez criou algo de tão suave, afável e feliz como o génio de Thomas More?»

Em 1504 Thomas More foi eleito para o Parlamento e em 1505 casa-se com Jane Colt de quem teve quatro filhos, educados excelentemente, destacando-se o mais novo John, que traduziu o nosso sábio de então Damião de Goes, e a mais velha Margaret, que traduziu do latim para inglês a obra Precatio Dominica de Erasmo, A Devout Treatise upon the Pater noster, tendo-lhe Erasmo dedicado o Comentário do poema cristão de Prudêncio, em 1523.

Thomas More sempre foi muito religioso, tendo frequentado a Cartuxa e ao longo da vida as cerimónias e práticas religiosas. Foi um defensor fogoso da religião católica apostólica romano refutando directamente as obras dos principais protestantes da época, tal Lutero, Simon Fish e William Tyndale, e  em geral, em 1529, com o Diálogo sobre as Heresias. Já no ano e meio de prisão escreveu, ao modo do nosso Frei Tomé de Jesus, um dos desgraçados da aventura de Alcácer Quibir, com o seu Trabalhos de Jesus, o Diálogo de Conforto na Tribulação. Foi também um admirador de Pico della Mirandola, de quem traduziu para inglês a sua biografia realizada pelo sobrinho, a qual continha um antologia de extractos mais valiosos da sua obra e traduziu para inglês algumas regras de Amor religioso ensinadas por Pico. Traduziu ainda as obras de ironia e crítica social de Luciano de Samostata, as Sátiras, do grego para latim, com a ajuda de Erasmo numa das cinco vezes em que este esteve em Inglaterra e se hospedou em sua casa e se encantou com a sua família e ambiente, tanto mais que o imortal Elogio da Loucura foi redigido, em 1509, na casa londrina de Bucklersbury, e a Thomas More dedicado.

                                    

A ascensão de Thomas More em cargos públicos foi rápida, passando de diplomata e negociador na Flandres, onde escreve a Utopia, em 1516, a Undersheriff de Londres e depois a Speaker da Câmara dos Comuns em 1523, High Steward da Universidade de Oxford em 1524, chanceler do ducado de Lancaster em 1525 e por fim Chanceler do Reino. Todavia, em 16 de Maio de 1532 preferiu manter-se fiel à sua consciência do que sobreviver à custa da aprovação do que considerava errado, a separação da Igreja em Inglaterra da Igreja Católica Apostólica Romana, e a perseguição dos católicos, pelo que enunciou ao cargo, sendo substituído pelo famigerado Thomas Cromwell. E também não quis participar na cerimónia da coroação de Ana Bolena, a 2ª mulher de Henrique VIII, nem apoiar a Lei de Sucessão, contra a 1ª mulher, Catarina de Aragão, com quem vivera 24 anos. Ana Bolena será executada em 1536, tal como a quinta, Catarina Howard, em 1542. Anote-se ainda no palmarés de Henrique VIII o mandar destruir todos os santuários dedicados a santos em 1540, e acabar os mosteiros católicos que ainda restavam em 1542. Morrerá obeso e necessitando de uma cadeira de rodas para se movimentar em 1547.

 Voltemos à morte de Tomás More e oiçamos Fernando de Mello Moser narrá-lo na sua valiosa obra Tomás More e os Caminhos da Perfeição Humana, 1982: «Mais tarde, permaneceria ausente da cerimónia da coroação de Ana Bolema e recusaria assinar a aceitar  a Lei da Sucessão, alegando motivos de consciência e invocando, como jurista, que o seu silêncio quanto à exacta natureza desses motivos não podia ser interpretado como rejeição de qualquer título do do soberano - o que, de acordo com legislação recente, significaria um acto de alta traição. Foi preciso um depoimento, mais do que suspeito, de Richard Rich, colaborador de Thomas Cromwell em rápida ascensão política, para que pudesse ser finalmente condenado ao suplício, fazendo então a sua declaração formal sobre a sua posição e sobre o verdadeiro motivo que fora executado.  Henrique VIII comutou a pena em simples decapitação, e esta realizou-se em Tower Hill, próximo da Torre de Londres, no dia 6 de Julho de 1535. Segundo a folha volante que circulou em Paris, relatando as circunstâncias da sua morte, as suas últimas palavras foram: "Morro servidor fiel do rei, mas de Deus em primeiro lugar"».

