terça-feira, 17 de maio de 2022

Fernando Leal e o poema de consagração do bispo de Cochim, D. Mateus de Oliveira Xavier, em Goa, 1898. Transcrito, lido e comentado em video por Pedro Teixeira da Mota.

Fernando Leal, 1846-1910, numa fotografia de 1906, em Velha Goa.

Fernando Leal, o desbravador de caminhos africanos, o tradutor e escritor de francês, o poeta e amigo de Antero de Quental, o militar valeroso, já regressado a Goa e casado (a conselho de Antero), quando atingira os 52 anos de idade deixou a sua inspiração anímica elevar-se em bênção, ou invocação de bênçãos para  o novo bispo de Cochim, Mateus de Oliveira Xavier, doze anos mais novo que ele, e talvez com tanta força e justeza, que o prelado viria tanto a ascender aos mais elevados graus hierárquicos da Igreja na Índia e Oriente como a manifestar ao longo da vida todas as qualidades ou virtudes invocadas e auguradas por Fernando Leal, que assim cumpria a "sua missão" ou, como se diz na Índia, o seu swadharma, de poeta vidente, de rishi, capaz de ver nos planos espirituais e passar à palavra, ao ritmo, ao sentimento e à mente que movem, isto é, a tornar-se mensageiro e mensagem.

 Não sabemos da amizade que os uniu, dos diálogos havido, do amor divino ou crístico que poderão ter comungado, mas através deste exemplar da Homenagem à sagração episcopal de D. Mateus de Oliveira Xavier, acontecida e publicada curiosamente nos 400 anos da descoberta do caminho marítimo, chega-nos a caligrafia-grafologia de Fernando Leal, na dedicatória autógrafa  ao notável deputado e ministro Francisco Felisberto Dias Costa, bem como a imagem do ilustre prelado, na força dos seus 40 anos, fotografia de uma qualidade grande pois tendo passado mais de cento e vinte anos mantêm-no a brilhar, nítido e vivo para a nossa visão do séc. XXI, permitindo-nos assim compreender um pouco mais estas duas almas tão valiosas e exemplares.

O poema foi lido e comentado por mim, e encontra-se no vídeo fínal de dezoito minutos, mas transcrevo-o em seguida, certamente discordando de pequenos aspectos, tal o apontamento distorcido da religião grega, tomando as nuvens por Juno, mas com outros bem valiosos, pelo que invocaremos as bênçãos dos dois,  e enviamos-lhes a nossa gratidão, lembrando que o bispo de Cochim nascera em Vila do Rei em 14 de Outubro de 1858 e viveu abnegadamente até 19 de Maio de 1929...

                        

«Aceita neste dia o meu sincero preito,
Sincero sim, por vir de quem sempre é, por jeito,
Ensino e vocação, melhor fundibulário
Contra magnates maus, do que turibulário;
Mas tu mereces preito, homem simples e bom,
Erudito e modesto, e que falas em tom
Singelo e fraternal a fracos indigentes.
Teus modos são gentis, revelam quanto sentes
Com pureza e humildade, aproveitado aluno
Do humilíssimo Jesus.

                           Não tens ares de Juno,
O mito da altivez inepta e sobranceira,
A deusa vingativa, orgulhosa e altaneira
Do paganismo heleno,  - ou ares de pavão
Que a si mesmo consagra um culto egoísta e vão.

Por isso te respeito, acato, prezo e admiro,
Apóstolo de Cristo!

                            A púrpura de Tiro
Fica-te bem a ti, e ficar-te-ia a palma
Como prémio devido à tua amável alma.
Sacerdote exemplar de virtudes singela,
Lembras de Zurbaran as sugestivas telas
com vultos monacais de pálidos ascetas,
Cismadores perfis de místicos poetas,
Teu rosto pensativo, espelho da tua alma,
Retrata claramente uma consciência calma.

Vai pois, manso pastor, aguardam-te as ovelhas,
Surgem para Cochim as cambiantes vermelhas
De uma aurora de paz, de crença, amor e esperança;
Piloto de almas, vai levar-lhes a bonança;
Com o farol da fé, vai salvar teus fiéis;
Livra-os do mar da vida e dos seus mil parceis [escolhos];
Cumpre a missão augusta, aponta-lhes a Cruz,
Mostra-lhe que só Ela ao porto nos conduz
Da bem-aventurança infinda e eterna glória;
E mostra-lhe que a vida é pausa transitória
Nesta navegação terrível do infinito;
Que além da morte deve estar o nosso fito;
Que a barca de São Pedro, açoutada pelas vagas,
Num tempo em que a ciência audaz lhe roga pragas,
Não pode naufragar; flutua, não soçobra,
Apesar da impiedade e sua infernal obra...

Vai. Dá pouco dinheiro a pompas vãs da Igreja,
E aos pobres muito, mas sem que ninguém o veja;
Deus quer a caridade, e quer sinceras preces,
P'ra que o diabo não lhe ceife humanas messes;
Mas não precisa Deus de festas dispendiosas;
O criador, que fez estrelas e fez rosas,
Tem o seu templo sempre ornado e perfumado;
É de abóbada azul e todo iluminado
Por candelabro, sois e alâmpadas estrelas,
Como templo nenhum do mundo pode tê-las.

Vai. Prega com a palavra e prega com o exemplo;
Torna fácil ao povo e amado o acesso ao templo;
Hipócrita não és, nem bonzo intolerante;
Tua alma é forte e sã, pura como um diamante;
Tu não olvidarás as procedências tuas;
Além da pátria eterna, o padre tem mais duas,
Aquela onde nasceu, e outra, a Roma Cristã;
Há quem olvide aquela... A tua mente é sã;
Amas a liberdade e a luz, por natureza
:
Tu não renegarás a pátria portuguesa;
Honrarás o teu país nessa mesma Cochim
Que viu desbaratado o grande Samorim,
Com todo o seu poder, por um Pacheco intrépido.

*

Corre-me o sangue mais fremente, rubro e tépido,
Quando me lembro dos heróis de Combalão;
Que sublimes heróis, corações de leão!
Povo nenhum os teve assim, nem tem maiores
Que importa, ó pátria minha amada, que hoje chores
O teu abatimento?!
 
