Um dos elos da Tradição Cultural e Espiritual Portuguesa no séc. XX foi Sant’Anna Dionísio (1902-1991) não só pela sua obra e vida longas, valiosas, mas também pelo convívio privilegiado que manteve com o genial Leonardo Coimbra, este certamente um dos nossos mais cultos e elevados pensadores de sempre, como o próprio Fernando Pessoa reconheceu numa carta que lhe endereçou, na qual lhe dizia «eu conhecia já de sua obra-base, as grandes qualidades e os (a meu ver) alguns defeitos do seu espírito, o mais alto, porventura, porque plenamente lúcido e intelectual, que a nossa Raça hoje reveladamente possui» (in Agenda do Centenário de Fernando Pessoa. 1988). Assinalava assim a mais vulgar significação de espírito, enquanto totalidade das características únicas de um ser, e realçando o nível de «o mais alto» português, um merecido elogio a Leonardo Coimbra, bem como a plenitude de lucidez e do intelecto (que explicita «o abarcar tanto com a inteligência, o descer tão fundo no sentido possível das coisas»), assim valorizando na consciência tanto a expansão de alargamento horizontal quase infinita como também a axial, das profundidades às altitudes do Espírito e dos Seres e a Divindade.
Tive a sorte ou a graça de durante alguns anos em que dei aulas de meditação e Agni-Raj Yoga no Porto conviver bastante com Sant’Anna Dionísio e assim lhe devo esta e outras homenagens…
Uma das suas traduções, a Apologia de Sócrates, por Platão, vale não só pela belíssima obra escrita no séc. IV a. C., em defesa do mestre como também pelo prefácio redigido por Sant’Anna Dionísio em onze páginas, nessa edição da Seara Nova, de 1953, onde a dado passo transcreve a acusação que em 400 A. C. foi apresentada ao 1º arconte de Atenas, «Sócrates é acusado de não reconhecer como deuses os deuses da cidade e de querer introduzir novas divindades. É acusado ainda de corromper a juventude. Pena proposta: a morte.»
Cogita então Sant’Anna Dionísio: “Desde os primeiros instantes, Sócrates parece ter pressentido a gravidade da acusação. Embora os termos da incriminação fossem tipicamente vagos e falaciosos, era fácil reconhecer a extrema sagacidade da fórmula achada pelos promotores [Anitos, Meletos e Lícon] do singularíssimo julgamento. Em primeiro lugar levantava-se a acusação de ateísmo, para o povo Ateniense sempre muito grave, como já se vira pela condenação de Anaxágoras e de Protágoras. Contra essa insídia era difícil lutar. Na verdade, Sócrates era uma alma profundamente religiosa, mas estava longe de poder-se dizer um crente ortodoxo nos deuses do Olimpo. Pelo diálogo platónico Eutífron se vê como o filósofo encarava sardonicamente as próprias expressões do culto, indo até ao arrojo de definir o ritual dos sacrifícios como uma espécie de “técnica comercial”. E ninguém ignorava em Atenas que o filósofo com frequência se dizia inspirado e guiado por uma voz interior, a que ele dava o nome do seu espírito ou «demónio» [daimon].
Quanto à acusação de corruptor da juventude, a intenção dos acusadores era na verdade ardilosa e certeira. Sócrates nunca fizera segredo do seu desprezo da vida dos negócios e da própria vida política, entendendo que o fim mais alto da educação era o de despertar o amor desinteressado da sabedoria e da virtude. Ora, dentro de uma civilização essencialmente política e forense como era a de Atenas, tal magistério não podia deixar de ser considerado como condenável…”
Após estes extractos do sugestivo e belo prefácio de Sant’Anna Dionísio, tão valiosos e perenes que sublinhamos, nomeadamente a sua sensibilidade íntima com o seu Anjo e a sua demanda virtuosa, oiçamos então alguns passos da imortal Apologia de Sócrates, discurso no qual, quanto a mim, se revela o seu nível de mestre espiritual, de Christos (que significa ungido pela Luz divina) e que de certo modo tanto ele, como antes Pitágoras, foram na tradição grega.