No século XX e XXI Germain Marc'Hadour (bem acompanhado por André Prévost) foi um dos melhores estudiosos de Thomas More  e particularmente da sua alma religiosa, tendo-lhe consagrado uma revista Moreana, internacional e de bom nível, onde Pina Martins e Fernando de Mello Moser colaboraram, referindo-o este no seu valioso e último trabalho publicado, Ars Moriendi, Ars Vivendi: Reflexões sobre a Cultura do Renascimento em Inglaterra, Coimbra, 1983, no qual Tomás More é bem abordado quanto à sua têmpera e preparação em vida para a morte. Já postumamente, em 2004, a Fundação Calouste Gulbenkian editou a Dilecta Britannia, Estudos de Cultura Inglesa, com muitas páginas consagradas a Thomas More e Shakespeare

Na sua obra mais importante e perene, a Utopia (1ª edição em Lovaina, 1516),  geradora de tanta reflexão e livro, são transmitidos os ideais duma sociedade mais equitativa, sábia e não-violenta (embora admitindo a guerra para se adquirirem terras trabalháveis desaproveitadas...), na qual o dinheiro não existe nem a propriedade privada, o ouro é desvalorizado, todos trabalhando e recebendo o que precisam, e onde, como bem sintetiza Fernando de Mello Moser, «a legislação estabelecida por Utopos reconhecia a liberdade em matéria religiosa, excepto no tocante à crença na imortalidade da alma e na subordinação do mundo a um providência divina, sendo a heterodoxia nestes dois pontos tido como grave degradação, relativamente à dignidade da natureza humana», aspectos que infelizmente por diversas circunstância deixaram de predominar nas sociedades, dando azo a que uma série de megalómanos milionários e grupos financeiros e ideológicos negativos estejam a dominar e a enfraquecer tanto a Humanidade como o Humanismo, afunilando as sociedade e países para distopias...

Quem dialoga com Utopos ou Tomás More é um português, provavelmente  numa homenagem à gesta dos Descobrimentos, e apresenta-o assim: «Rafael  Hitlodeu (este é o seu nome de família) conhece bastante o latim e sabe o grego na perfeição. Como se dedicou predominantemente à filosofia, cultivou a língua de Atenas mais que a de Roma. Eis porque, em questões de certa importância, vos citará apenas passos de Séneca e de Cícero. Nasceu em Portugal. Ainda novo, renunciou à fortuna paterna para os irmãos e levado pela intensa paixão de conhecer mundo, ligou-se a Américo Vespúcio e seguiu-lhe a sorte. Nem por um instante abandonou este grande navegador em três das suas quatro últimas viagens, cuja narrativa é hoje feita em tantos livros... Sem a protecção divina, o seu temperamento sedento de aventuras ter-lhe-ia sido fatal. Seja como for, depois de Vespúcio partir, Rafael [nome do navio de Vasco da Gama, na descoberta da rota para a Índia]   percorreu com cinco castelhanos múltiplas regiões, desembarcou como que por milagre em Ceilão, e dali seguiu para Calecut, onde um navio português, contra todas as esperanças, o reconduziu ao seu país». 

Anote-se  que em 2006, saiu a primeira tradução   realizada directamente do latim da Utopia, por iniciativa de José Vitorino de Pina Martins. que prefacia a notável tradução do prof. Aires Augusto Nascimento, publicada  pela Fundação Calouste Gulbenkian, hoje já numa significativa terceira impressão bem merecida...

John Fischer (1469-1535), bispo de Rochester, que fora o protector de Erasmo durante a sua estadia de dois anos (1512-1513) em Cambdrige, pois era Chanceler da Universidade, decapitado também uns dias  antes, em 22-VI (pouco depois de ter sido elevado a cardeal, por raiva do rei), John Colet (1467-1519), da catedral de S. Paulo em Londres e Thomas More representam o humanismo mais puro de Inglaterra, nunca mais atingido. 