Eia! Ressurgirás,
Terra de meus avós! Bem cedo te erguerás;
Viram-te erguida já, numa atitude bela,
As estranhas nações - em Magul e Coolela!
Os tempos são enfim chegados: Portugal
Renasce, e esta nação revela-se imortal.
 
Salvé, pátria do Gama e Afonso de Albuquerque!
Se há traidor que te venda e chatim que te merque,
Desfarás com um sopro o pacto vil e os Judas;
No forte coração do povo teus te escudas...
 
*
Sagra-se hoje, Matheus, a tua prelazia.
Predestinado nome, é uma profecia.
Nome de evangelista, e apóstolo, Xavier;
Como que o teu baptismo o determina e quer;
Honra o nome que tens, prega a santa palavra;
O torpe sensualismo em todo o mundo lavra;
Combate-o sem quartel na tua diocese;
Faz que o teu rebanho o abandone e despreze.
 
E ele te elegerá, no fundo da alma, o povo,
Para seu bispo, como ao tempo em que era novo
O Evangelho, os fiéis nomeavam seus prelados,
E quando os dias teus estejam consumados
Eleja-te enfim Deus para a glória celeste,
Por o mal que evitaste e p'lo bem que fizeste».
  Ei-nos com um belo e sábio poema do qual destacaremos sucessivamente a confissão de Fernando Leal de ser mais um crítico social do que um incensador da religião, de admirar a simplicidade e sinceridade, a bondade e a fraternidade de Mateus Xavier, de reconhecer nele, pela sua calma e erudição, fé e abnegação, um farol de luz que guia o caminho dos peregrinos desta curta mas terrível vida, rumo "à bem aventurança infinda e eterna."  Muito actual e bela é ainda sua caracterização da alma justa do novo bispo: 
" A tua mente é sã;
Amas a liberdade e a luz, por natureza:
Tu não renegarás a pátria portuguesa."
 
 Por fim anote-se a visão democrática forte de Fernando Leal, lembrando os tempos primordiais do Cristianismo quando a assembleia local dos fiéis elegia os seus sacerdotes e  representantes.
  E comungando com Fernando Leal e D. Mateus de Oliveira Xavier, meditemos e realizemos o mantra ou lema transmitido: «Eleja-te Deus para a glória celestial, por o mal que evitaste e p'lo bem que fizeste»... Ámen em todos nós...

                     

domingo, 15 de maio de 2022

Lizelle Reymond: Sri Anirvan, vida e ensinamento no ashram de Himavat, em Almora. "A Vida na Vida."

                                                 
A visão mais intimista e próxima que Lizelle Reymond nos oferece do mestre indiano Sri Anirvan, já q
ue viveu com ele cinco anos no centro ou ashram que criaram, Himavati, em Almora, perto dos Himalaias, complementa os dados que fornecemos num recente artigo a partir do  prefácio de Ram Swarup à compilação de estudos por ele editados de Sri Anirvan, intitulada Budhi Yoga of the Gita and others essays, 1983.
                                            
Ora Lizelle Reymond nascida em 30 de Junho 1899, em Neuchâtel, Suíça, e que permanecer
á incarnada até 24 de Junho 1994, com uma vida bem criativa, atraída para a Índia desde cedo, publicando até, em França, com Jean Herbert e por si só, textos sobre mestres e ensinamentos indianos, nomeadamente um livro sobre a discípula principal de swami Vivekanananda, sister Devita, antes de conhecer a Índia, onde estará desde 1947, trabalhando em Calcutá com os monges da Missão Ramakrishna no acolhimento dos refugiados aquando da partição da Índia e Paquistão e  traduzindo  textos de sânscrito.   

 Será só depois, quando instalada na zona himalaica, e estando perto de Almora, ao ser informada da existência de um guru valioso a 90 km, é que decidirá entrar em contacto por escrito com ele, assim descobrindo Sri Anirvan,  um mestre dominando o inglês e com formação védica e samkhya e com tendência baul, a dos místicos errantes e musicais de Bengala, plenos de independência. Depois de a ter acolhido por três dias,  quando se encontraram daí a dois meses em Calcutá, Sri Anirvan aceitou-a como discípula, conforme Lizette nos conta: uma encruzilhada de vida, «em que a avaliação da direcção a seguir dependia inteiramente da pergunta: "Onde está o meu lugar neste universo?" Não me recordo se pronunciei estas palavras em voz alta, mas Sri Anirvan respondeu:"Creio que nesse ponto posso ser-lhe útil..."
                                               
«Ao ouvir estas palavras, a minha decisão foi imediata. Trabalharia com Sri Anirvan, a
o permitir-me, não importa onde e em que condições. Ofereceu-me o poder reunir-me a ele seis meses depois, na ermida que eu já conhecia. Nada foi dito do lapso de tempo que passaria entre o momento da minha decisão e o da minha partida para os Himalaias. Durante este período todas as correntes adversas se desencadearam para impedir-me de seguir o meu caminho»

Mas conseguiu chegar, com o programa já definido por carta: «Estarei livre para si duas vezes ao dia, a primeira depois das 17.00, antes que chegue um do meus amigo. Sem me molestar ele senta-se, faz uma pergunta de vez em quando e medita. A segunda vez será depois da comida da noite. Sei que teremos de estudar juntos muitos pontos, mas se o fizermos com regularidade e método, uma hora bastará. Fora disso, a casa estará submergida no silêncio do Vazio, sem que possa sequer supor que alguém vive ao seu lado...»
Estava porém rodeada dos eternos companheiros nossos: «as paredes
do meu quarto e do de Sri Anirvan estavam cobertas de livros. Uma biblioteca classificada por temas, talvez uns 4.000 volumes sobre temas esotéricos das tradições orientais. Tinha tirado à sorte alguns livros, mais para evadir-me dos meus pensamentos, que para estudar. Sri Anirvan deixava-me fazê-lo. Via-me viver sem interferir.» O que terá sucedido a essa tão valiosa biblioteca?

                                           Vie Dans La Vie (La) (Collections Spiritualites) (French Edition): Reymond,  Lizelle, Anirbana: 9782226019738: Amazon.com: Books

       Estará assim como discípula cinco anos, numa aprendizagem  que  relatara na  obra La vie dans la vie, dada à luz na Suíça em 1969, traduzida como Life within life, ou mesmo Vida en la Vida, já que a li numa edição argentina impressa em 1973 oferecida pelo meu tio Alfredo que fora diplomata  na Argentina, e da qual transcreverei então algumas partes valiosas para quem se interessa pelo caminho espiritual e particularmente as tradições ou vias da Índia. Posteriormente a esse seu livro deu à luz outras obras sobre Sri Anirvan e o seu ensinamento.