Exemplar que foi do meu irmão Carlos Teixeira da Mota... Luz Divina nele!
“Pois quê, caro amigo! Tu, que és Ateniense, natural de uma grande cidade, cujo renome é maior que o de nenhuma outra pela sua ciência e poderio, tu, na verdade, não terás pejo de dar tantos cuidados aos teus negócios, tão preocupado em fazê-los prósperos, tão interessado com a reputação e a fortuna – e, por outro lado, quanto à razão e à verdade, quanto à tua alma – que tanto necessitavas de melhorar constantemente – de tal não te preocupas, nem pensar sequer ao de leve?”(…)
E se algum dentre vós me contestar e afirmar que, sim, que se preocupa também com a alma, não julgueis que a ele, sem mais, o deixarei, indo logo embora. Não, interrogá-lo-ei, examiná-lo-ei e discutirei a fundo com ele. E se vir que ele não possui, afinal, contra o que me dizia, a reflexão da virtude, repreendê-lo-ei de atribuir tão baixo preço ao que merece o mais elevado, e tão alto valor ao que tão pouco vale (…)
De facto, o meu único ofício é o de andar pelas ruas para vos persuadir, novos e velhos, a que não vos preocupeis tanto nem do vosso corpo nem da vossa fortuna mas da vossa alma, a fim de a tornar tão boa quanto possível.
Sim, a minha missão é a de vos dizer que a riqueza não faz a virtude, mas que é da verdade que deriva a fortuna e tudo o que é estimável, tanto nos negócios particulares como aos do Estado (…)
Reflecti nisto um pouco: se me condenardes à morte, não encontrareis facilmente um outro homem, - digo-vos isto embora, -correndo o risco de vos fazer sorrir, - um homem que vos foi dado por alvedrio dos deuses a fim de vos estimular tal qual um moscardo [ou esporão] estimula um cavalo corpulento e de boa raça, mas um pouco mole por via da própria corpulência e necessitado de ser aguilhoado.
Este ofício é aquele, julgo eu, o que a Divindade me designou. Por essa razão não cesso de vos estimular, de vos exortar e de repreender cada um de vós, perseguindo-vos por toda a parte, de manhã à noite.
Não, juízes, não encontrareis facilmente um outro como eu; e por conseguinte, se bem me julgardes, conservar-me-eis preciosamente. Mas é também possível que, por um golpe de impaciência e cólera, como as pessoas estremunhadas, prestei ouvidos a Anitos, e nesse caso, levianamente, me condeneis à morte. Feito isso, passareis o resto da vida a dormir; a não ser que o mesmo Deus, por ter pena de vós, vos envie alguém que me substitua. Seja como for, não duvideis que sou, realmente, um homem atribuído à cidade por mandato divino. Perguntai a vós mesmos se será humanamente possível desprezar, como tenho desprezado, todos os interesses pessoais e suportar as consequências dessa isenção durante tantos anos, e isto a fim de me dedicar a vós exclusivamente, tomando junto deste e aquele o lugar de um pai ou irmão mais velho, compelindo cada um a tornar-se cada vez melhor.
Na verdade, se daí colhesse algum proveito, se vos desse conselhos em troca de alguma recompensa pecuniária, a minha existência estaria humanamente explicada. Mas, como vedes, os meus acusadores, que tão imprudentemente acumularam contra mim tantas queixas, não conseguiram trazer uma testemunha sequer que viesse aqui depor que algum dia, me fiz pagar ou que algum dia pedi fosse o que fosse. E porquê? Porque, quanto a testemunhas, eu apresento uma que garante suficientemente a verdade do que afirmo; essa testemunha é a minha pobreza.