E se entre nós na época quinhentista João de Barros o elogiou, serão já no séc. XX José V. de Pina Martins e Fernando de Melo Moser os que mais amaram, trabalharam e divulgaram em exposições e conferências Thomas More, tendo publicado várias obras  que apelam à  leitura e aprofundamento, tanto mais que as opressões à liberdade do pensamento, da informação e da consciência são cada vez mais insidiosas e manipuladoras. 

Que o exemplo e as energias e bênçãos de todos estes humanistas nos inspirem, pois pelo campo unificado de energia consciência informação que nos une a todos, outrora chamado alma mundi ou ainda corpo místico da Igreja, todos estes seres estão bem despertos e luminosos nos mundos subtis e espirituais, dando-se mesmo o caso de Thomas More John Fisher terem sido beatificados em 1886 por Leão XIII e canonizados  como santos mártires  em  1935 pelo papa Pio IX. Anote-se, e diz-nos Mello Moser,  que «na década de vinte por ordem de Lenine, o nome de Tomás More foi inscrito no  obelisco da Liberdade na Praça Vermelha».  Finalmente, em 2000 o papa João Paulo II elegeu Thomas More como patrono celestial do governantes e advogados, seres que bem precisavam de se abrir ao seu génio e equidade corajosa.

                          

domingo, 4 de julho de 2021

Kurozumi Munetada, um mestre do Shinto. Vida e ensinamentos, com poemas lidos em japonês e português.

                                                                

Uma das doutrinas espirituais presente nas tradições religiosas e esotéricas é a do ser humano subtil verdadeiro ser uma centelha,  fragmento ou  partícula da Divindade, presentemente dentro de um corpo  animal humano ou humanizado. Emitidos, gerados, criados ou emanados por Ela, Sol Central Primordial, a nossa missão principal é a de reconquistarmos tal Consciência, a de quem somos, e  religar-nos  à  Fonte Divina, vivendo justa, sábia e amorosa e corajosamente pelo Bem, o Bom e a Verdade,

Quem mais desenvolveu estes caminhos interiores de religação foram ao longo dos séculos os shamans, os iniciados, místicos e mestres, em particular indianos, mas também, entre outros, cristãos, islâmicos, persas e  nipónicos, 
  tal Kurozumi Munetada, sacerdote do Shinto, de quem vamos acercar-nos, e nomeadamente da sua vivência forte da unidade do ser humano com a Divindade, Shin Jin Ittai Setsu.

Nascido em Bizen no kani, em Kami-Nakano, perto da acastelada Okayama, do clã Ikeda, em 22-XII-1780, de uma família há mais de quinhentos anos de samurais e sacerdotes shintoístas, considerada mesmo descendente de Ame-no-Koyane-no-Mikoto, seu pai sendo um sacerdote (negi) no santuário de Imamuragū, desde cedo entrou numa forte demanda espiritual que o levou mesmo aos 19 anos a assumir com persistência querer ser uma incarnação viva de Deus, um ikigami, umkami vivo, algo que na tradição Shinto se denomina ainda Iki nagara ni shite Kami, e que nasce do princípio já mencionado da unidade dos Kami e seres humanos. Ora para isso, como ele explicou, teria de evitar tudo o que o seu coração sentisse como errado, o que ele tentou sempre ao longo da sua vida, recorrendo até algumas vezes à adivinhação com o I Ching, mas sobretudo seguindo ou obedecendo a cinco juramentos que se tornarão basilares na sua vida e na dos seus discípulos: manter-se sempre com fé, não se convencer de ser mais do que os outros, não aumentar o mal no seu coração ao ver o mal nos outros, trabalhar sem preguiça pela sua família, seguir sempre o caminho da Sinceridade.

Por volta de 1806 casou por amor com Yuko que, pertencendo ao  Budismo Shingon (a escola mais esotérica, muito baseada no tantrismo, com seus rituais, mandalas e mantras) teve de declarar por escrito que desejava identificar-se com o Shinto que o seu marido prosseguia e aprofundava. Em 1810, o seu pai atingiu os 70 anos de idade e retirou-se e Kurozumi Munetada, então chamando-se ainda Yugenji, tornou-se o sacerdote do santuário onde se cultuavam ancestralmente três kamis, um deles Amaterasu, a divindade solar.