A obra foi escrita a partir do cadernos de notas, «relatando a maneira em que servi a um mestre e co
mo fiz o meu ingresso numa disciplina espiritual segundo o ensino samkhya transmitindo-nos as principais vivências que aconteceram nesse ashram ou eremitério onde não havia nem altar, nem imagens de deuses, a não ser um horizonte de montanhas azuis que entrava pelas janelas, e que concomitantemente não apelava a devoção, nem gratidão «mas apenas a sentir-me só e nua na minha própria vida interior. E o seu olhar mantinha-me na consciência desse momento, sem escapatória possível».
O seu ensinamento visava que ela descobrisse no silêncio a sua
shakti ou poder interno, abrisse as pétalas do seu coração e fosse livre na sua criatividade e expressão. Ou como lhe escreveu numa carta a propósito do centro que estavam a começar: Não poderia suportar que o ashram de Haimavati se torne um lugar de férias, pois deve ser um fonte verdadeira na qual, uma pessoa submergindo-se encontra-se face a face com a morte. E o trabalho [ou sobretudo os trabalhos...]. Este trabalho não é por um pretexto ligeiro. Trata-se do trabalho interior ao ritmo do coração de vida. esse ritmo é criação. Por ora a Lizette só pode fazer uma coisa: criar em si mesma um respeito pelo seu próprio trabalho, pelos eu esforço, no silêncio e na disciplina vislumbrada... A ideia de estabelecer um centro de estudos no qual se estudaria paralelamente o hinduísmo e o islão, onde se receberiam os investigadores que consagrariam a sua vida, ou uma parte dela a recolher textos desconhecidos até então, a traduzi-los e a fazê-los publicar nas Universidades da Índia que se interessassem».

Narrando alguns aspectos da vida de Sri Anirvan, relembra como este após dez anos com o seu guru começou a sentir dolorosamente que ele estava a ficar demasiado apanhado na obra e organização, pedindo-lhe então que meditasse, que se retirasse uns tempos, mas em vão, pelo que resolveu partir. Quando se tornaram a encontrar no Assam, o guru compreendeu-o, «abençoou-o e deu-lhe plena liberdade para seguir o seu caminho solitário.  Tornara-se um atyashrami, um dos que está acima de todas as regras e de todas as disciplinas das ordens estabelecidas e que são reconhecidas pela tradição. Convivendo com sufis e hindus, «com o seu rosto delgado realçado  por uma ampla barba e uma veste branca, era tomado ora por um pir muçulmano ora por um sadhu. Ele sorria ante a sua própria liberdade numa sociedade cheia de tabus. Permitia que se estabelecesse um contacto directo com as pessoas, mas ao mesmo tempo assemelhava-se a uma concha vazia cheia com o som do oceano. Ouvi-o dizer: «Que estranha experiência! Não posso ligar-me a nada. As pessoas estão em mim mas não eu nelas..»
Acerca da compreensão grave da sua sincera tarefa ou trabalho de
ensinar, tão ao contrário do que se passa contemporaneamente, seja na Índia,  Portugal ou Ocidente, escreveu numa linha ainda de não-violência bem profunda: «O que a gente espera de mim quiçá não se realizará. Mas não posso ser senão íntegro comigo mesmo e sincero com os outros. Faço tudo o que posso para não ferir a ninguém; contudo, cada um dos nossos movimentos cria uma reacção, por mais ligeira que seja. Não podemos evitá-la. Tudo o que podemos fazer é aceitá-la de bom grado sem criar complicações».
                                    
Viver num ashram em pleno natureza e sob os raios bem luminosos de Himavat é certamente uma bênção e havendo nele ora pessoas eruditas como muito simples, Sri Anirvan discerniu bem que «esta gente simples alimenta-se da essência do espírito que para eles, de uma maneira natural, toma uma densidad
e da matéria. Esta ideia é anterior a toda a ideia de poder [religioso] que tenha forma. Nos Vedas, não é todavia uma matéria pesada. É espírito e é da sua essência que nasce [a concepção d']a Mãe Divina. A gente simples não o esqueceu, já que a sua química é mais real que a nossa; estão melhor alimentados que nós!», compreendendo assim que a não acumulação de dados intelectuais artificiais permitia uma visão mais pura e essencial da omnipresença espiritual na natureza.
A uma vida de simplicidade assente numa alimentação da psique
pelos vegetarianismo tinha não uma oração antes de se começar a refeição mas a regra de que o primeiro bocado de arroz que se comia era levantado à frente como uma saudação ou oferecimento de graças e os quatro bocados [ou ocidentalmente, colheres] seguintes eram acompanhados da recitação de certos versículos  da Bhagavad Gita. Outras regras práticas da vida no ashram era não se secar a roupa sobre pedras, arbustos ou o tecto, nem atirar para o jardim cascas ou restos de comidas.
Quanto a iniciação, diksha, valorizava não só os valores internos
anímicos que nos permitiam aproximar-nos de tal sacramento  mas também ao compromisso voluntário de avançar numa disciplina espiritual determinada, algo que muita gente no Ocidente pouco realiza ora deslumbrado por iniciações e graus iniciáticos, ou em seguir sucessivos mestres geralmente mais de aparências do que de ascese, amor ou realização, quando o mais importante é o desenvolvimento e intensificação da consciência numa assimilação harmoniosa com a vida que nos envolve.
                                
Infelizmente ao fim de cinco anos d
ando-se conta que o projecto não conseguia realizar-se, os discípulos, dadas as grandes distâncias a percorrer, ou por outras razões, vinham pouco, Sri Anirvan conclui "que era o fim de Himavat. A experiência tinha sido concluída", "a grande Natureza (Prakriti) da Índia não estava madura. Tudo está fragmentado. Mas apesar de não haver unidade no Tempo, o sonho nascera e era poderoso, apesar de faltar-lhe corpo. O que somos nós no  jogo das grandes forças em acção?» E antes de se despedirem numa paragem de autocarro, partindo ele primeiro e ela ficando ainda uns dias a liquidar a existência do ashram, dir-lhe-á que Himavata continuava a existir como um ideia verdadeira de um centro cultural de vastos horizontes  e um local de retiro para os que demandavam o caminho espiritual e que outros o realizariam, ou ela na Europa, recomendando-lhe até a ligar-se aos discípulos de Gurdjieff e de Ouspensky, como de algum modo veio a suceder-lhe,  com os livros que publicou ou o que ensinou (nomeadamente o Tai Chi), mas isso ficará talvez para um dia que nos acerquemos mais desta corajosa e pioneira orientalista e espiritual... 