Uma particularidade, no entanto, pode parecer estranha. Como explicar que, concedendo eu, assim, os meus conselhos a este e aquele, a cada um, em particular, e interessando-me um pouco por todos os assuntos, nunca tenha dado sinais de querer agir publicamente, não ousando falar em público, nem dar conselhos à cidade?
Isto provém, como muitas vezes me ouvistes declarar em muitos lugares, de uma espécie de voz íntima, de um espírito divino que dentro de mim se manifesta e ao qual Meletos fez referência na sua acusação, escarnecendo-o. É alguma coisa como uma voz que ouço desde a infância, e que tem sobre mim o efeito de me desviar do que estou para fazer, sem contudo me obrigar a agir como sugere ou indica. É ela que se opõe a que eu intervenha nos negócios políticos. (45 p.).”
Mais adiante, na sua defesa, o mestre de Platão afirma:
“Eu, também, caro amigo, tenho os meus [familiares]; visto que, como diz Homero, não nasci de um roble nem de penedo, mas de seres humanos; por conseguinte, tenho parentes; e tenho também filhos; com precisão, três, um dos quais já crescido e dois ainda pequenos. Apesar disto, Atenienses, não mandarei vir nenhum deles, nem vos suplicarei para que me absolvais. E porque não farei isso?
De maneira alguma julgueis, Atenienses, que é por desafio ou para vos demonstrar desprezo. Que eu tenha ou não medo da morte, isto não importa ao caso. A minha atitude provém do parecer íntimo de que a minha dignidade, a vossa e a da cidade inteira em que estou, e com a reputação que, sem razão ou com razão, adquiri, sofreria se me apresentasse perante vós suplicante.
Que quereis? A opinião estabelecida é a de que Sócrates por algo se distingue da maioria dos homens. Ora, se aqueles que dentre vós passam por se distinguir seja saber, seja pela coragem, seja por qualquer outro mérito, se comportassem desse modo, em atitude de súplica, dir-se-ia sem dúvida que era uma vergonha…(51 p.)”
E não mais, não mais citemos a imortal Apologia de Sócrates para não alongarmos demasiado o texto ou nota (que poderemos ainda futuramente acrescentar e aperfeiçoar), apelando contudo a que leiam e releiam esta tão importante manifestação da boa nova socrática, tragicamente cerceada por uma sociedade que será depois arrasada...
Realcemos então apenas, no parágrafo seguinte, alguns aspectos facilmente esquecidos na voragem do tempo e na degradação da aura dos nomes, pela sua má utilização, nesta época tão sombria em que sucessivos governantes e grupos económicos e financeiros têm destruído a alma e o corpo de tanta gente, e a partir de 2022 de milhares de eslavos e de muitas potencialidades europeias no seu ódio à Rússia...
Sócrates surge-nos tão exemplar e tão actual na sua austeridade e pobreza, no seu desprendimento das riquezas e no seu destemor da morte, na sua lucidez e no magistério maiêutico, e na sua espiritualidade supra-religiosa que retemperarmos as nossas almas nesta fonte é sem dúvida tanto um antegosto da ambrósia da vida eterna como também o soprar a chama de coragem revolucionária para enfrentarmos o que nos rodeia, censura ou ameaça hoje...
Terminemos relembrando o daimon ou espírito, o deus interior, anjo, mestre ou mónada, que, graças ao seu melhor acesso à anima mundi, o iluminava ou aconselhava no íntimo, sem dúvida um ensinamento mistérico que devemos cultivar pela meditação silenciosa e aprofundar, se recebermos a sua graça, e que está bem presente na Tradição Espiritual Portuguesa em que nos inserimos, nomeadamente em Antero de Quental (e bem expressa nas suas cartas a Fernando Leal), em Fernando Pessoa ("a conversa com o Anjo da guarda é a mais alta obra de magia"), em Dalila Pereira da Costa e que continua viva e apelando a que a oiçamos e demos testemunho luminoso dela…
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Sócrates e a voz silenciosa do seu daimon, pintura do séc. XVIII em Itália.
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