                                        

 Dois anos depois, quando entrara nos 30 e por ter um amor filial fortíssimo, a súbita morte em poucos dias dos pais por disenteria, prostrou-o numa longa crise de desânimo e doença, a insidiosa tuberculose, fazendo-o até desejar a morte, a fim de acompanhar os pais. Mas subitamente, quando pensava que estava mesmo para morrer , realizou que o seu amor filial, destruindo-o, estava a enviá-lo na direcção errada, pois tal via certamente não agradaria aos pais nem aos antepassados, decidindo então antes frutificar a herança ancestral e cultivar um estado de alegria ou divina vitalidade (yo-ki), ou seja,  amor e gratidão por tudo. 

Será  a 22 de Dezembro, dia do solstício do Inverno, de 1814, que recebe a sua experiência iluminativa com a deusa ou kami Amaterasu, tendo tal acontecimento sido denominado  tenmei jikiju, a recepção directa da missão celestial, da qual se sentiu investido a partir de então. Sentira-se de facto completamente plenificado pela luz e calor de Amaterasu e de certo modo unirdo a Ela e, cheio de gratidão e alegria, sentiu-se  tornado  um kami vivo, um espírito divino consciencializado.

                                

Pouco depois começou a sua missão de ensinar o Caminho de Amaterasu o mi kami, surgindo por declaração escrito o seu 1º discípulo (shin-mon) em Fevereiro de 1815. Os sermões ou discursos (koshaku) sobre qualquer tema ou motivo que  surgisse e que lhe permitisse ser inspirado, as sessões de oração e invocação das forças e bênçãos solares (yo-ki) e dos kamis  e as práticas de cura, algo mágico-magnéticas, o majinai, realizavam-se em ritmos regulares, seja em sua casa ou onde o convidavam, com efeitos muitos grandes em pessoas com dúvidas ou doentes, neste caso por vezes curas de certo modo miraculosas, granjeando-lhe por isso dedicados ou mesmo directos (monji) discípulos.

Peregrinou a pé  e por transportes seis vezes até ao santuário mãe de Amaterasu e da família imperial em Ise, de algumas das vezes deixando diários, tendo passado por várias cidades, templos budistas e santuários Shinto, donde trouxe  conhecimentos que ajudaram a realizar sucessivas palestras (koshaku) sobre a deusa suprema Amaterasu e o seu santuário de Ise, contagiantes, pois foi cada vez mais sentindo-A como ikimono, presença viva em si. Em 1824 foi confirmado em Kyoto como sacerdote sucessor do seu pai, embora já o fosse há 10 anos, e recebeu o nome de Sakyo. Entre 1825 e 1828 realizou as Mil Noites de Recolhimento (Sanro), nas quais grande parte da vigília era consagrada aos noritos, orações.

Na realidade muita da sua actividade sacerdotal e de mestre, além dos discursos, diálogos e curas, foi orar, recitar ou realizar os ritos purificadores, tal O Harai Norito, para pessoas que lhe pediam. Por exemplo, pronunciou-o 7.160 vezes por Koya Kobai que bem precisava dele, pois escreveu no fim um poema: "Neste mundo regido eternamente pelos Deuses, raramente vemos um teste pior que este"

Dele se recolheram muitas histórias extraordinárias, tal como quando  se aproximou de um samurai que,  toldado do álcool, já ferira mais de uma dezena de pessoas e este instantaneamente recuperou a razão e parou, provavelmente sentindo em Munetada, um samurai também, a presença do mundo dos Kami. Noutra, quando atravessava a bacia de Kojima em 4 de Abril de 1846 e foi envolvido por uma tempestade que estava a pôr em risco a vida dos viajantes: Kurozumi Munetada compôs rápida e eficazmente um poema e lançou-o ao mar, que se acalmou: 

Nami-kaze wo ikade shizumen, Watatsu-Kami, Amatsu-Hi wo shiru hito no norishi ni. 

Ó Kami do Mar, como acalmarás o Vento e as Ondas? Quem viaja aqui conhece a Deusa Celestial do Sol."