Himavat, vista espiritualmente por Bô Yin Râ. A demanda de tal realidade e realização continua viva e a desafiar-nos, e na satsanga ou sampradaya com Sri Anirvan e Lizelle Reymond....    Om Shiva Shakti Om..

sábado, 14 de maio de 2022

Uma Himavat, por Telo de Mascarenhas, em "Kailasha, Contos e Lendas do Hindustão", 1937.

Telo de Mascarenhas foi um notável pensador e escritor nascido em Mormugão, Índia portuguesa, em 1899, e que se veio a licenciar em Direito, na Universidade de Coimbra, em 1930,  advogando e traduzindo depois, sendo a sua 1ª obra  de poesia, Cantares de Amor. Dinamizador dos movimentos culturais goeses ou indianos em Portugal, podemos dizer que foi um valioso divulgador da sabedoria védica e hindu, já que nas suas obras partilha muitos conhecimentos do Sanatana Dharma, ou da Tradição perene da Índia e fê-lo com um grupo de goeses, nos quais se destacou Adeodato Barreto (3/12/1905 a 6/8/1937), fundando o Centro Nacionalista Hindu (em 1926, ainda antes do Estado Novo...), o Instituto Indiano, e a 7 de Maio de 1928 o 1º número do jornal Índia Nova, com as bênçãos em carta de Rabindranath Tagore, no artigo-editorial assinado por Telo de Mascarenhas, que as traduziu, tal como um poema. Deram à luz também  as Edições do Oriente.

Se uma das suas obras, A Mulher Hindu, aparece bastante no circuito alfarrabista,o mesmo já não se passa com o seu livro impresso em 1937, nas tão cuidadas ou belas Edições Oriente, intitulado Kailasha.  Contos e Lendas do Hindustão, onde no fim anota nas obras publicadas Cantares de Amor.   E a sair brevemente: Índia Mística (Cristna e Buda). Claridades (Perfis e Debuxos), Parvati (Novela de costumes indús), O Pensamento Nacionalista da Índia Nova, que ficaram em projecto ou inéditas. O que publicou mais foram traduções de contos indianos e de obras de Rabindranath Tagore, recriações das lendas e histórias (Rama e Sita), bem como  em 1943 a biografia Mahatma Gandhi, História da minha vida, que já deve ter feito comichão aos pulhígrafos da época....
Infelizmente a independência da Índia em 1948, se o fez
regressar a Goa, e depois para Bombaim em 1950, onde viveu  alguns anos feliz e dinâmico, acabou por o encaminhar para a prisão em  Goa, em 1959, sendo depois enviado para Portugal, para a prisão de Caxias, donde só veio a sair em liberdade em 1970, quando o trocaram por um padre português o padre Chico (P. Francisco Monteiro), que se recusava desde 1961 a assumir a nacionalidade indiana e abandonar a portuguesa. Curiosamente, peregrinando na Índia, já há umas décadas estive com ele, o Padre Filinto Dias e o Padre Alberto de Mendonça, em animado diálogo, num lar para sacerdotes no Alto do Porvorém. 

                                           

Embora tenha sido lastimável que as tão elevadas qualidades de Telo Mascarenhas tivessem sido tão oprimidas, pois só em 1970, com Goa livre do governo português, é que Telo de Mascarenhas pode inspirar e expirar livre e criativamente, até em 1979 partir para os mundos subtis, ficaram-nos contudo imorredoiramente alguns livros seus bem valiosos (o exemplar em cima com a sua bela caligrafia), e é do Kailasha que vamos transcrever a   recriação da lenda de Uma Himavat que recentemente, num artigo dedicado a Sri Anirvan mencionáramos, pois este mestre (1896-1978), na sua primeira experiência espiritual,  aos sete anos,  viu uma jovem de sublime  beleza que o deixou siderado, sem saber se era visão física ou visão espiritual, tornando-se-lhe um sinal do mistério divino,  e a sua musa ou guia no caminho, chegando a dizer que «a sua graça foi a luz da minha vida durante muitos anos», considerando-a uma visão da Deusa, da Mãe Divina, Uma Haimavati, descrita na Kena Upanishad, e que  teria sido fruto de uma visão intuitiva, prajna.

                                                 Nenhuma descrição de foto disponível.

Ora Uma Himavati, que significa o brilho ou o resplendor dos Himalaias, ou da montanha gelada, e que a discípula e biógrafa de Sri Anirvan, Lizette Reymond, ao narrar porque é que seu mestre Anirvan escolhera  tal nome para o ashram ou eremitério onde viveram cinco anos em Almora (onde eu passei indo para o ashram de Sri Krishna Prem, em Mirtola, e dialoguei com o seu discípulo Sri Madhava Ashish), Uma Himavat, explicou-o como a "brancura imaculada da neve que se derrama" na região himalaica. A esta Uma Himavat, mulher ou consorte de Shiva, a auspiciosidade, a quem eu dediquei um poema neste blogue, vai então Telo de Mascarenhas evocar,  com a sua sensibilidade e sabedoria, a partir de uma das versões lendárias. 