A 1 de Janeiro de 1850 fez o seu último discurso  e a 6 começou a sentir-se doente, compondo então um poema: «A Lua foi-se, o Sol matinal percorre agora o horizonte oriental, E eu, sem dúvida, estou no começo do Caminho». Será todavia só a 7 de Abril de 1850 que o céu se cobrirá, ou seja, que deixará o corpo físico, o qual calcinado em cinzas será depositado no santuário ancestral, em Omoto, com a sua mulher Ikoto, que morrera dois anos antes. Deixou posteridade e muitos discípulos, na altura cerca de mil, e foi sacralizado como kami em 1856 pelas autoridades shinto de Kyoto com o título de Daimyojin. 

A família imperial veio também a testemunhar o seu apreço por várias vezes e formas ao seu ensinamento e grupo, o qual apoiou com bastante entusiasmo e forças o Imperador na sua luta em prol da unificação do Japão. Em 1885 estava finalizada a edificação de um santuário junto à sua casa final de Okayama, e que se tornou a sede do grupo.

Esta sede do grupo, com o decorrer da crescente urbanização do Japão e a consequente privação da vista  do Sol foi em 1974 trasladada solenemente para um novo local numa montanha, Shintozan, ainda que o antigo santuário continue onde se instalara (ou santuarizara) o espírito de  Kurozomi Munetada, considerado um kami humano,  cultuando-se nele ainda  Amaterasu o-mi kami e os Yao-Yorozu-no-kami, ou seja as mríades de Kami.

Dr. Ebina Danjo (1856-1937), pensador nipónico convertido ao cristianismo e missionário, descreveu assim Kurozime Munetada: «As origens das ideias de Munetada não se conseguem traçar [exagera pois lera os clássicos do Shinto Kojiki, Nihongi, Manyoshu, e alguns chineses como Yi Ching, Chuang Tseu, Lau Tzeu, deste tendo  até copiado manualmente o Tao Te Ching], contudo ele é um carácter enorme que fundou grandes coisas. Quando consideramos os seus escritos e poemas, ou examinamos as suas acções, torna-se claro que ele captou algo nos fundamentos do universo e não podemos duvidar que era um verdadeiro homem vivo (katsu jin). Durante a sua vida como líder religioso, sempre que subia ao estrado, as suas palavras fortes e verdadeiras resultavam do poder da deidade ou do espírito divino (kami) que o habitava.»
Já Charles Williams Hepner, nascido em 1887, o autor da obra incontornável e a quem muito devo, The Kurozumi sect of Shinto, Tokyo, 1935, ao contrário, constata influência das austeridades do Zen, do mistícismo do Shingon, do nacionalismo patriótico de Nichiren (1222-1282),  do Judo, além do Taoísmo e do Confucionismo. E aponta vários pensadores, teólogos e escolas do Shinto, que seriam provavelmente fontes das suas ideias, uma posição algo exagerada, pois certamente que semelhanças não querem dizer influências. Eis os nomes desses teorizadores  do Shinto: Ichijo Kaneyoshi, Yoshida Kanetomo, Hayashi Razan, Nakae Tojo, Yamazaki Ansai, Ishida Baigan, Nimomiya Sonto ku, Motoori Norinaga, Hirata Atsutane. Todavia, no fim da obra Charles W. Hepner, diminui tal dependência ao escrever que «as ideias deles são em certos pontos similares às de Kurozumi Munetada».

 Ora no ensinamento de Kurozumi Munetada que ele denominou o Caminho de Amaterasu o-mi- kami (Amaterasu-o-mi-kami no on michi) no qual o Sol  é visto como a própria Amaterasu, de facto tal como o principal teorizador do shinto Motoori Norinaga (1730-1801) por essa época também realçava, observa-se um aprofundamento pioneiro grande de tal realidade e identidade, pois a sua iluminação abrira-o a um contacto mais íntimo com tal face divina feminina, Amaterasu o mi kami, o que foi ainda fortificado com a ligação bem cultivada com o santuário principal de Ise, que muito amava, e de que um belo poema nos fala: 

Kami kaze ya Ise to koko to wa hedatsuredo,
Kokodo wa Miya no uchi ni sumu-ran

Ventos providenciais, sim mesmo que Ise esteja muito distante
O Coração mora dentro do Santuário.»

Em verdade,  tal relação solar divina com Amaterasu tanto se pode aprofundar e elevar, como ampliar e completar, pela nossa vida e virtudes. Por exemplo, uma das palavras chaves do ensinamento, Marukoto, significa "redondeza de mente e coração", e  tanto reflecte a imagem do Sol no céu como em nós, psicologicamente, pela redondeza ou unificação harmoniosa do que sentimos e pensamos, do coração e da cabeça, no fundo num corpo-orbe espiritual mais solar.
E com tal se relaciona outra qualidade muito valorizada, a
sinceridade, e honestidade, Makoto, que Munetono Kurozumi considerava a primeira virtude, pois só assim se obtém a transparência e a redondeza, e nos libertamos de mentira e da hipocrisia.
Outra palavra, geradora de melhores ligações ao divino, é Kokoro, que significa coração, mas também mente, alma, espírito e que para Munetada era fundamental aprofundar-se na sua dimensão interna e espiritual, já que por ela nos unimos ao mundo espiritual e à Divindade, pois Amaterasu o-mi-kami é o coração do 
Universo e enche-o de luz e de graça. 

Alguns dos poemas falam-nos inspirada e sutricamente desta realização interior, tal como podemos ouvir em outros cantos da Consciência Suprema, tal o indiano Astavakra Gita, que traduzi
e comentei há uns anos:

Kami Hotoke ono ga Kokoro mo sutete, Ame-Tsuchi no
Ta wo Inoru koso Aware narikeri.

 Estando os Kami e os Buddhas no teu coração
Que tristeza teres de orar noutra parte.


Ame-Tsuchi no Kokoro no ari ka tazunureba,
Ono ga Kokoro no Uchi zo arikeru.


Se inquirires acerca do coração do Céu e da Terra
Este coração existe sem dúvida dentro do teu.

Outro conceito importante no ensinamento de Munetada Kurozumi é o de Mu, que significa "não é", potencial, fundamento, invisível, espiritual, sem limites, Absoluto. Contrapõe-se ao que é, o material, relativo, fenomenal. Tal deve-nos fazer diminuir o egoísmo (ga), o apego e mesmo a concepção que se faz de Amaterasu o mikami pode ou deve sair de limitações antropomórficas e ser realizada como Sol e coração do Cosmos, ou digamos, como a etimologia indica, o Resplendor Celestial, ou ainda Honshin, o Espírito do Universo.

Jean Herbert (1897-1980), um dos grande conhecedores e escritores ocidentais do Shinto mais profundo, além do Hinduísmo, abordou e resumiu em duas páginas do seu valioso livro Aux Sources do Shinto o ensinamento do movimento de Kurozumi Munetada e delas citaremos o seguinte: «o Kurozumi-kyo, que se dá pela mais autêntica fé religiosa japonesa, ensina que "a origem de todas as vidas no Universo é Amaterasu-o-mi-kami, a Deusa Mãe, cujo espírito solar impregna o universo, dá nascimento a todas as coisas pela sua luz e calor», e transcreve alguma das frases do fundador, tal:  "como é maravilhoso pensar que entre Amaterasu e os seres humanos nenhum écran se interpõe". E que «o ser humano é divino. - Filhos, vós que fostes produzidos pela poderosa Deusa, não entristecei o coração do vosso Kami e Pai-Mãe.» 

Dirá ainda que o Kurozumi não se preocupa tanto com a vida do além pois a sua divisa é "Comunhão (iki-toshi), impregnada de vitalidade" e que «os seus membros inalam a vitalidade divina virando-se de manhã para o sol e dirigindo orações a Amaterasu o mi kami. Inalam o ar fresco como se estivessem a engolir o sol, que é o Espírito Divino de Deus. E assim chegarão a uma consciência mística da unidade com Amaterasu».