Oiçamo-lo então, com a flor ou graal do coração aberto e para vivermos mais em amor, e sintonizarmos os Himalaias, de que o Kailash é um dos picos mais altos (6.713 m.) e sagrados, e do qual Himavat é tanto o nome mítico da montanha, e do seu ser ou rei, ou ainda da sua contraparte subtil e espiritual, como assevera o autor da última imagem deste artigo, o pintor Bô Yin Râ: 

                                                 Kailasha

«Himavat, o rei das montanhas do Himalaya, e Menaka, a rainha, tiveram uma filha graciosa como uma flor de Nandana, paraíso de Brahma, e dir-se-á uma deusa que tivesse vindo povoar a terra para o encanto dos mortais.
O rei chamava-lhe Parvati; mas a rainha Menaka dava-lhe um nome mais doce, todo encanto, todo carinho - chamava-lhe Uma, quer dizer Mãe.[Ou esplendor, serenidade.]
Um dia Shiva, o Deus sábio, o Deu piedoso e mendicante que erra de porta em porta como o mais pobre dos mortais, chegou ao Himalaya, e quedou-se nas suas meditações longas e calmas como os picos alterosos das montanhas.
Parvati, a graciosa filha de Ménaka, pôs-se ao serviço de Deus, e todas as manhãs enfiava em contas grãos de lótus orvalhados em que Shiva rezava as suas orações.
Parvati amava Shiva, o Deus de cabeleira coroada do crescente e de flores de cássia, donde jorra o sagrado rio Ganges, e em sua honra pintou as unhas do laca, os olhos do anguru colírio, e pôs no seu coração virgem um fundo desejo de se unir a Ele, que era todo bondade, todo pureza.

Enfim, a Primavera aflorou as montanhas doirando as neves eternas e vestindo de galas pagãs a natureza, e o perfume ardente das flores do deodarà [cedro] a cuja sombra o Deus meditava, segredou-lhe o amor de Parvati.
E quando as suas longas e calmas meditações chegaram ao termo, Shiva entreabriu os olhos, e os seus olhos poisaram sobre Parvati sentada aos seus pés humilde e submissa, virgem e núbil como uma oferenda de sacrifício.

E sob o véu de lilás de neblina dum dia florido de Primavera, trocaram o seu primeiro olhar de núpcias, olhar de bom agouro, todo impregnado de carinho, amor e desejo.
E kalpas após kalpas [ciclos de tempo], ao cair da tarde, acompanhado do coro divino, em que Sarasvati toca o viná, Brahmá, os címbalos marcando o compasso, Indra, a flauta, Vishnu, o tambor, e Lakshmi, uma flor de lótus na mão, entoa o cântico da tarde, e rodeado de todos os Deuses, Çulapani, o magnâmimo Deus Shiva, colocando a Mãe dos Três Mundos [físico, subtil e espiritual], a sua divina Esposa Parvati, no trono de oiro incrustado de pedrarias, dança a sua dança do crepúsculo na sua mansão, no cimo do Himalaya, na Montanha de Prata, no Kailasha.»
Possa a dualidade complementar de Shiva e Shakti, ou Uma, ou Parvati, ser realizada harmoniosamente em nós e por nós, e pelo mundo...       ...  Aum Shiva Shakti Aum ...  
"Himavat", por Bô Yin Râ.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Poesia espiritual. Ás árvores, externas e internas. Imagens do Gerês transmontano,

       Árvores. Escrito num dia 14 de Agosto...

Ó árvores, tão belas, puras e majestosas,
Como gostava eu de vos ser útil em algo,
Para além de vos abrir o meu coração
E vos abraçar e sussurrar: - Eu amo-vos.

Formas rectas ou onduladas, simples, silenciosas,
Tão subtis nas vozes ciciantes nas brisas do vento,
Tão graciosas nas modulações serenas do poente,
Tapais o que se deve ocultar e manifestais o mistério.
 
Sobre os vossos troncos e raízes nos assentamos
E vossas forças tornam firme a nossa coluna.
Então, no cimo da cabeça, brilham à luz do dia
Os frutos vários dos nossos crescimentos.
Vida a fora, vós paradas e nós a caminhar,
Rumando sempre ao Sol original.
Abraços entre nós podemos trocar,
Memórias,  esperanças e amor cultivar...

Árvores, braços em cruz, livres e fraternas,
Quantos futuros Cristos e mestres em vós há,
Indiferentes às riquezas, ambições e dores,
Firmes nas mais rudes tempestades?

Árvores, por entre vós trinam os pássaros
Abrindo-nos os ouvidos para os ritmos originais,
Purificando os nossos cérebro com o prana puro
E abrindo-nos o caminho para o Som primordial.
 
 Árvore, sombra no calor e lenha no Inverno,
Sabor na comida e estabilidade na casa.
Símbolo da vida por todos estes dons
E pelo segredo de estares em nós na coluna.

Na janela de Tomar alguém suporta as tuas raízes.
Será o Deus Arquitecto supremo do Universo
Ou é o iniciado que elevando a árvore à vida,
Ressuscita a seiva que liga o céu e a terra?

Assim tiramos da terra a mágica Excalibur,
Com as árvores, os barcos da Índia construímos,
E agimos meditando na nossa árvore da Vida,
Fazendo sua seiva subir e ascender,
Abrir janelas e rasgar caminhos,
Enfrentar obstáculos e amar os mundos.
Fazer o Céu e a Terra numa só verdade una.

Obrigado.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Do discernimento dos estados interiores e dos objectivos de vida, em tempos críticos. O que desenvolver?

                                              

Cada alma humana, mesmo que já esteja bem avançada na sua ligação ao espírito e ao Divino, é uma ave peregrina ou discípula, ao estudar, trabalhar,  sofrer,  criar, movimentar-se e  interagir, no fundo ao querer realizar certos objectivos na vida, pelo que todos devemos interrogar-nos sobre o curso dela, sobre as energias e correntes que suscitamos ou nos atravessam e se estamos apenas a ser movidos pelas rotinas da sobrevivência, em ondulações e oportunidades, ou se realmente tocamos ou nos dirigimos através delas para os objectivos principais (para nós) de vida, certamente difíceis de se avaliar ou mesmo hierarquizar, ao serem bastante maleáveis ou permeáveis às constantes influências e vivências, dificuldade que a inundação de informação exterior dos media e das redes sociais ainda mais agudiza...
E assim intenções e aspirações, declarações e realizações podem se tornar apenas aspectos superficiais, acidentes triviais, simples palavra ou slogans, diálogos ou sonhos efémeros de uma vida de sobrevivência adaptativa e sem grandes determinações e esforços perseverantes, de que resultariam criações e realizações importantes e perduráveis, seja para a história terrena visível, local ou alargada, seja para a espiritual invisível, eterna mesmo...
Ora no século XXI este perigo é cada vez mais real pois o
crescentemente controlador sistema capitalista neo-liberal, a certos níveis de impacto quase mundial, tende ou mesmo deseja que cada pessoa (enquanto lhe serve) seja apenas um parafuso, um número, um id da grande máquina de produção, distribuição, consumo, alienação e opressão, com ordenados e impostos, lucros, taxas e sanções, tudo regido pelos que manobram os cordelinhos da governação e informação dos países, a fim de manterem as pessoas alienadas e submissas, nos carris de uma mediania de criatividade que não ponha em causa as elites governantes e os seus agentes, algo que com o corona vírus se tem acentuado dramaticamente, já que vários governantes se têm demasiado alinhado e vendido a uma nova Ordem Mundial, supra-nacional, minuciosamente opressiva.
Quais serão então os aspectos mais pessoais e actuais dos nossos objectivos,  missão ou dharma, que  não é apenas
interna e superiormente ética e espiritual, ou seja, a de nos ligarmos mais ao bem, à verdade, espírito, ao Anjo e à Divindade, e os manifestarmos, mas também a de lutarmos para sobrevivermos, com as nossas famílias ou amigos, à alienação e massificação, opressão e repressão tão anti-divinas, mentirosas e violentas do que é denominado a nova Ordem Mundial?
Como cada ser é chamado diariamente a trabalhar, a consumir, a dizer a sua palavra, a agir ou a reagir em gestos, sentimentos e pensamentos interactivos, se o fizermos bem harmonizados e conscientes, tal pode fazer a diferença face ao passadismo e à alienação em que muitos se deixam conduzir, e assim deveremos cingir
certas práticas e princípios e activá-los com regularidade.
Eis então uma regra de vida que poderemos meditar e adoptar:
agir e reagir com sinceridade, inteligência e destemor, mas com a consciência vasta do que nos envolve, tentando discernir o que é mais importante de ser trabalhado ou cooperado e assumindo-se as responsabilidades dos resultados, com amor e coragem...
Auto-consciência e sensibilidade interior, lucidez e vigilância, coragem esperançosa e amorosa são então qualidades que o mais possível manifestadas acabam por nos fortalecer e guiar diariamente no trabalho e no cultivo dos objectivos mais luminosos da nossa vida, que são certamente a procura e a criação dinâmica, solidária e criativa de estados psíquicos e de eventos de verdade, de bem, do belo, do útil e do justo, a par de momentos de recolhimento e comunhão espiritual interior, ou com a Natureza e o Cosmos...

                                                

Assim, com regularidade, fecharmos os olhos e sentirmos como está o nosso interior e ainda a nossa posição ou estação no caminho de realização dos objectivos ou estados conscienciais desejados, será importante. Bem como discernirmos que pessoas ou causas estamos a apoiar, que projectos rurais, ecológicos, artísticos, sociais e de ligação entre o espiritual e o material estamos a conseguir realizar,  em sintonia com o estado consciencial espiritual nosso mais elevado que possamos atingir...
É sabido que ao fecharmos os olhos somos levados para o mundo invisível da sensação, do pensamento, da imaginação e da memória, ou mesmo, em algumas pessoas, para o mundo espiritual, pelo que tais momentos podem servir para sentirmos também como está a nossa ligação com o espírito, o Divino e o universal, este ao sairmos do nosso egoísmo, e logo encetarmos algum tipo de respiração e oração, sempre única e pessoal, mas realizada
também por intenção de outros seres, afins, necessitados ou apenas pela universalidade do género humano.
Nestas interiorizações devemos sentir ainda a nossa maior ou menor fluidez psico-espiritual, e assim poderemos diagnosticar alguma necessidade de respiração, descontração ou energetização seja de órgãos ou partes do corpo, seja dos chakras ou centros de força subtis psico-endócrinos, o que se faz basicamente com a respiração, a visualização, a contemplação, a massagem e certos movimentos. Assim,  harmonizados e renovados, avançaremos melhor na fluidez das nossas meditações, afinidades, ou no alcançar dos nossos objectivos, seja interiores seja exteriores, os quais no fundo constituem o que conseguimos realizar da nossa missão  na época que atravessamos, em sintonia com o país em que nascemos ou vivemos,  em certos casos já expandidos numa pátria e mátria planetária ou mesmo universal...
Assim nas meditações, surgindo tal apetência (algo dificultada pela sombra opressiva da UE e do globalismo), será bom tentar sintonizar, por exemplo, com o Arcanjo de Portugal (ou do seu país) e compreendermos sob a sua invocação onde deveremos estar  passivos e receptivos e onde nos competirá ser mais activos e dinamizadores, ou ainda com quem nos devemos juntar e de quem nos devemos desligar, certamente numa solidariedade empática ou compassiva...
Será sempre importante, e nos tempos que correm de tão grandes divisões entre as pessoas, por causa das visões antagónicas e fracturantes quanto às medidas do Covid, ou quanto ao conflito russo-ucraniano, tentarmos estar em paz, em descontração, em serenidade, e não nos deixarmos desanimar, desiludir e zangar (e nunca irritar), antes pelo contrário respirando fundo, sorrindo e irradiando discernimento, paz, amor para o ambiente e para todos os seres,  aprofundando assim os estados conscienciais e os objectivos que  demandamos e amamos com mais ou menos perseverança...
E se sentirmos dúvidas, interrogações e o mistério poderemos orar: - Ó Divindade, que és tanto transcendente como omnipresente e imanente, pois estás em mim e és em mim a fonte do meu ser profundo, desperta-me mais para visão de quem eu devo ser, em que local
trabalhar ou assentar, que pessoa ou pessoas mais amar, que objectivos e em que linhas de forças mais avançar?
Dentro da imensa criatividade que o livro arbítrio proporciona aos seres humanos é sempre adequada também a oração: "Meu Deus faça-se em mim a vossa vontade", ou a clássica de Jesus, "Seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu", já que é inegavelmente um bom apelo humilde tanto a que dos planos subtis e internos as inspirações luminosas nos toquem e guiem, como a de que do nosso interior se ergam as forças que
ligam harmoniosamente o alto e o baixo, ou nos enlaçam ao espiritual e ao divino.
Também a regra de confirmarmos, pelo que vamos sentindo, a
cada momento, o certo ou errado das nossas actividades, é certamente outra ajuda numa linha de auto-observação do eu pelo Eu...
Aspiro eu à mais alta evolução ou realização espiritual possível? Sei perseverar, apesar das dificuldades, nessa direcção? No dia de hoje que momentos serão esses mais luminosos, mais consagrados à Luz, ao Amor, à Verdade? Que tónus emocional ou afectivo emana de mim para as pessoas? Que consciência mais profunda dos outros,  ou de
unidade, consigo eu sentir e comungar?
Será bom  apontar e cumprir diariamente algumas metas de trabalhos, alguns momentos de dedicação ou abnegação, algumas práticas ou criatividades pelos quais as nossas determinações e potenciais se tornam mais reais e perseverantes.
E de quando em quando interroguemo-nos, e de tal recebendo forças: se morresse agora, o que mais pena me faria, o que mais falta seria para a minha passagem na terra, ao não ter sido realizado ou completado?
Quem são os seres que mais amamos, vivos ou mortos? Porquê, para quê e com que consequências na vida eterna?
Será que atingirmos um estado de amor grande, ou seja, termos arrancado das nossas profundezas o fogo do amor, e logo conseguirmos, sendo amor, amar verdadeiramente alguém,  os seres que contactamos,  uma investigação, uma causa, um mestre, o anjo, a 
Divindade, é o mais importante objectivo da vida?
Muito provavelmente sim.
Descubra e desperte mais o Fogo do Amor primordial e divino em
 si...