Charles William Epner, no seu incontornável livro The Kurozumi sect of Shinto, descreve mais detalhadamente a relação profunda obtida por Munetada com Amaterasu: «A notável experiência de 22 de Dezembro de 1814, quando ele sentiu o espírito do Sol (Go-Yo-Ki) encher o seu peito e vivificá-lo completamente, não foi só o começo da sua obra como fundador de uma seita de Shinto que tem o seu nome, mas foi também muito significativa no enriquecimento das suas ideias sobre a Divindade. Até então adorara o Sol Nascente; mas o seu Nippai (adoração do sol) tinha sido Yoshai, adoração à distância. Através desta experiência uma união mística, entre o Sol considerado como a manifestação de Amaterasu o-mi-kami e Muneteda foi realizada. A partir de então as virtudes divinas foram por ele consideradas imanentes, omnipresentes e salutíferas através dos raios de Luz (Komyo, ou Konsen) do Sol, do Calor (Ondan) na atmosfera, e através do Ar (Kuki) que respiramos. O Espírito do Sol (Go Yo Ki) é portanto Amaterasu O-mi-kami activa através da Luz, Calor e Ar.»

Para um ser tão ligado ao Sol, à sua Divindade e às suas energias era natural ensinar certas práticas aos seus discípulos e que, além das mais directamente relacionadas com a contemplação e a assimilação, houvesse também as de transmissão e cura. E assim desenvolveram-se as respirações energetizantes solares e a transmissão pelo sopro, pelas mãos, por fricções de mãos e no corpo, bem como ainda a recitação de orações, o uso de água consagrada ou "kamizada"(Shin sui) diante do santuário seja para ser depois bebida  seja projectada pelo curador, ora no corpo do paciente ora num papel com o seu nome, para além dos talismãs (Shin-pu). 

Havia algo de magia (majinai) no que se realizava ou acontecia e que se baseava na fé no poder de Amaterasu, que subjaz a todos os seres e que uns podem transmitir ou intensificar mais nos que mais necessitam. Para Charles William Epner, que assistiu a algumas sessões com bastante gente, sacerdotes, orações e cantos, verificar-se-ia o poder de sugestionabilidade e de hipnotismo, embora também acontecessem curas à distância.

De uma delas, pelo snr. Fukoda, narra  Kurozumi Munetada: «Quando eu rezei esforçadamente aos Kami do Céu e da Terra, muito misteriosamente ele ele melhorou e devido ao excesso de gratidão, compus o seguinte poema: 

Amaterasu-Kami no Mi-Kokoro Hito-Gokoro
Hitotsu mi nareba Iki-Doshi nari.

Quando o coração da Divina Amaterasu e o coração do ser Humano se tornam um, isto é sem dúvida a Vida Eterna.»

Para Munetada "a oração (Inori) significa subir ao Sol (Hi-nori) e para o verdadeiro Eu não há oração frustrada."

O Sol é Amaterasu-o-mi-kami e é identificada como Ame-Tsuchi (Céu-Terra), Kokoro (coração), Ten-do (Caminho do Céu), Mu (Não é) e assim orar é um metodo de autoconheciento e cultura, um acto de nos tornarmos um com Amaterasu.

                          

Mas claro, a vida quotidiana tem de ser bem vivenciada, sem apegos nem irritaçãoou, como dizia, Munetada: «A perfeição significa ser redondo como o Sol. Isto significa ser um com o augusto coração da Augusta e Divina Amaterasu. Fazer sofrer o coração da divina Amaterasu é Impureza (Kegare). Impureza significa secar o espírito ( Ki-hare). Por esta razão, uma pessoa irritar-se, e causar sofrimento aos seres e coisas é a maior impureza. 

Já a gratidão deve ser desenvolvida pois por ela tudo o que acontece é uma bênção: «Namigoto mo Ten-Chi to tomo ni tanoshimu. Makoto ni makoto ni Arigatai koyo bakari goza-soro. Alegra-te com o Céu e a Terra em Tudo. Em verdade, em verdade tudo é uma causa de gratidão.»

Acrescentemos alguns dos poemas "mântricos ou kotodamicos" de Kurozumi Munetada, que ecoam as suas realizações e unidade:

«Amaterasu - Kami to Hito to wa Hedate-naku
Sugu ni Kami zo to omo Ureshisa».

Oh, a alegria de pensar que a Deusa brilhante celestial e o ser humano são Um, não separado e ao mesmo tempo Divino.» 

Kane-gane moshi-age-soro tori, waga Hon-Shin wa Amaterasu ô Gami no Bun Shin nareba, Kokoro no Kami wo daiji ni tsukamatsuri-soraeba, kore so makoto no Kokoro nari.

 «Como já disse repetidamente, os nossos corações são partes da Divina Amaterasu; e se nós prestamos atenção ou obediência à Divindade do coração, isso é [ou nisso se manifesta] então o verdadeiro coração.»

 Katachi mo Ten-Chi no shizen to umi-tamo Katachi nareba, ware to muri ni sutsuru ni oyobi-mosazu, nanigoto mo Ten-chi to tomo ni tanoshimu.
«Se os nossos corpos são também corpos  nascidos
naturalmente do Céu e da Terra, não nos devemos abandonar não razoavelmente; mas em todas as coisas alegrar-nos com o Céu e a Terra.»

Ware-ware to omo wag Mi wa Ten no Ware/ Waga mono tote wa Ichi-butsu mo nashi
«Eu próprio que me chamo a mim mesmo, é o Eu Celestial/ Eu não ouso chamar a uma só coisa, minha.»

Shoshi Michi ni wa goza-naku,
Michi wa Hi-no Kami no On-Michini Goz-za-soro.

«O Caminho não é o meu, mas o Caminho da Divindade do Sol.»

Além da sua intensa e real ligação íntima a Amaterasu O mi kami, a divindade não só do Sol mas também intuída como a Deusa Mãe do Universo ou mesmo o Absoluto, Munetada Kurozima foi sempre um ser de amor,  sempre disponível para ouvir, orar ou curar quem quer lhe pedisse,  e nesse sentido, fundamentando-o, corre este  seu poema, antes de poder ouvir no vídeo alguns deles, em japonês aportuguesado:

Tachi-muko Hito no Kokoro wa Kagami nari.
Ono ga Sugata wo utsushite ya min.

O coração da pessoa diante de ti tem a forma de espelho.
Contempla reflectida nele a tua própria face.»

Concluamos esta pequena homenagem a Munetada Kurozumi: 
 
«Michi wa mitsuru nari. Amaterasu-O-mi-kami no Go-Bunshin no michite kakenu yo asobasaru-bekusoro.»
«O Caminho significa estar repleto. Como partes honrosas separadas de Amaterasu-O-mi-Kami, devemos encher-nos plenamente do seu espírito.»

                    

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Nuvens trabalhadas subtilmente, angelicamente, teofanicamente... 2-VII-2021, 19.00, Lisboa. Com vídeo

O Céu aberto na Terra pelas nuvens que descem imaculadas e subtis, soprando mensagens que nos arrancam da horizontalidade e nos erguem à comunhão com os espíritos da natureza, devas, anjos e kamis que as modelam e avatarizam.

Súbitas teofanias que ocorrendo ao findar da semana como que a consagram e nos dizem: - Sim avança, apesar da covinagem e da americanagem destrutivas, o teu trabalho vale, e eis-nos aqui para comungar contigo, sob a luz e o calor solar, no belo céu azul, lisboeta ou outro...

Nuvens que vêm cheias de presenças e imagens simbólicas que nos atraem e nos fazem debruçar à janela e as saudar e amar. E as receber para dentro do nosso ser e sua vida terna...

Demos graças e continuemos a comungar com a Divindade Solar, o espaço azul infinito, e as belas imagens, formas, texturas, ventos, cartas, filmes, procissões, danças e seres subtis das nuvens...

Que haja melhor ligação, mais ecológica e agro-biológica, da Terra e do Céu, e que os ciclos naturais e suas gerações interdependentes, com as nuvens derramando a sua água misericordiosa e fluindo através das montanhas e vales,  rios e mares, alimentem, satisfaçam e inspirem amorosa e libertadoramente todos os eco-sistemas e seus seres, do insecto e peixe ao guarda-rios (do Mira, do Tejo, do Doro, do Guadiana e de outros) e à raposa, da família ao Anjo, sob as bênçãos dos mestres, dos Kamis e da Divindade....

E eis as imagens delas e deles... 

Muita saúde e sinceridade, coração e coragem, Luz e Amor!