Pintura de Bô Yin Râ: avança em Amor, corajosa e serenamente...

terça-feira, 10 de maio de 2022

Poesia à Deusa Amada, Uma Himavat, Buddhi e Sat Chit Ananda em nós... Com a voz de Gaiea cantando o Shiva Sankalpa Suktam...

Aummm
 Àquela Deusa que se ergueu no horizonte
Como outro Sol e me extasiou e enlaçou,
E me arrancou da rotina e informação diária
E me lançou nos montes e céus infinitos,
A esta Deusa as minhas prosternações.
 
 

Possa ela manter-se no meu coração,
Possam a minha dedicação e aspiração
Vencerem  as dificuldades e desânimos
Que fatalmente influenciam diariamente.
 
E chegado ao fim do labor diário dharmico
No templo do meu coração sua luz abraçar
E a minha alma na sua vastidão se expandir,
E os mais sagrados mantras co-celebrar.

Possam os tempos vindouros ser nossos
Na vasta Unidade que dissipa as trevas,
Com o fogo do coração clareando os egos,
      Tornando-nos transparentes no fulgor Espiritual.

Oh tu, Uma Himavat, Sat Chit Ananda em nós,
Inspira-nos sempre a mantermos o fogo acesso,
Agni, divino e imortal, Sol primordial e ridente,
Nas nossas consciências flamejante e contente.

Possa a misteriosa e vasta inteligência búdica
Guiar a direcção dos nossos pensamentos
Para aquela visão interior justa e equânime,
Que discerne a verdade oculta dos seres
E entrando pela meditação no coração,
Arde no fogo corajosa e amorosamente,
     Na unidade Divina de Prem Ananda ananta.

                        

sábado, 7 de maio de 2022

Sri Anirvan, 1896-1978, um sábio mestre bengali, hoje do Bangla Desh. Biografia e obra. Com video de nuvens no vasto céu divino, em dia de Sri Anirvan. 7/05/2022.

Sri Anirvan foi um dos sábios do séc. XX da Índia, vivendo 82 anos de grande qualidade e criatividade. Nasceu a 8 de Julho de 1896, na pequena aldeia de Mymensingh, hoje Bangla Desh, de pai médico e de mãe  terna e religiosa, recebendo o nome Narendrachandra Dhar e tendo uma infância feliz e em contacto com Natureza, manifestando desde cedo tendências espirituais e mnemónicas, pois aprendeu de cor o tratado linguístico sobre o sânscrito de Panini, o Astadhyayi  (do que lhe resultará grande capacidade de memória e análise gramatical e védica), e a mais famosa obra místico-espiritual indiana, a Bhagavad Gita.
Uma das suas primeiras experiências espirituais foi a de ter visto aos sete anos uma jovem de  beleza fabulosa que o deixou siderado, sem saber se era visão física ou visão espiritual, tornando-se-lhe um sinal do mistério da vida e da sua sublimidade, e uma influência benigna,  como se ela se tivesse tornado a sua musa ou guia no caminho. Chegará a dizer que «a sua graça foi a luz da minha vida durante muitos anos». Anos mais tarde considerará ter sido a Mãe Divina, nascida da perfeita sabedoria, Uma Haimavati, descrita na Kenopanishad, ou ainda, ou por, Prajna e Atman, a visão intuitiva e do espírito. 

                                                       Nenhuma descrição de foto disponível.

Poucos anos depois teve outra visão, que alguns de nós também já tiveram de um ou outro modo: a contemplação da imensidade do céu e uma expansão da consciência, com o céu e as estrelas entrando dentro de si, ou vendo-os em si, no seu interior, quase que desmaiando, e segundo um dos seus biógrafos, Ram Swarup, «esta experiência persistiu através de toda a sua vida, e Sri Anirvan tornou-se um sadhaka [praticante espiritual] do vazio, da liberdade, do desapego, tudo simbolizado pelo céu», acrescentando que na mesma veia ou linha de força, «um dia veio-lhe um pensamento com a força e o inesperado da realização espiritual, o de que ele estava livre das restrições de castas e credos, livre na alma, "livre como o faquir Chand", um baul (místico poeta itinerante).»
Aos 16 anos decidiu abandonar a vida na família e no liceu e ir
ter com o que ele sentia ser o seu guru Swami Nigamananda saraswati (1880-1935), que já o era dos seus pais, mas este embora recebendo-o muito afavelmente mandou-o de volta para completar os seus estudos, pois precisaria um dia de um scholar, um erudito, com ele. E assim Anirvan teve de estudar mais seis anos, obtendo excelentes resultados, só satisfazendo a sua sede de amor, conhecimento  felicidade, nos meses das férias, junto ao
seu mestre, de facto um grande realizado em várias linhas ou tradições yogis, conhecido como Paramahansa  Swami Nigamananda Saraswati Deva, já que em 1904 recebera esse 1º nome e título de "grande cisne", ao ser reconhecida a sua iluminação, pelo Shankaracharya do Sringeri Math, na kumbh mela de Allabhad, num diálogo histórico diante de mais de cem monges. Ei-lo numa imagem da época.

Completada a sua formação, em sânscrito e filosofia, nas Universidades de Dacca e de Calcuta, Anirvan pode entrar ao serviço do seu mestre  durante doze anos, vivendo no Assam Bangiya Saraswata Math, na base da educação tradicional indiana mas com uma linha activa de serviço (seva), sobretudo agrícola e de construções, crescendo muito tal comunidade ou ashram em pouco tempo de 5 para 50 discípulos, produzindo a sua comida, com farmácia, escola e jornal, o Aryadarpana, que Anirvan dirigiu. Passou então de bramacharya (estudante casto) para monje renunciante, sanyasin,  recebendo o seu nome de Nirvananda Saraswati, com o seu guru Niganananda a querê-lo como  sucessor. Mas poucos anos depois, em 1930, quando o que se tornaria o sucessor, Durga Charan Mohanty, encontrou swami Niganannada, o seu próprio génio impulsionou-o a deixar aquela vida colectiva e com demasiados ónus administrativos, partindo para uma itinerância típica da Índia dos sadhus, com estadias em casas dum amigo em Allabhad e Lucknow e num ashram que estabeleceu em Kamakhya, perto de Guhati;  e sobretudo em Ranchi, onde encontrou uma discípula, Tapas Chattopadhyaya, que se lhe dedicou completamente durante os seis anos que viveu em Lohagat, nas montanhas de Almora, onde alguns anos depois viveram Sri Krisna Prem e Sri Madhava Ashih e onde estive alguns dias em animados diálogos e boas meditações com Sri Madhava. Pois foi aqui mesmo em Lohagat, Almora que também a indóloga Lizeele Reymond encontrou Sri Anirvan e  acompanhou-o como mestre cinco anos, depois mantendo-se em correspondência com ele  e deixando-nos tanto o principal da sua biografia como dos seus ensinamentos em dois livros valiosos. 

A sua primeira obra em 3 volumes publicada, entre 1948 e 1951, foi Divya Jivana, uma tradução para bengali da  Vida Divina de Sri Aurobindo, autor que recentemente tem sido traduzido entre nós por Rui Fazenda, nos Montes Hermínios. Traduziu dele também a Vida Divina em 1961. Mas seus trabalhos principais foram comentários aos Vedas e Upanishads, bem como obras sobre Vedanta e Yoga.

Em 1954 voltou a Silligon no Assam, e em 1965 estabilizou finalmente em Calcuta, embora com regularidade fosse visitar amigo e discípulos que o convidavam e se regozijavam com os seus satsangas (sat -verdade, sanga - companhia ou grupo) e iluminantes respostas. Diz-nos Ram Swarup: «onde quer que estivesse chamava a esse local Haimavat, a Deusa da sua visão primordial. Era a analogia física da "gruta secreta do coração" das Upanishads, e na qual o Purusha é absorvido em si mesmo.»

                                  

Uma tuberculosa óssea e uma queda quando tinha 75 anos  enfraqueceram-no e imobilizaram-no mas continuou até aos últimos momentos com a magnífica memória, a mente e a alma ao serviço do esclarecimento dos outros, desincarnando a 31 de Maio de 1978.


Em 1983 saiu em inglês Budhi Yoga of the Gita and other essays,  constituído por oito ensaios publicados em revistas como o Prabuddha Bharata, do Advaita Ashrama Calcuta;  na Srinvantu, um artigo sobre Aurobindo, e do livro Cultural Heritage of India, vol. I, um ensaio acerca da exegese dos Vedas, agradecendo-se neste livro a permissão de se o publicar a Swami Lokeswarananda, o director do Institute of Culture, da Ramakrisna Mission, curiosamente que eu ainda conheci e a pedido do qual proferi uma palestra no mesmo Institute de Culture em 1995, sobre as relações culturais e espirituais entre a Índia e Portugal.  A última parte do livro contém poesia espiritual sua a partir de versos do Rig Veda, partilhados em sânscrito.

 Sri Anirvan foi um ser que viveu a vida como yajna, sacrifício ou invocação do espiritual ou do divino, qualquer que fosse a actividade em que estivesse envolvido, infundindo-a de uma consciência profunda e de perfeição, baseada na auto-consciência, na serenidade e numa capacidade de adaptação aos ambientes sob a luz do Purusa ou o eu divino interior, espiritual.

Quanto a Deus podemos discernir na sua posição e realização uma harmonia do nível não dual ou advaita, ou da Unidade Primordial, o Brahman, a Divindade infinita; e uma Deidade-alma (a ishta devata, ou o atman) manifestada sob  diversas em formas e nomes no interior ou coração de cada ser e de acordo com a fé, aspiração e purificação deles.
Valorizou muito também a vastidão, o espaço infinito sensível a uma
pessoa  que sabe esvaziar-se e morrer em vida,  e tornar-se akasavat, vasto como o akasa, e por isso praticava e recomendava  a contemplação amorosa do Sol, Lua, estrelas, estações do ano, árvores, nuvens, etc., de modo a que uma pessoa se embeba «da sua vastidão, pureza, luminosidade, ritmo, conteúdo espiritual. Fazia parte da sua sadhana tornar-se um com a vida cósmica, sentir a sua pulsação e acção na sua própria vida, pois isso ajuda a despir-nos da personalidade falsa.»
Terminemos esta apresentação de este valioso mestre transcrevendo o
que ele considerava serem  os valores principais das três tradições da cultura Arya, da antiga Índia: a Védica ou Bramânica, dos rishis ou videntes, a não vedica e pré-vedica, dos shramanas, ou munis, ascetas e silenciosos, e a da Samkya, não-teísta, que teria influenciado o Jainismo e o Budismo.  Esses valores seriam, e seguimos Ram Swarup, na sua introdução à obra: guiarem-se pela Luz, jyotiragrah, a intuição do  vasto, a ânsia do Além,  a aspiração à liberdade  do Infinito (anibadha ananta), a insistência na verdade como eterna (nitya) e a sua origem não histórica nem pessoal (apauruseya).
Possa Sri Anirvan inspirar-nos dos mundos espirituais em que vive e
brilha refulgente, para conseguirmos unir melhor em amor e sabedoria a Divindade transcendente na sua vastidão e a Divindade imanente na sua subtileza e intimidade, e assim vivermos mais harmoniosamente.